FOTOS E VÍDEOS BRENO LAPROVITERA
05 de Junho de 2019
Manifestação da cultura popular, a ciranda permanece com os antigos e se renova com os jovens mestres
Foto Breno Laprovítera
[conteúdo na íntegra | ed. 222 | junho de 2019]
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Eu estava na beira da praia
Ouvindo as pancadas das ondas do mar
Essa ciranda quem me deu foi Lia
Que mora na Ilha de Itamaracá.
Do litoral à Mata Norte de Pernambuco, falar em ciranda é constantemente ouvir alguém lembrar Antônio Baracho e Lia de Itamaracá. Como um presságio, bem antes de levar sua voz para vários lugares do país – e do mundo – e ser Patrimônio Vivo do Estado, o nome dessa filha de Iemanjá circulava nos versos da música Quem me deu foi Lia, de composição atribuída ao Mestre Baracho. O interesse e a imaginação do público sobre quem seria Lia cresciam para além da ilha, através dessa canção gravada por Teca Calazans, em 1967. Considerado um dos primeiros registros do gênero, o compacto trazia um pot-pourri de cirandas, inclusive com essa, que leva o nome de Lia por onde for.
A paixão de Maria Madalena Correia do Nascimento pela música fez dela Lia de Itamaracá. Hoje com 75 anos, começou a cantar aos 12, observando os cirandeiros. Como seu pai tinha duas famílias, a mãe, Matilde Maria, tratou de buscar emprego na casa de uma família abastada da região, para que pudesse criar seus filhos. Entre a infância e a adolescência, Lia aprendeu cedo os trabalhos domésticos ao ajudar sua mãe. Pela precoce experiência e necessidade, em 1976 começou a trabalhar como cozinheira no Bar Sargaço, à beira-mar de Jaguaribe. Aos sábados, ela encantava as rodas de ciranda do local. Foi assim que a cadência de sua ciranda começou. Nas três décadas seguintes, trabalhando como merendeira na Escola Estadual Reunidas de Jaguaribe, ela conseguiu sua aposentadoria.
“Nunca botei na cabeça para sair daqui. É onde eu me inspiro, é a minha praia. Sair daqui pra quê? Sou filha de Iemanjá, gamada no mar. É forte, né? Só chegar na beira do mar e ela me abençoa, me inspira. Vou escrevendo, a onda vem e apaga, até completar…”, diz a artista, em entrevista à Continente. Mas Lia é o próprio sincretismo, pois também é devota de Nossa Senhora das Graças – há uma imagem da santa em seu jardim – e se diz católica. No terraço da casa própria, na mesma Jaguaribe, que conseguiu com seu trabalho e contribuição política, a cantora relembra momentos de sua história, como o incêndio que, no início dos anos 1980, a deixou “só com a roupa do corpo”. Ou ainda, como era a convivência com as crianças na época em que trabalhava na escola. “Adorava cozinhar para eles, tinha aquelas crianças como meus filhos.”
Patrimônio Vivo do Estado desde 2005, Lia de Itamaracá vive em
Jaguaribe, onde está o Centro Cultural Estrela de Lia
Entre o mar de Jaguaribe e a casa de Lia, está assentado o Centro Cultural Estrela de Lia. Ou melhor, uma parte dele. O projeto, que visa fomentar a cultura do local, prevê a construção de um espaço para a expressão de cirandas e cocos. Encontros que outrora causavam frenesi em Itamaracá e fizeram da cidade uma referência nesse assunto. No planejamento, constam também atividades sociais e pedagógicas, como oficinas de cerâmica, de fotografia, de percussão, de culinária com as moradoras da ilha e outras. Vê-lo em funcionamento é um dos maiores sonhos de Lia.
Mas, apesar da aprovação do projeto pela Superintendência do Patrimônio da União (SPU) e da Agência Estadual do Meio Ambiente (CPRH), e de a proposta para a construção já ter sido encaminhada pela Secretaria de Planejamento e Gestão do Estado para que o município execute a obra, o que existe hoje ali é apenas uma larga tenda circular. Entramos em contato com a Prefeitura de Itamaracá para obter informações sobre o motivo de as obras não terem sido iniciadas, ou se haveria previsão para o início.
Por telefone, Gilberto Lopes, procurador do município, afirmou à Continente que uma alteração teria sido necessária no projeto inicial por exigências ambientais. Seria preciso, então, uma nova aprovação para que a construção do Centro começasse. “Não posso falar em previsão, o que posso dizer é que a licença ambiental do CPRH tem que sair para se abrir a licitação. Abrindo a licitação, inicia-se a obra. Não tem previsão de início, porque ainda vai ter a licitação. Essa informação é dada pela Secretaria de Infraestrutura ou Planejamento. O próprio edital diz que, no momento em que houver o contrato, a empresa responsável tem alguns dias para começar a obra”, afirma o representante. Enquanto aguarda, Lia segue realizando outros projetos e divulga o livro Lia de Itamaracá: 75 anos cirandando com resistência, sorrisos e simplicidade (2018), levando sua ciranda para além da ilha.
Voltando à trajetória musical da artista, seu primeiro LP foi A rainha da ciranda, lançado em 1977, pelo selo Tapecar. Hoje, é daqueles vinis raríssimos. Com interpretações emblemáticas da cantora aos 30 e poucos anos, o repertório é composto por símbolos do gênero pernambucano, como Quem me deu foi Lia, desta vez em sua própria interpretação, Moça namoradeira e Minha ciranda, de Capiba. Nos anos 1970, o empresário Fernando Borges teria sugerido essa gravação à artista. Vários ensaios foram realizados em Itamaracá, mas, após o lançamento, ela diz ter recebido apenas 25 cópias e nenhum percentual sobre as vendas do disco.
