Entrevista

“É bom sair do epicentro do frevo e observá-lo de fora”

Fundador da banda Eddie, Fábio Trummer conta a história do grupo que comemora, em 2019, 30 anos de carreira como uma das principais referências da música pernambucana

TEXTO AD Luna

27 de Fevereiro de 2019

Fábio Trummer, ou Fabinho

Fábio Trummer, ou Fabinho

Foto Marcelo Soares

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Rua do Sol, Olinda, 1993. Este repórter trocava ideias com Gastão Moreira, então VJ da MTV Brasil, na calçada oposta ao Poco Loco, bar que, naquela década, recebia inúmeros shows de bandas autorais da cena pernambucana e até internacionais, como foi o caso da escocesa Bloco Vomit. Gastão estava no estado para apresentar a primeira edição do Abril pro Rock – realizada no extinto Circo Maluco Beleza, na zona norte do Recife.

De súbito, nossa conversa é interrompida por gritos revoltosos que se somavam aos sons distorcidos de guitarra que vazavam do interior do pub. Em seguida, um bolo humano formado por carinhas que se atracavam raivosamente foi expelido do lugar. Assim acontecia mais um show da banda Eddie. “Na minha época, isso era comum. Em todo show da gente, tinha briga. Até quebrei um dedo apartando uma. Ter confusão em toda apresentação nossa era algo comum. Como assim, em todo show? Alguém pode pensar. Mas era”, relembra Fábio Trummer, vocalista, guitarrista e único fundador remanescente da Eddie. No desenrolar do momento, concordamos Fabinho e eu, que o episódio descrito foi deveras tenso. Mas, como quase sempre acontece, o tempo trata de transformar em pilhéria certos casos estressantes do passado.

Em 2019, a Eddie completa 30 anos de estrada e comemora a data no festival Rec-Beat, em show na segunda de Carnaval (4/3). Sentado à mesa do bar Peneira, nos Quatro Cantos, ponto de referência na cidade-sede da banda, Fabinho deu uma breve repassada na carreira do quinteto. Além dele, complementam a formação clássica, responsável por gravar a maioria dos sete álbuns lançados, a dupla drum'n'bass formada pelos irmãos gêmeos Kiko Meira (bateria) e Rob Meira (baixo), Andret Oliveira (trompetes, teclados & samplers) e Alexandre Urêia (percussão e voz).


Formação atual da banda em seu local de origem

CONTINENTE Como você teve a ideia de criar a Eddie?
FÁBIO TRUMMER Uma das maiores diversões que você podia ter era montar uma banda. No colégio, eu não era um aluno muito atencioso. Mas a escola me deu a possibilidade de encontrar pessoas que pensam como você. Uns amigos tinham feito uma banda no colegial, para um evento do colégio, e, a partir daí, isso despertou em mim uma vontade muito grande...

CONTINENTE Qual era o colégio?
FÁBIO TRUMMER Academia Santa Gertrudes. Isso ocorreu por volta de 1985, 1986. Meu pai tinha um violão e meu irmão tocava uns acordes, que aprendi com ele. Em seguida, já comecei a ter banda. Um amigo perguntou: “Fabinho, tu toca guitarra?”. E eu respondi: “Toco”. “Tu tem guitarra?” Eu ainda não tinha, mas havia esquematizado uma pra comprar. “E tu sabe solar?” Eu disse: “Sei” (risos). Cara, isso foi massa porque tive a necessidade de já ter uns solos prontos para as músicas que eles tinham. Também parei para fazer música. Então, já comecei a tocar compondo.

CONTINENTE E como a Eddie surgiu?
FÁBIO TRUMMER Estava sentado aqui, nos Quatro Cantos, em dona Darci, que é do outro lado. Era começo de 1989, mais ou menos, e já tinha uma banda que já havia se chamado Punch's e Companhia Acme. Por uma necessidade de participar de um festival no Objetivo, a gente teve que mudar a formação, só com pessoas do colégio. Precisava de outro nome. Na época, as bandas brasileiras tinham nomes enormes: Legião Urbana, Capital Inicial, Paralamas do Sucesso. Hoje, para um ouvido acostumado, é uma coisa normal. Mas, na época, escutar uma banda chamada Paralamas do Sucesso, você dizia: “Isso não vai dar certo, cara!”. Mas a gente é de uma geração seguinte, veio negando algumas coisas da anterior e uma delas eram esses nomes compostos. Na época, tinha uma cena inglesa com bandas com nomes tipo Smiths, que achava interessante.

