Toda essa mistura de ritmos e expressões culturais foi capaz de resgatar a importância do legado de Jackson do Pandeiro, além da cultura nordestina como um todo. Em entrevista à Continente, Rennar Pires, baterista da banda recifense Kalouv, fortemente influenciada pelo universo dos games, demonstrou como as raízes nordestinas também ocuparam espaço durante seu processo de formação. "Eu comecei tocando pandeiro com meu avô, ele tinha um grupo de chorinho lá no Rio de Janeiro. Eu me sinto envaidecido, deveriam ter mais homenagens a mestres", contou.
MV Bill se apresentando ao lado de sua irmã Kmila CDD no Palco Pop. Foto: Jan Ribeiro/Secult PE - Fundarpe
O rapper MV Bill também nos concedeu entrevista antes de sua apresentação explosiva com participação especial de sua irmã, Kmila CDD, encarregada de trazer para a cena do rap, um ambiente normalmente protagonizado por homens e tendencialmente machista, versos ancorados no empoderamento feminino. Apesar de manifestar sua arte através da potência de um ritmo que pode parecer distante das expressões musicais nordestinas, MV Bill fez questão de enfatizar a necessidade dos rappers brasileiros se aproximarem da obra do Rei do Ritmo. "O brasileiro deveria valorizar muito mais a obra dele. Jackson ser o homenageado nesse festival é uma iniciativa muito importante na necessidade de imortalizar esse artista em nosso imaginário. Eu acho até que muitos grupos de rap, já que a força da nossa música está principalmente nas referências que usamos nas letras, têm que conhecer e estudar a obra de Jackson, exatamente pela riqueza de seus componentes e pela sua diversidade de influências", defendeu.
O redline da penúltima noite do festival ficou por conta de Alcione, uma das atrações mais aguardadas desta edição. A cantora foi responsável pelo fechamento dos portões da Praça Cultural Mestre Dominguinhos, devido à lotação do espaço. Além dela, a capacidade máxima de público só foi alcançada na noite do brega, no ínicio da semana. Apesar de entoarem ritmos distintos, ambas conseguiram dialogar com a população, atingindo diferentes camadas sociais, rompendo com o pensamento elitista que afasta a arte das pessoas e colocando o protagonismo feminino na vanguarda do festival.
De volta a mais uma edição do FIG, a Marrom realizou uma performance que além de fazer jus ao encerramento da noite, esquentando o clima chuvoso através de sucessos como Estranha loucura, Você me vira a cabeça e músicas autorais da sambista Beth Carvalho, assumiu um tom político graças ao seu discurso sobre violência contra a mulher e suas declarações de amor a Pernambuco, que resultaram em um "viva" ao Nordeste. Na semana passada, a cantora maranhense teve vídeo viralizado no qual tece duras críticas à postura do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, pelo uso da expressão pejorativa "Paraíba" para se referir ao Nordeste, exigindo respeito ao estado do Maranhão e à região como um todo.
Alcione foi destaque na penúltima noite no Palco Mestre Dominguinhos. Foto: Felipe Souto Maior/Secult PE - Fundarpe
Mais tarde, em cima do palco, a vice-governadora do estado, Luciana Santos, anunciou que, em setembro, Alcione receberá o título de cidadã pernambucana concedido pela Assembleia Legislativa de Pernambuco. "Nordestina! Maranhense! Pernambucana!", reagiu o público aos gritos. Não deixe o samba morrer foi a canção de fechamento, escolha mais do que pertinente para pontuar o auge daquela noite no palco principal, que prestigiou o ritmo através dos nomes de Belo Xis, Karynna Spinelli, Carla Rio e Gerlane Lops.
A NOITE DE ENCERRAMENTO
Partindo para o último dia de festival, no sábado (27/7), a banda de rock Ave Sangria, um dos principais expoentes da cena musical psicodélica pernambucana dos anos 1970, preparava-se para subir no Palco Pop. O show contou com a participação do percussionista Lucas dos Prazeres, substituindo o integrante da banda, Gilu Amaral. "Estar participando da edição do FIG que homenageia Jackson do Pandeiro é muito importante para mim, porque foi o pandeiro que me guiou. Eu o chamo de bateria de bolso, porque é um instrumento versátil, que consegue se comunicar onde entra, sem deixar de ser pandeiro. Ele tem uma propriedade de camaleão, além de mostrar o perfil de quem o conduz, que é uma outra propriedade de ser espelho. Eu até brinco dizendo: 'Pandeiro, espelho meu' (risos)", declarou o maestro da Orquestra dos Prazeres, em entrevista à Continente, antes da Ave Sangria se apresentar.