Os álbuns seguintes, já na era dos CDs, só viriam mais de 20 anos depois: Eu sou Lia (2000) e Ciranda de ritmos (2008), ambos já com a parceria do amigo e produtor Beto Hees. O quarto disco está em processo de gravação desde março, trazendo na produção artística Helder Aragão de Melo, o DJ Dolores. A ideia inicial seria gravar boleros, bregas antigos e “outros gêneros radiofônicos”, não necessariamente cirandas. A proposta logo agradou à artista, pois são ritmos que fazem parte da playlist dela e de Toinho, seu marido. Ambos fãs de Agnaldo Timóteo, Roberto Carlos e Reginaldo Rossi.
Ainda em construção, é certo que o repertório será de inéditas, prezando por interpretações marcantes. Chico César, Lirinha, Alessandra Leão, Iara Renor, Ava Rocha e outros compuseram especialmente para o novo álbum. “Seria inevitável trazer ciranda, percebi que ela se inspira mesmo cantando. Mas a gente está tentando trazer uma produção diferente, mais contemporânea, com mais grave, mais definição. Eu apresento as músicas e ela filtra as que gosta. A essência, como não poderia deixar de ser, é Lia de Itamaracá”, adianta o produtor artístico.
Com outros nomes da música pernambucana, no início da década de 1990, DJ Dolores participou da agitação do manguebeat, movimento que fomentou diálogos entre a cena artística da capital, ouvinte de rock, pop e outros estilos, e as culturas populares, vindas sobretudo de áreas periféricas e rurais do estado.
“Nos anos 1980, a cultura popular ficou sumida, um pesquisador ou outro que trazia. Chico Science conhecia pessoas da cultura popular e compôs A praieira, que fazia ligação com praia, evolução e revolução”, pontua o crítico, jornalista e pesquisador José Teles em entrevista à Continente. A canção mencionada é um dos maiores sucessos do grupo, tocando até em novela da Globo, o que significava muito para uma banda pernambucana, em início de carreira, naquela época. A praieira, uma espécie de ciranda rock’n’roll, mais pesada, foi gravada no álbum que apresentou o manguebeat ao mundo, Da lama ao caos (1994), de Chico Science & Nação Zumbi, cuja concepção da capa é do cineasta Hilton Lacerda e do DJ Dolores.
Durante os shows, era comum que Chico Science convidasse o público a formar uma grande roda para dançar ciranda, já nos primeiros acordes da música. Em consonância à busca pela tradição, quatro anos depois, Lia de Itamaracá seria convidada a integrar o Festival Abril pro Rock, que naquela edição trazia também Ratos de Porão, Júpiter Maçã e Sheik Tosado, exponentes do rock nacional, no line-up. A apresentação de Lia, em 1998, entrou para a história do evento e, segundo ela, contribuiu para que várias gerações se aproximassem de seu trabalho, e consequentemente, da ciranda.
“O que fizemos foi dar palco para a cultura popular na mesma grandeza que dávamos às bandas pop, que estavam se projetando. Lembro que um jornalista de São Paulo veio cobrir o APR e ficou impressionado como Lia colocava o guri com a camisa do Metallica e a moça da saia florida para dançar de mãos dadas e em círculos”, relembra Paulo André, fundador e produtor Abril pro Rock.
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Bem antes disso, no início dos anos 1970, a região metropolitana sediava festivais destinados exclusivamente à ciranda. Inicialmente difundida por trabalhadores rurais, a manifestação foi sendo produzida também por trabalhadores da construção civil e de outras categorias das classes populares. A partir da década de 1950, à medida que o país entrava no processo de industrialização e urbanização, o êxodo rural crescia. Em Pernambuco, com as numerosas compras dos engenhos pelas usinas, e as perseguições políticas a agricultores de ideias progressistas, uma parcela da população rural se direcionava à região metropolitana, na esperança de novas oportunidades.
Dentre os que faziam cultura, mas também tinham suas vidas, de certa maneira, imbricadas à monocultura canavieira, estavam Mestre Antônio Baracho, Mestre Geraldo de Almeida, da Ciranda Imperial, e Mestre Salustiano, da Ciranda Nordestina. Os três saíram de áreas rurais em direção à região metropolitana.
A partir da década de 1970, a classe média também começava a se interessar pelo gênero e a participar dos encontros. Esse alargamento do público para as classes mais abastadas teria sido resultado da divulgação das manifestações tradicionais do estado (coco, ciranda, maracatu de baque solto e de baque virado) por grupos como o Movimento de Cultura Popular (MCP) e o Movimento Armorial, formados por artistas, intelectuais e pesquisadores da capital que propunham debates, diálogos e, entre outras ideias, uma proximidade com as culturas relacionadas à tradição de Pernambuco.
Se, nas décadas anteriores, os registros apresentam terreiros, áreas periféricas ou beiras de praia como ambientes de ciranda, com o crescimento do interesse pela classe média, a partir dos anos 1970, os encontros também aconteceriam em outros espaços, como bares, restaurantes, clubes sociais e locais privados. A partir disso, a Empresa de Turismo Pernambucano (Empetur) e a Empresa Metropolitana de Turismo (Emetur) integrariam as cirandas ao calendário de eventos turísticos da cidade, através da criação de festivais.