CONTINENTE Blur também? Se bem que eles vieram depois.
FÁBIO TRUMMER É, mas digamos que somos os caçulas dessa geração de nomes curtos. Os caras dessas bandas devem ter minha idade. A gente ouvia muito rock inglês. Mais ou menos o que veio a ser o Recife, sete ou oito anos depois. Chego já nisso aí... A gente ouvia muita música inglesa, The Smiths, The Cure, Happy Mondays, que estava chegando, Bauhaus, Joy Division. Era uma cena inglesa muito forte. Então, o Eddie surgiu inspirado nisso. Tinha também um surfista, Eddie Aikau, um havaiano, que era uma lenda. Houve vários motivos que levaram ao nome Eddie. Eu estava sentado aqui nos Quatro Cantos, quando pensei nisso. Vi uma pessoa com uma camisa escrita Eddie. E aí pensei: “Isso deve ser algum sinal do portal dos Quatro Cantos, é melhor eu obedecer”. Os shows da Punch´s também eram feitos aqui. Bugão tinha uma veraneio com umas caixas...



CONTINENTE Bugão, pai de Buguinha Dub?
FÁBIO TRUMMER Sim. Ele parava aqui, a gente ligava os instrumentos nas cornetas (de som) da veraneio, montava a bateria e tocava aqui na calçada, cara.

CONTINENTE Então quer dizer que o nome Eddie não tem a ver com o mascote do Iron Maiden?
FÁBIO TRUMMER Tem um monte de Eddie, menos o do Iron Maiden. Mas sobre o Iron... Já faz um tempo que afrouxei esses nossos preconceitos. Porque, quando você tocava e era punk não podia ser heavy metal, que não podia ser reggae, que não podia ser axé. De certa forma, minha geração Manguebeat jogou isso pra cima e decidiu que se podia tudo. A gente é olindense, né? Ouve tudo, brinca com tudo. Eu brincava em blocos de Carnaval fora de época, como o do Chiclete com Banana, e achava genial quando eles emendavam um pot-pourri de música nordestinas, acho que de Luiz Gonzaga... As guitarras baianas dos trios elétricos... Acho que o frevo do Eddie é mais desses caras do que necessariamente dos daqui. É um frevo de banda, com baixo, guitarra, bateria. Se você prestar atenção a músicas do Eddie como, por exemplo, um proto frevo da gente, Vida boa (solfeja o riff de guitarra), vai ver que isso vem de guitarra baiana. Só que as técnicas e as harmonias dos caras são outras.

CONTINENTE Então coisas como a Turma do Pinguim influenciaram vocês?
FÁBIO TRUMMER Ouvi muito, cara! Porque, em Olinda, quando eu tinha 10, 11 anos de idade, ia com meus amigos à beira-mar para curtir trio elétrico. E lembro bem: a gente ao lado do trio, sentindo o grave “bum, bum!”. Essas foram minhas primeiras experiências. Quando o cara começava a tocar Vassourinhas na guitarra elétrica, era o ápice pra mim. Algo como ir a um show do Queen e eles tocarem Bohemian rapsody. Aí eu parava pra ouvir aquela técnica. Esses carnavais me atraíam muito. Talvez por serem os da minha infância. A minha memória musical para composição é desse tempo, desses carnavais.

CONTINENTE Interessante essa influência. Era algo que nunca tinha ouvido falar.
FÁBIO TRUMMER É, o frevo é grande demais. Ele vem de todos os lados. Também é uma maneira de você, já consciente (dessas influências), fugir do óbvio. Tem muita gente trabalhando frevo, tem muita gente pensando frevo, mas os pernambucanos vivenciando o daqui. É bom sair do epicentro do frevo e observá-lo de fora.