Em seguida, Francisco, el hombre entregou uma verdadeira catarse coletiva com Rasgacabeza, seu novo disco. Pela segunda vez no festival, a banda incendiou o Palco Pop com seus ritmos frenéticos e uma intensa participação política. Quem estava na pista, pôde notar a onda de calor que transformou o clima frio através do movimento de corpos e mentes, uma das principais preocupações dos integrantes. Em um dos momentos da performance, por exemplo, os artistas fizeram um recorte voltado ao genocídio dos povos indígenas, exaltando a tribo Fulni-ô, localizada em Águas Belas, município próximo de Garanhuns.
Para todos os integrantes, as raízes da música nordestina tiveram influência primordial. "Desde o começo, a gente foi buscar, em todos os lados do Brasil e da América Latina, as nossas raízes, reconectando e redescobrindo elas. A raiz nordestina está presente em praticamente todas as músicas que fizemos. Quando a gente escolheu vir para o Nordeste, ao invés de ir para os Estados Unidos, em uma viagem que gerou o álbum La Pachanga!, estivemos no Mimo Festival, em Olinda, e também passamos um tempo na Paraíba”, afirmou o baixista Rafael Gomes, que integra a banda junto aos irmãos mexicanos Sebastián (bateria e voz) e Mateo Piracés-Ugarte (violão e voz) e os brasileiros Juliana Strassacapa (voz) e Andrei Kozyreff (guitarra).
Em paralelo, na Catedral de Santo Antônio, o cantor, compositor e violonista João Bosco proporcionou uma noite singela, mas emocionante. Mesmo com todos os assentos ocupados, o público não mediu esforços para prestigiar o renomado artista, espalhando-se por todo o entorno, sentados no chão e de pé, bloqueando a entrada. Do lado de fora, uma multidão, que parecia não ligar para o frio e para a chuva fina, assistia ao espetáculo através de um telão.
Nesta noite que encerrou o FIG 2019, a força da cultura nordestina, mais uma vez, foi celebrada. No Palco Mestre Dominguinhos, um dos mais completos artistas de Pernambuco, o rabequeiro, compositor, cantor, brincante e herdeiro do legado de Mestre Salustiano, Maciel Salú, apresentou composições do seu mais recente trabalho, o álbum Liberdade, que discute temas urgentes como violência e preconceito. Apesar da atração escolhida para fechar o festival ter sido a cantora Maria Rita, o ponto alto da noite se consolidou no show que a antecedeu, quando Lia de Itamaracá subiu ao palco para cantar, junto à baiana Mariene de Castro, o clássico da ciranda Quem me deu foi Lia.
O clássico Quem me deu foi Lia foi destaque da noite de encerramento do festival. Foto: Fernando Figueirôa/Fundarpe
Na voz marcante de Lia, os versos convidaram o público a celebrar um ritmo que segura nas mãos de todos, independente de cor, raça ou credo. Alusão perfeita ao que a 29ª edição do festival foi capaz de transmitir, isto é, a forte preocupação em apresentar a arte como um território de encontros, responsável por ampliar vozes e gerar diálogos transformadores. Sem dúvidas, a homenagem ao centenário de Jackson do Pandeiro e ao ritmo nordestino, costurado pelo contexto de tantos povos, foi essencial dentro desse processo e do cenário político atual, onde a intolerância ascende e impossibilita a construção de pontes através da pluralidade de vozes.
O centenário de Jackson do Pandeiro também receberá uma homenagem na próxima edição da Revista Continente, numa HQ inédita.
SAMANTA LIRA e THAÍS SCHIO são estudantes de jornalismo da Unicap e estagiárias da Continente.
*As repórteres viajaram a convite da Secretaria de Cultura de Pernambuco e Fundarpe, realizadoras do Festival de Inverno de Garanhuns.