Um dos locais que sediaram várias edições do Festival de Ciranda foi o Pátio de São Pedro, no Bairro de São José, por isso mesmo bastante mencionado nas entrevistas para esta reportagem. Essas competições da “dança da moda pernambucana”, como se refere o pesquisador e folclorista Evandro Rabello, no livro Ciranda: dança de roda, dança da moda (1979), eram formadas por grupos da capital – a Ciranda Imperial, de Mestre Geraldo, e a Ciranda Mimosa, de João da Guabiraba, por exemplo – e outros da Mata Norte e do litoral, como a Ciranda Cobiçada, de Dona Duda. Na época, havia também frequentes rodas de ciranda na pracinha de Boa Viagem, na Casa da Cultura e pelo centro do Recife.
Apesar do tom festivo dos encontros, sobretudo durante os ditos “tempos áureos da ciranda” – entre as décadas de 1970 e 1980 –, é preciso atentar para o período histórico marcado pelo regime militar no Brasil. Segundo a historiadora e pesquisadora Déborah Callender, que participou do Inventário da ciranda, organizado pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), além do público que frequentava as cirandas apenas em busca de diversão, havia também intelectuais e pessoas engajadas que se reuniam nos ambientes culturais – como o Bar Cobiçado, no Janga, e o Bar Sargaço, em Itamaracá, em que a Ciranda de Lia agitava aos sábados – para discutir política.
“Esses espaços precisavam estar um pouco camuflados, vamos assim dizer. Não podemos dissociar a questão cultural de seu cenário político naquele momento, mas muitos também iam apenas para o divertimento. A vigilância era permanente e, ao mesmo tempo, escamoteada. Em Abreu e Lima, isso também acontecia. Mas a classe média não ia tanto lá, era mais em Itamaracá e no Janga. A polícia estava sempre rondando por ali e, volta e meia, proibia a ciranda de se apresentar, afirmando que perturbava a ordem e o sossego público”, pontua a pesquisadora.
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Fui tomar banho no toco da sapucaia
Uma morena na praia
Perguntou quem era eu
Eu disse a ela
Eu me chamo Antônio Baracho
Sou o cavalo de aço
Cirandeiro de Abreu.
Severina Baracho aprendeu na juventude a cantar e compor
versos de cirandas com o pai Antônio
Entre os que escreveram seu nome na história da ciranda está Antônio Baracho da Silva. Mais do que em documentos oficiais – já que são poucos os registros existentes –, sua trajetória e obra permeiam a memória da tradição popular do estado. Nasceu no Engenho Santa Fé, em Nazaré da Mata, em 1907. Foi mestre de açúcar, mestre de maracatu, violeiro e, depois, funcionário da construção civil, como constava em sua carteira de trabalho. Decidiu deixar a Zona da Mata Norte e migrar para o litoral, pelos anos 1950, numa época em que a escassez apertava pela região. Seu destino foi Abreu e Lima.
Naquela época, porém, a região ainda se chamava Maricota. Apesar de ter nos deixado há mais de 30 anos, em decorrência do câncer de garganta, suas composições se mostram contemporâneas e continuam reverberando através de muitos outros artistas. Seja pela voz das próprias filhas, Dulce e Severina, influenciando João Limoeiro – que relembra saudoso de quando tocava ganzá com ele –, Maciel Salú, Isaar, Quinteto Violado, Maestro Forró, ou por Siba Veloso, que, apesar de lamentar não tê-lo conhecido, diz encontrar em Baracho uma de suas principais influências.
Da mesma maneira que são poucos álbuns e gravações com o mestre, há também poucas canções registradas com os diretos autorais atribuídos a Baracho. No site do Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB), por exemplo, cujo acervo conta com mais de 82 mil discos brasileiros, há apenas 13 composições com autorias relacionadas a ele. De certo modo, esse número parece contraditório, em se tratando do “mais autêntico mestre cirandeiro”, como se refere a Baracho uma matéria do Diario de Pernambuco do dia 19 de junho de 1975. Ou, ainda, como depõem sobre sua criatividade os que conviveram com ele.
“Meu pai fazia as cirandas, mas não registrava. Só queria mostrar o que era – e pegavam as cirandas dele”, afirma Severina Baracho, em entrevista à Continente. Disputas em torno de direitos autorais ou canções sem registros e em domínio público, aliás, já renderam discussões entre os que fazem a ciranda em Pernambuco. “Existe uma circularidade que é muito da cultura popular. Na verdade, isso (de não haver tantos registros) não é uma característica apenas da ciranda, é dos cocos, de loas de maracatu… Algumas manifestações, enquanto culturas populares no gênero música estão em domínio público”, explica a historiadora Déborah Callender.
Dos raros registros de gravações do Mestre Baracho cantando, há Ciranda no Pátio de São Pedro – Baracho e seus cirandeiros (1976), álbum gravado ao vivo e lançado pelo selo Cactus. Na fotografia da capa, é possível ver como as rodas de ciranda costumavam reunir gente em frente à Catedral de São Pedro dos Clérigos, no Pátio, com um único fim: cirandar.
A saudosa gravadora Rozenblit, responsável por vários títulos importantes do estado, também registrou cirandas, Vamos cirandar (1972) é considerado o primeiro LP exclusivamente do gênero. Organizado por Nelson Ferreira, um dos maiores nomes do frevo, além da Ciranda de Baracho, também participaram das faixas a Ciranda Cobiçada, de Dona Duda, e a Ciranda Imperial, do Mestre Geraldo de Almeida, da Bomba do Hemetério.
O curta Baracho: história da ciranda (1985), dirigido por Eduardo Homem e realizado pela TV Viva, é o único registro audiovisual do “rei sem coroa” – como Antônio Baracho se intitulava. Disponível no Youtube, o minidocumentário apresenta o artista em seu lugar de pertença, nos últimos anos de vida, em Abreu e Lima, ao lado de moradores e das filhas Dulce, Severina e Lia. “O mestre de ciranda e de maracatu deve ser inventor, criador, compositor e autor, ter veia poética e viver da deusa poesia”, é umas das falas trazidas no vídeo.