CONTINENTE No início, se não me engano, o Eddie tocava muitos covers, não é?
FÁBIO TRUMMER Cara, a gente fazia cover porque curtia e, lógico, quando você começa a tocar não tem um repertório próprio – algo que demora a ser composto. A gente adorava bandas como Ramones e Pixies. Chegamos a tentar tocar Sonic Youth, mas fazíamos nossas versões. Na verdade, a gente aprendeu a arranjar música, com baixo, bateria, teclado, fazendo as nossas versões, no início. E também usamos isso como estratégia porque, se a gente fizesse show só com música própria, ninguém iria. A gente usava (do recurso) dos covers para encaixar nossas próprias composições entre eles, de forma pensada, para pode apresentá-las ao público. Foi uma estratégia que deu muito certo porque, com o passar dos anos, foram aumentando as músicas próprias e diminuindo os covers. Até que chegou no ponto em que só havia música nossa.

CONTINENTE Nessa época, qual era a formação da banda?
FÁBIO TRUMMER Na época do Poco Loco, começou comigo tocando guitarra e voz, Vieira, na bateria, e Maninho, no baixo. Entre 1993 e 1996, o Eddie mudou muito de formação. Um ano depois, Animal estava na bateria e Rogério (Roger Man), que a gente chamou pra cantar e chegou a fazer um show cantando. Mas aí ele foi para o baixo, porque Maninho já não estava tão interessado. Era uma época na qual a gente precisava escolher entre a faculdade e a vida de músico. Alguns seguiram a vida acadêmica e a gente seguiu a vida de músico. Depois, saiu Animal e chegou Bernardo para a bateria. Chamamos Fred Eremita para a percussão. Nessa altura do campeonato, já era 1994, 1995, e o Manguebeat já era uma realidade, não necessariamente para o grande público. Mas, para a crítica e o meio, sim.


A banda, em 1996, com Roger Man e Karina Buhr no meio. Foto: Reprodução

CONTINENTE E sobre o primeiro contrato com a gravadora americana Roadrunner?
FÁBIO TRUMMER Na verdade, queria ter gravado antes. Hoje, se pudesse voltar no tempo, teria gravado um álbum já ali, em 1994. Dava pra fazer isso, mas a gente foi enganado pelo sistema do mercado musical. Se tivéssemos a experiência de agora, teríamos uma obra maior, mais representatividade das mudanças que a gente teve nesses anos todos. Porque se mapeia o Eddie com Sonic mambo, de 1998 pra cá. Quem escuta e curtia o Eddie na época, vê que era bem diferente o que tocávamos no palco e como o álbum veio. Ele ficou bem menos barulhento e mais adestrado. E somos mais orgânicos. Mas foi massa pela experiência. O produtor era americano e gravamos (no estado de) Massachusetts, com a Roadrunner, que, na época, era a gravadora do Sepultura. Foi uma experiência fantástica. Mas se você escuta o Eddie de 1998 pra trás é uma outra banda.

CONTINENTE Sobre o primeiro disco, Sonic mambo, foi todo mundo aos Estados Unidos para gravá-lo?
FÁBIO TRUMMER Sim, todo mundo. A banda era eu; guitarra e voz, Karina Buhr; e Fred Eremita fazendo percussão e voz; Bernardo Chopinho na bateria; Roger Man no baixo e voz. Essa época foi pau, porque a gente se organizou aqui (no Brasil), fez muito show, juntou dinheiro, alugou uma casa em São Paulo, se programou para estar lá, na época do lançamento de Sonic mambo, mas o álbum passou um ano atrasando. Isso criou muita frustração na banda. Nesse ponto, digo que o Eddie se multiplicou. Roger Man saiu e fez o Bonsucesso (Samba Clube), Karina entrou na Comadre Fulorzinha, Berna foi trabalhar com produção. Daí chamei Kiko e Rob Meira (bateria e baixo, respectivamente). Logo depois, entrou Urêia, percussão.

CONTINENTE E aí veio o segundo disco...
FÁBIO TRUMMER A gente já tinha uma cama para o Original Olinda Style se deitar. Até chegar nele, já tínhamos oito fitas demo e o Sonic mambo. Então, o Eddie já tinha uma reputação.

