A artista de 36 anos nasceu no Recife, mas vive em São Paulo desde 2014. A mudança para essa cidade veio junto à produção de seu novo projeto Língua, formado por três EPs: Pedra de sal, Aço e o terceiro, homônimo ao título da trilogia. O primeiro foi lançado em novembro do ano passado, o segundo saiu em maio deste ano, e o que encerra o ciclo tem lançamento neste mês. O trabalho surgiu de um mergulho de Alessandra, que vinha de cinco anos sem lançar disco solo. Mas, antes de falar sobre o recente projeto, vamos a um passeio pela carreira da artista.
Ainda adolescente, Alessandra estudou teatro e começou a pesquisar caminhos para se aprimorar. “Então comecei a cantar e dançar.” A percussão sempre foi uma paixão. Assim que teve contato com o instrumento, surgiu a ideia da Comadre Fulozinha. Uma amiga se tornou a produtora do grupo e os shows agendados incluíram apresentação no Abril pro Rock. “Toda a energia do teatro eu comecei a voltar para a música.”
Em 2000, Alessandra deixou a Comadre por motivos pessoais. “Meu filho estava bem pequeno e achei que deveria trabalhar com outra coisa, com a família. Depois voltei a tocar e a trabalhar com música”, afirma. A amizade entre ela e as outras integrantes continua e, embora a artista possua uma sonoridade diferente da que era feita no grupo, a cultura popular se mantém viva em seu trabalho. “Acho que tem uma essência ali, ainda. Essa música de rua continua sendo uma referência muito forte.”
Quando retornou à música, Alessandra chegou com o ótimo Brinquedo de tambor, trabalho solo lançado em 2006, que a revela compositora. O álbum conta com produção e arranjos feitos por Caçapa, violeiro, compositor e arranjador. Alessandra e o músico se conheceram em 1997, no grupo de maracatu de baque solto Boizinho Alinhado. A parceria profissional entre os dois começou em Brinquedo de tambor. “E a partir daí a gente não parou mais”, conta Caçapa. Atualmente, além de trabalharem juntos, eles estão casados.
Em 2008, Alessandra lançou o disco Folia de santo, produzido e idealizado pela artista. O projeto surgiu antes mesmo do lançamento do primeiro disco solo e dialoga com músicas populares que fazem referências à devoção. Um ano depois, Alessandra lançou seu álbum solo Dois cordões, e agora dá seguimento à finalização da trilogia Língua. Junto a Caçapa, Alessandra criou o selo Garganta Records, que possui oito títulos lançados, nove com o EP Língua. A artista conta que a ideia surgiu do anseio de maior autonomia para a produção. “A criação de um selo proporciona isso, essa estrutura, essa formalização”, ressalta.
Ao lado de Rafa Barreto, guitarrista da banda que a acompanha nos shows, Alessandra mantém o projeto Punhal de Prata, no qual interpreta o repertório de Alceu Valença da década de 1970. O pai do guitarrista foi parceiro de Alceu em trabalhos como Morena tropicana. Além dos shows, Alessandra pretende lançar CD do Punhal em 2016.
Motivações pessoais, financeiras e de relação com o público fizeram Alessandra tocar para a frente o projeto da trilogia de EPs. “A gente chegou aqui no ano passado e não tinha grana para fazer um disco. Em paralelo a isso, eu e Caçapa já vínhamos conversando sobre outras formas de lançar pelo selo (Garganta Records)”, conta a artista. “Acho que a gente precisa fazer vários mergulhos ao longo da vida. Não é um só, nem um mais intenso que o outro. Acho que são vários”, explica. Pedra de sal é a preparação, a tomada de ar para a descida, e trabalha a relação dos outros com os espaços. Aço é quando o mergulho acontece. “É a parte mais densa, visceral, mais conceitual e autocentrada, digamos assim.” E Língua é o retorno dessa imersão, pois trata de partes mais externas do corpo.
Ao ouvir os dois primeiros EPs da trilogia Língua, é possível acompanhar a tomada de ar e o mergulho de Alessandra. Em Pedra de sal, o timbre forte da artista se une aos arranjos bem-elaborados, porém mais leves em relação a Aço. No primeiro EP, as músicas anunciam a preparação para o mergulho. Nele, a guitarra torna-se protagonista, ao lado da voz marcante de Alessandra. Já a percussão, sempre presente na musicalidade da artista, ganha toques mais leves. Nas cinco músicas, é possível sentir o caminho traçado até acontecer o mergulho.
A primeira música faz referência à Iemanjá, enquanto a faixa-título chega com mais ousadia vocal e sonora, trazendo em seu fim a primeira tomada de ar. Em seguida, os acordes anunciam a participação de Kiko Dinucci, que também canta ao lado de Alessandra. Em Tatuzinho, não encontramos a percussão, apenas as suas vozes, que assumem um ritmo mais intimista ao lado da guitarra. O ritmo emenda com os efeitos eletrônicos de Mofo, próxima música do EP, cuja sonoridade é mais densa. Em Devoro o lobo, última música de Pedra de sal, também com participação de Kiko Dinucci, Alessandra alcança seu ponto alto vocal na primeira parte da trilogia, em uma canção repleta de ruídos e efeitos combinados ao timbre da guitarra.
Aço começa visceral, mais denso, com ruídos, acordes dissonantes e elementos percussivos. Na trilogia, a bateria é pensada como percussão, com timbres que remetem à sonoridade da música do Congo, uma grande referência para Alessandra. Em Mergulho, segunda música do EP, a ciranda se mistura às guitarras, com participação de Odete de Pilar, coquista e cirandeira da Paraíba. Aço segue com Prolonga e Acesa, uma parceria entre Alessandra, Kiko Dinucci, Rafa Barreto e Missionário José, continuando com Mergulho, na qual a artista canta: “cada tropeçar/ cada levantar/ deixa a pele se romper/ nado pra correr/ rasgo pra me ver”. E isso foi exatamente o que ela fez, recriando-se com autonomia e experimentações criativas. O EP finaliza com a volta de Odete de Pilar em Foi no Porão, na qual fica claro que a influência da cultura popular permanece no trabalho de Alessandra.
MARIA EDUARDA BARBOSA, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.
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