Na época das filmagens, o produtor e videasta Nilton Pereira fazia parte da equipe da TV Viva e, por isso, teve o privilégio de conhecer e gravar as imagens de Baracho para o doc. No segundo semestre de 2018, Niltinho filmou outra ponta da história da ciranda e do maracatu de baque solto, o Mestre Anderson Miguel, de apenas 23 anos. Essas experiências, além da descoberta de que encontros de ciranda continuam a ocorrer na Mata Norte do estado, fizeram com que Nilton e Roger de Renor, seu parceiro no Som na Rural, idealizassem o Ciranda rural. Aprovado pelo Funcultura, o projeto homenageou o Mestre Zé Galdino, grande poeta da Ciranda do Amor, de Ferreiros, e devolveu ao Pátio de São Pedro as rodas de música e dança que outrora lhe eram frequentes, em encontros ocorridos aos domingos, no segundo semestre de 2018, levando velhos e novos admiradores de ciranda ao local, hoje sem a animação cultural de décadas atrás.
O encerramento do projeto, por sua vez, aconteceu em dezembro, na beira da Praia de Jaguaribe, em Itamaracá, reafirmando outro espaço de referência, com a apresentação de Lia de Itamaracá. Participaram do Ciranda rural várias gerações do gênero, entre elas, Mestre Luciano, da Ciranda Flor do Lírio; Mestre João Limoeiro, da Ciranda Brasileira, de Carpina; Mestre Anderson Miguel e sua Raiz da Mata Norte; e as Filhas de Baracho, Dulce e Severina, que dividiram seus microfones com outros artistas, entre eles, Siba Veloso, Isaar e Maciel Salú.
Essas movimentações no Pátio e em Itamaracá, proporcionadas mais recentemente pelo Ciranda rural, certamente relembram os encontros do passado. Para além disso, apresentam à sociedade civil e seus governantes como os espaços públicos podem – e devem – ser ambientes em que a cultura acontece democraticamente, sobretudo através de políticas públicas voltadas para a área, como foi o caso. Através da música e da dança, a experiência da ciranda se interliga à sua essência: uma manifestação de todos, para todos e, de preferência, com todos, ou com o maior número possível de pessoas.
Nas danças ligadas à tradição popular, valores e saberes – como o afeto, a ancestralidade, o sentimento de pertencimento (algo bastante caro à ciranda), a territorialidade e a espiritualidade –, constituem-nas tanto quanto o movimento e a coreografia em si. A metalinguagem presente na letra de Minha ciranda (1975), composição de Capiba, talvez seja a melhor síntese do que é essa experiência. Mais do que integrar uma roda, dançar ciranda é verbo que acontece no coletivo. É entregar-se no corpo da música e pertencer àquele momento de trocas de energias, sorrisos e mãos.
Minha ciranda não é minha só
Ela é de todos nós
A melodia principal quem guia
É a primeira voz
Pra se dançar ciranda,
Juntamos mão com mão
Formando uma roda
Cantando uma canção.
***
“Ciranda é uma confraternização onde todos dão as mãos. Não tem preconceito: dança preto, dança branco, mulato, mulher, homem…”, afirma Lia, sobre como percebe o caráter democrático das rodas. Para Maria Acselrad, dançarina, antropóloga e professora de Dança da Universidade Federal de Pernambuco, essa dimensão comunitária realmente existe, mas as diferenças permanecem presentes. “A dança não as elimina. O que acontece é que, durante a ciranda, os diferentes dão as mãos a assim podem passar horas”, diz.
Mestre Anderson Miguel, de Nazaré da Mata, lidera a Ciranda
Raiz da Mata Norte há sete anos
Durante os encontros do Ciranda rural, pôde-se observar que o público se diversificava, formado por pessoas de diferentes gêneros, classes sociais e raças. A beleza do encontro se potencializava à medida que a pluralidade acontecia. Num dos domingos do evento, esteve presente o músico, ator e brincante Helder Vasconcelos, que, junto a Siba Veloso integrou, nos anos 1990, o grupo Mestre Ambrósio, conhecido por imergir nas potências culturais do interior do estado. Enquanto conversávamos, a roda ia ocupando o Pátio de São Pedro. Helder pontua sobre o afeto envolvido na ciranda, enquanto manifestação, e a importância política de um evento como aquele acontecer num local histórico da cidade. “A ciranda é uma das manifestações mais importantes no sentido de juntar gente. A dança é simples, não exige que você aprenda determinados passos, coreografias ou movimentos. Não é uma manifestação apenas simbólica, já que, por ser circular, gera uma produção real de ligação, mobilização e encontro físico. É preciso pegar as mãos para dançar, ou seja, é real. Uma expressão realmente em que o afeto é o cerne e, por ser girando, leva a uma contextualização muito importante das danças circulares que existem no mundo todo, como a mobilização de energia e a harmonização no lugar”, afirma o garanhuense.
As danças circulares citadas por Helder, ou seja, as que apresentam suas configurações coreográficas em círculos – simbologia universal –, com participantes ligados ou não através de suas mãos, estão presentes em diversas culturas ao longo da história da humanidade. Até hoje, gregos, russos e judeus, por exemplo, têm celebrações através de rodas; os celtas, no passado, comemoravam o plantio e a colheita dançando em grandes círculos, compartilhando juntos.
Percebendo que as rodas existem em várias danças pelo mundo e o modo com que estimulam a harmonia, a autoestima e o sentimento de pertencimento dos que participam, na década de 1980, Bernhard Wosien, bailarino e coreógrafo polonês, sistematizou as danças circulares sagradas, modalidade que só chega ao Brasil na década seguinte.
“Ele começou a perceber comunidades inteiras pela Grécia, Turquia e outros lugares celebrando todos juntos. E disse: ‘Ali está a paz, se eu conseguir mais manifestações dessas pelo mundo, as pessoas vão se respeitar umas às outras’”, explica Patrícia Tolentino, focalizadora das danças circulares sagradas e da dança da paz mundial, há mais de 20 anos. Na visão dela, a ciranda pode ser incorporada às danças circulares, e pontua: “Na roda, todo mundo é igual”.
Além da ciranda, Bi é mestre do Maracatu Estrela Brilhante, de
Nazaré da Mata
Nas representações brasileiras, as celebrações de etnias indígenas (como a parichara, dos canauanin kabixaku kanau’wau, e a da-ño’re, dos xavantes), além das cirandas, estão entre as principais danças em comunidade e círculos. A umbigada, o toré, os cocos de roda e as danças ciganas, ligadas a tradições pagãs, são outras.
Na visão de Valéria Vicente, coreógrafa, passista e professora de Licenciatura em Dança da Universidade Federal da Paraíba, as rodas de ciranda podem ser incluídas no conjunto de danças circulares, porém, a designação não estaria em sua origem. “A ciranda pode ser incluída nas práticas de danças circulares, mas não tem isso como sua característica. As danças circulares passam a ser uma conformação específica de diversas danças e, entre elas, a ciranda pode estar. A ciranda nasceu antes dessa sistematização que vem sendo difundida”, explica Valéria.
“O círculo traz elementos de visualização coletiva, todos se veem”, complementa ela. “A sensação de democracia é a de que não há ninguém à frente, nem acima. Todos estão lado a lado e podem ver a todos, igualmente. A configuração circular tem essa característica e permite também a continuidade. Você consegue sentir o aprofundamento da dança no corpo, porque você vai continuando o fluxo energético. Essa sensação de democratização e de comunidade é trazida pela configuração circular, que pode ser ligada a diferentes cosmologias.”
Por não se restringir a uma data comemorativa específica ou ter um número limitado de participantes, mestras, mestres e participantes frequentemente se referem à roda de ciranda como algo acessível. “Apesar de alguns grupos terem sua própria indumentária – inclusive, a partir dos Festivais de Ciranda, que criaram critérios como esse – a prática em si não tem indumentária, não tem passos preestabelecidos, não pede o conhecimento de como dançar para entrar na roda. Isso dá um tom de comunhão, compartilhamento e sensibilidade ao círculo. Não tem hierarquia, porque não há início nem fim. Há estudos posteriores que trabalham numa perspectiva educativa, levando a ciranda para dentro de movimentos sociais, por exemplo”, afirma a historiadora Déborah Callender. Ilustrando a ciranda integrada a ações em movimentos sociais, estão as rodas formadas durante edições da Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia, na Paraíba, que tem organização do Polo da Borborema – formado por 13 sindicatos – e da AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia.
Através de sua música e representatividade como mulher negra, Lia de Itamaracá, junto com Severina e Maria Dulce Baracho, que a acompanham na banda, comandam, há cinco edições, rodas de cirandas com milhares de trabalhadoras rurais que reivindicam seus direitos e defendem, anualmente, a agroecologia. Em edições anteriores, o evento acontecia no dia 8 de março (Dia Internacional da Mulher), porém, este ano, teve sua data modificada para 14 de março, quando se completou um ano do assassinato de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro. Em homenagem às agricultoras e à Marielle, Severina Baracho tirou esta ciranda de improviso:
Cidade de Areial,
Estado da Paraíba
Com a força das mulheres
E a nossa união
Elas lutam pela terra
Com amor à sua vida.
São mulheres de coragem
E muita disposição
Somos contra a violência
E contra a opressão.
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Vestido azul estampado, turbante luminoso na cabeça e um par brincos grandes de pedrarias. Foi assim, como quando vai se apresentar, que Severina escolheu contar sua história e aparecer nas fotografias. Saiu de Nazaré da Mata ainda na infância. Com o pai, a mãe, Josefa Maria da Conceição, e três dos quatro irmãos, Maria José, Lia e José. Maria Dulce, a outra irmã, ficou com a madrinha em Carpina para ir depois. Eram os anos 1950, e Dona Biu, como é chamada pela vizinhança e pelos familiares, tinha apenas seis anos, mas já entendia o respeito que o pai conquistara na arte.
Com a visão de vanguarda, característica de muitos mestres, Antônio Baracho percebia que, ali, pelo litoral, a ciranda encantava mais o público do que o maracatu. Dedicou-se, então, a compor cirandas. Para a roda começar, naquela Abreu e Lima do passado, só era preciso pendurar o candeeiro na madeira. Iniciava-se a cantoria e os batedores se revezavam entre o ganzá, o tarol e o sopro. Não tinha microfone, era só a voz mesmo. O dinheiro que entrava com a música, era para o aluguel e para alimentar os filhos. Anos mais tarde, Baracho se tornaria o principal difusor do gênero na capital.
“Por aqui era tudo mata. Não tinha essas casas tudo não. Não tinha nem calçamento, era no barro mesmo. A gente brincava ciranda a noite todinha, só terminava de manhã com a poeira levantando”, relembra Severina, sentada no sofá de sua casa, no Bairro de Caetés III, onde mora com a neta Amanda Barbosa da Silva e cinco bisnetos.
Com mais de 50 anos dedicados à ciranda, Mestre João Limoeiro
é referência para as novas gerações
Há mais de 20 anos, com a irmã Dulce, ela divide os vocais na Ciranda de Lia de Itamaracá, e o compromisso em perpetuar o legado artístico do pai. Exemplos da continuidade de saberes ancestrais, as duas aprenderam a “responder” nas cirandas com Baracho. Repetindo, frequentando as rodas, na práxis da brincadeira. Embora a irmã Maria José nunca tenha se interessado em integrar o coro, a outra, Lia, fazia o terceiro vocal do grupo de Baracho. Mas, desde que começou a frequentar a igreja evangélica, Lia teve que escolher entre a ciranda e a religião. Escolheu a segunda. No documentário Baracho: história da ciranda ainda é possível ver as três cantando juntas. “Lia era a mais apaixonada por ciranda, mas não canta mais não. Quando eu e Dulce não ia, ela ficava mal com a gente. Maria é que nunca foi chegada em ciranda, o negócio dela era forró”, conta Severina, que é mãe de três filhos.
As duas “Filhas de Baracho”, como são apresentadas, não têm nenhum álbum lançado, mas já gravaram com alguns artistas. No CD Fuloresta do Samba (2002), por exemplo, que marca a estreia de Siba e a Fuloresta, elas emprestaram suas vozes na faixa Bobina, uma composição de Siba em homenagem ao pai delas. Isaar, cantora pernambucana, também as convidou para cantar no álbum Azul claro (2006). “Quando comecei a tocar com elas, abriu-se um mundo para mim”, revela Isaar sobre a experiência.
Desde que completou 65 anos, há alguns meses, Dona Biu, que vivia se equilibrando entre os cachês das eventuais apresentações de ciranda e o Bolsa Família, enfrenta dificuldades financeiras, pois teve que dar entrada em sua aposentadoria, processo que a impossibilita de receber o Bolsa Família. “Estou assim, quando tem um show ou, quando meus filhos têm condição, eles me mandam. Se eu não risse era pior, né? Mas Deus é muito bom”, diz a artista.
Na cidade onde Severina mora, Abreu e Lima, em 10 de maio é festejado o Dia Municipal da Ciranda. A data não é por acaso, marca o aniversário de Baracho. Este ano, foi aprovado pela Assembleia Legislativa o projeto para o reconhecimento pelo estado dessa data como o Dia da Ciranda, elevando assim a comemoração ao nível estadual, o que confere mais valor à manifestação cultural. Diferentemente do frevo e do maracatu, que já têm suas datas comemorativas, e são bens culturais imateriais registrados, a ciranda ainda está em processo de registro no livro de Bens culturais de natureza imaterial do Iphan.
Este ano, a 20ª edição da Feira Nacional de Negócios do Artesanato (Fenearte), que acontece entre os dias 3 e 14 de julho, no Centro de Convenções, traz a ciranda como tema. Toda a programação de atividades, cenografia e arte do evento serão desenvolvidas a partir da temática. Segundo Márcia Souto, diretora de Promoção do Artesanato e da Economia Criativa da Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco (AD Diper), Lia de Itamaracá, Dona Duda, da Ciranda Cobiçada, do Janga, e o Mestre Baracho, pai de Dulce e Severina, serão os homenageados desta edição.
Dos nomes femininos que lideram grupos de ciranda em Pernambuco, além das Filhas de Baracho, Lia de Itamaracá e Dona Duda, há também Cristina Andrade, da Ciranda Dengosa, de Água Fria, e a ialorixá Beth de Oxum à frente da Ciranda do Acalanto, em Olinda.
Além dessas mulheres, nenhum dos entrevistados ou pesquisadores ouvidos para esta reportagem sabiam informar se há outras cirandeiras em atividade no estado. Essa realidade se verifica também no Dossiê do Inventário Nacional de Referências Culturais da Ciranda em Pernambuco, realizado pela Fundarpe em 2014. Segundo o documento, do total de 28 grupos de cirandas inventariados pelo estado, apenas seis têm mulheres à frente – as trazidas nesta reportagem. Os outros 22 são encabeçados por homens. Esses dados ilustram, além da distinção de gênero entre os que lideram grupos de ciranda no estado, em qual região as cirandeiras se localizam, já que as seis mencionadas estão em cidades da Região Metropolitana.
Mas a predominância de homens ocupando as posições de liderança entre as manifestações populares não é exclusividade da ciranda. No cavalo-marinho ou no maracatu rural, por exemplo, isso se repete. Mesmo com as conquistas sociais das mulheres – que estão presentes e contribuem com a qualidade dos brinquedos de modo expressivo –, elas ainda são minoria entre as altas hierarquias deles.
Em três dos maiores grupos de maracatu de baque solto de Nazaré da Mata – o Cambinda Brasileira, o Estrela Brilhante e o Águia Misteriosa –, há muitas mulheres participando como índias, baianas, costureiras, caboclas, rainhas, ou outras funções, mas, até aqui, nenhuma chegou à posição de mestra neles. “A figura de protagonista é um processo histórico nesse fazer e refazer cotidiano dos agentes. É do universo da cultura popular, e o universo da cultura popular está inserido na sociedade em que a mulher, mesmo com todos os avanços, com todos os direitos conquistados, ainda não tem o protagonismo”, contextualiza a historiadora Déborah Callender. Diante disso, é importante mencionar o Maracatu Coração Nazareno, da Associação de Mulheres de Nazaré da Mata (Amunam), o único do estado formado exclusivamente por mulheres e que, desde 2004, vem endossando a representatividade feminina entre as agremiações.
Santino Cirandeiro, da Ciranda Flor de Laranjeira, na sala de sua casa, em Nazaré da Mata
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Na sede do Maracatu Águia Misteriosa, em Nazaré da Mata, Seu Vicente Manoel e Dona Maria Célia nos aguardavam à porta. Desde 1991, o brinquedo compõe o conjunto de agremiações da cidade. Já dentro da sede, conversando com os dois, percebe-se que ali – além de troféus, bandeiras, chapéus de caboclo e outras indumentárias de vários carnavais – também se abrigam a dedicação, os sonhos e a força de muita gente. Os integrantes reunidos naquela manhã de sábado receberam a equipe da revista calorosamente, mas logo retomaram os afazeres. Afinal, são mais de 160 brincantes a cada carnaval. Entre cortes, costuras, medidas e anotações, os dois continuavam o trabalho, mas não escondiam o sorriso de felicidade. Este ano, o Águia foi campeão do grupo 1 no Concurso de Agremiações; no próximo carnaval, participará do grupo especial. E essa vitória coincide com o retorno de um dos jovens destaques do maracatu e da ciranda da Mata Norte que o Águia ajudou a revelar, o Mestre Anderson Miguel.
Hoje, com 23 anos de idade, nos últimos cinco, Anderson se dedicou a ser mestre de outro brinquedo importante da região, o Cambinda Brasileira, do Engenho Cumbe. Nascido em Nazaré, por influência do pai, Aderito Amaro, desde a infância, frequentava os terreiros de sambadas e os ensaios. Num desses encontros, no Espaço Cultural Mauro Mota, em 2006, o Mestre Zé Flor seria o primeiro a lhe dar oportunidade para cantar. Bem jovem, Anderson já seria convidado a assumir o Águia Misteriosa, tornando-se mestre de maracatu, sua hierarquia máxima, aos 15 anos. Permaneceu por um tempo no Águia, até voltar ao Cambinda para participar do centenário histórico do maracatu. Há alguns meses, está novamente no Águia. “Costumo dizer que o Cambinda me pariu e o Águia me criou”, define ele. Diferentemente de sua história com o baque solto, a imersão na ciranda é bem mais recente e aconteceria por acaso.
Antes da legislação (9054/97 art. 39) que limita a circulação de carros de som aos comícios e passeatas, durante as eleições, era comum, em cidades da Mata Norte, candidatos contratarem artistas da região para fazerem composições destinadas à propaganda eleitoral. Além da disputa pelo cargo, havia também a rivalidade através dos jingles, que durante as campanhas circulavam e permaneciam em constante desafio pelas cidades.
Nas eleições de 2012, enquanto um candidato a prefeito contava com dois dos melhores cirandeiros da região, seu adversário procurou uma indicação à altura com Anderson Miguel, que, até então, era somente mestre de maracatu. Mas o músico indicado não pôde comparecer e Anderson teve que improvisar sua primeira ciranda. A experiência lhe despertou para o gênero. Comprou surdo, tarol, ganzá e os outros instrumentos necessários e foi convidando músicos da Capa Bode, escola de música tradicional de Nazaré, para integrarem sua banda. Em 4 de outubro de 2012, ele criaria a Raiz da Mata Norte, nome que usou por causa de uma de suas maiores influências, Mestre Barachinha, ícone da cultura popular da região.
“Eu peguei uma linha diferente, a do Mestre Zé Galdino, que colocou na ciranda um pouco da cantoria de viola e as paródias”, explica Anderson sobre como percebe seu estilo, enquanto afirma sua admiração por Galdino. Além do retorno ao Águia, o ano de 2018 também marcaria sua carreira com o lançamento do álbum Sonorosa, produzido por Siba Veloso, um de seus padrinhos artísticos.
“É um disco de encontro meu e dele; dele e meu. A proposta é tentar projetar o trabalho e a linguagem dele, ou seja, a ciranda e o maracatu, para outro público, que gravita em torno do meu trabalho e da cultura popular brasileira, mas não necessariamente o público da Mata Norte que já o conhece. É um disco de música para um público que é mais da música que da poesia, mas que, através da poesia, de algum modo também acessa”, comenta Siba em entrevista à Continente.
Gravado num estúdio montado em pleno Engenho Cumbe, para que os próprios músicos da Raiz participassem, com bastante delicadeza, Sonorosa insere à tradição da ciranda e do baque solto alguns novos elementos. Isto é, participam dos arranjos, além dos metais (trombone, trompete) e da percussão (tarol, surdo e o ganzá), comuns ao universo da tradição, outros instrumentos como guitarras, clarone e synths, muito associados a outros gêneros.
De certa forma, essas experimentações estéticas entre o contemporâneo e o tradicional, dialogam com outros trabalhos de Siba, tanto em sua carreira solo, quanto nos desenvolvidos com a Fuloresta ou no projeto Azougue Vapor (2014). Esse, desenvolvido junto aos mestres João Limoeiro, de Carpina, e João Paulo, de Nazaré.
“Toda a música da Fuloresta tem muito a ver com uma tentativa de alargar, expandir os horizontes daquela estética musical e rítmica. As pessoas usam o termo modernizar ou inovar, mas, para mim, tem mais a ver com explorar possibilidades que já são do próprio modo da expressão”, explica Siba.
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Embora cada manifestação da cultura popular tenha suas práticas, origens e simbologias próprias, é comum que os brincantes se dediquem a mais de uma ao mesmo tempo. Exemplo disso é Cristina Andrade, outro Patrimônio Vivo do estado, mestra da Ciranda Dengosa, que, a aproximadamente 60 km de Nazaré da Mata, no Recife, é também diretora do Pastoril Estrela Brilhante e do Urso Cangaçá. O Mestre Geraldo de Almeida, por sua vez, tem a Ciranda Imperial, mas lidera também, com a ajuda dos filhos, o Reisado Imperial, desde os anos 1950, na Bomba do Hemetério. Na Mata Norte, a vivência do maracatu de baque solto, do repente e do coco se associam bastante à ciranda. “Quem brinca não separa”, atenta Beth de Oxum, da Ciranda do Acalanto, de Olinda.
Luciano Ferreira, em apresentação no Ciranda Rural, no Pátio de São Pedro,
é mestre cirandeiro e de maracatu rural
Do mesmo modo que acontece com Anderson Miguel, outros dois destaques da nova geração do gênero no estado, Mestre Bi, da Ciranda Bela Rosa, e Mestre Luciano Ferreira, da Ciranda Flor de Lírio, também têm suas práticas ligadas ao baque solto. Ambos tiveram seus primeiros contatos com a cultura popular através do maracatu, por influência familiar, para, só depois, criarem seus respectivos grupos de ciranda.
“Estou na cultura já faz 10 anos. Comecei com o maracatu, mas sempre acompanhava as cirandas de Zé Galdino, João Limoeiro e Santino, os mestres mais antigos. Fundei a Ciranda Bela Rosa, faz cinco anos. A minha estreia foi em Ferreiros”, afirma Bi, maneira como Lezildo Santos prefere ser chamado. Ele complementa: “Nesses últimos dois anos, não tem faltado apresentação não por aqui, sempre tem”. Além de sua ciranda, aos 33 anos, também se dedica à posição de mestre no Maracatu Estrela Brilhante, outra tradicional agremiação de Nazaré da Mata. Este ano, além disso, vive o desafio de participar da gravação do álbum Encontro de gerações, junto com o veterano Mestre Santino, da Ciranda Flor de Laranjeira. O projeto foi aprovado pelo edital do Funcultura 2018.
Outro ícone do gênero, que este ano também entra em processo de gravação a partir da aprovação no edital é Mestre João Limoeiro, com o projeto João Limoeiro e a ciranda brasileira. Natural da Paraíba, ele mudou-se ainda na infância para a cidade que levaria em seu nome artístico, Limoeiro, no Agreste.
Durante a juventude, em 1968, João veio para o Recife trabalhar como segurança de uma empresa. E ficou por certo tempo, até ir para Carpina, cidade onde se casaria e fundaria sua Ciranda Brasileira, em 1977. Hoje, aos 71 anos, ele faz questão de dizer que 50 deles foram dedicados à música. “Tudo o que eu tenho, um lenço, o que for, foi a ciranda que me deu. Até ela”, diz o cirandeiro, apontando para a esposa, Dona Clotilde, com quem é casado há 40 anos, e conheceu por conta das apresentações. O casal tem os filhos Walter Antônio e Shirlene Maria da Silva, além de Adriana, Adrielly Paula e Karla, filhas da irmã de D. Clotilde, criadas pelos dois.
“Tive muita relação com Antônio Baracho, balancei ganzá dele e eu respondia para ele. O povo era doido por ele. Morreu como pioneiro e com razão de ser. Todo mundo pode cantar bem ciranda, mas dizer ‘eu canto mais que Baracho’, é mentira!”, declara sua admiração, em entrevista à Continente.
Referência para a nova geração, ao lado de Mestre Zé Galdino e de Mestre Santino, a discografia de João Limoeiro conta com 13 álbuns e um DVD. “Meu primeiro LP foi Ciranda brasileira (1982)”, relembra. Como é frequente aos mestres da Mata Norte, com ele não foi diferente, também participou de maracatu, integrando por um tempo o Maracatu Leão Vencedor, de Carpina. Há cinco carnavais, porém, deixou de participar para se dedicar somente à ciranda.
Em 2018, após um AVC, João Limoeiro teve que parar com as apresentações da Ciranda Brasileira por um tempo, mas, desde dezembro passado, já retornou às atividades, com apresentação no Ciranda Rural, no Pátio de São Pedro, e, mais recentemente, um show na cidade de São Vicente Férrer.
“Sempre brinquei de caboclo de lança. Aquela passagem do carnaval do Recife, durante uns 24 anos, era pequena para mim. O cirandeiro que é mestre de maracatu tem a definição da rima mais concreta, mais perfeita e mais viva”, defende Luciano Ferreira, músico de 35 anos, em entrevista à Continente.
Ele, que nasceu no Engenho Terra Nova, em Aliança, mudou-se para Nazaré, onde vive há mais de 10 anos. Há sete, casou-se com Maria José Estevão, uma das descendentes e brincantes do Cambinda Brasileira. De todos os artistas citados, sua ciranda é a mais recente, criada há menos de um ano. A ideia de enveredar pelo gênero surgiu a partir do convite de Mestre Santino para cantar em seu lugar, pois, com a proximidade dos 78 anos, ele pensava em parar e buscava algum substituto. Luciano, no entanto, decidiu fundar seu próprio grupo, pensar as melodias e assumir o lado compositor. E foi assim que, em 25 de junho de 2018, ele iniciaria a Ciranda Flor do Lírio, mais uma batizada por Barachinha.
Nessa contínua troca de saberes entre os mais antigos e os mais jovens, a cultura popular acontece e se perpetua pelos tempos. Através do legado de seus expoentes, memória coletiva e registros, a ciranda, que é parte disso, vem divertindo, juntando gente, circulando e reverberando, há décadas. Seja na região que deu origem a Mestre Baracho, um dos pioneiros do gênero, ou na área metropolitana do estado, onde a rainha Lia de Itamaracá vive até hoje, essa manifestação se renova, experimenta, serve de influências para muitos, mas também resiste. Nessa roda cadenciada, o contemporâneo está de mãos dadas com a tradição.
É hora
Minha ciranda
Está se despedindo agora.
ERIKA MUNIZ, formada em Letras (UFPE), estudante de Jornalismo (Unicap).
BRENO LAPROVITERA, fotógrafo pernambucano.