CONTINENTE Como foi a influência de Erasto Vasconcelos no som de vocês?
FÁBIO TRUMMER Rogério (Roger Man) chegou um dia pra mim dizendo que Erasto tinha feito uma música para o Eddie. Eu não o conhecia. Na época, a gente alugava uma casa aqui em Olinda, que embaixo a gente fez um estúdio de ensaio. Chegamos a fazer lá exposições de arte de amigos, gravamos o clipe de Buraco de bala na casa também. Virou um ponto de encontro. Erasto foi bater no ensaio. Já ficamos amigos ali, no primeiro encontro. Ele cantou a música e a parte rítmica, principalmente, me encantou muito porque a gente estava buscando essa transição (para um som mais brasileiro). Só fomos gravar música dele no Original Olinda Style (2002), mas Erasto participava da banda desde 1996. Ele ter chegado foi uma luz pra gente, pois trouxe a brasilidade que estávamos querendo de maneira natural.



CONTINENTE Agora vamos falar um pouco dos outros discos que vieram depois.
FÁBIO TRUMMER O Metropolitano (2006), pra minha cabeça, representa Recife, tanto que a capa é uma gravura de Paulinho do Amparo com Recife em chamas, vista de Olinda. As músicas são mais mergulhadas na memória afetiva recifense. Foi gravado no estúdio de Bernardo e no Musak (ambos na capital), o Original Olinda foi gravado nos estúdios de Gabriel Furtado, no Recife, e de Buguinha, em São Paulo. A gente finalmente gravou Quando a maré encher, uma música de 1994, que só havia saído na coletânea Brasil compacto, de 1996. Outras músicas que se destacaram: Lealdade, versão de Jorge de Castro e Wilson Batista, Vida boa, As flores e as cores.

CONTINENTE A Nação Zumbi gravou Quando a maré encher no primeiro disco deles sem Chico Science, o Rádio S.AmB.A (2000), mas o negócio bombou mesmo foi com Cássia Eller, né?
FÁBIO TRUMMER Aquele Acústico (MTV, 2001) dela é bom pra caralho! Demos essa sorte de a música ter caído num álbum muito bom, que a apresentou pra muita gente. Antes, ela e a Nação tocaram a música juntos no Rock in Rio. Depois, chegou um cheque de direito autoral inédito na minha vida (risos), que eu usei pra fazer o Original Olinda Style.



CONTINENTE Depois vieram que álbuns?
FÁBIO TRUMMER Carnaval no inferno (2008), gravado e coproduzido por Buguinha Dub, em São Paulo. Saiu pelo selo YB. Foi uma época muito boa da gente, com a realização de temporadas na cidade e nosso público crescendo por lá. Entre as músicas em destaque, estão a regravação de Gafieira numa avenida, que fazia parte da trilha sonora do filme Amarelo manga, de Cláudio Assis, Bairro Novo, Casa Caiada e Baile Betinha, de Erasto Vasconcelos e que é a mais tocada da banda nas plataformas digitais. Veraneio (2011) foi gravado em São Paulo, com produção de Eduardo Bid. É um disco muito legal, que tem Ela vai dançar, a própria Veraneio, Tantas coisas na vida, Saldo da glória, música de Kiko e Rob. O disco Morte e vida (2015) foi uma quebra do padrão Olinda Olinda Style. O mais recente, Mundo engano (2018), que, ao contrário do anterior, foi feito em um mês e com pouca grana. É um trabalho bem-elaborado, com produção de Pupillo.

CONTINENTE Qual a posição da Eddie diante do cenário político atual?
FÁBIO TRUMMER Desde que foi criada, a banda sempre foi crítica a todas as gestões. Mas entendo que, atualmente, a gente tá passando por um momento mais delicado. Pouco antes de a Eddie começar, tivemos um período de redemocratização, depois houve um período difícil no início dos anos 1990, no início da banda. De lá até meados de 2013, a gente conseguiu dar um rumo ao pensamento da cultura funcionando como uma indústria geradora de empregos e oportunidades. Acho que tivemos uma melhora nesse sentido. Agora, estamos vivendo uma tentativa de destruição de praticamente tudo, de conquistas antigas. Mas, de qualquer maneira, o papel de bandas como a nossa, que fala sobre o nosso povo, de condições sociais, culturais e ambientais, é ter sempre uma visão crítica. Independente de quem está no poder tenha as cores de sua ideologia ou não.


Show da banda no Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), em 2017.
Foto: Rodrigo Ramos/Secult-Fundarpe

CONTINENTE Que paralelos você faz dos cenários culturais de São Paulo e Pernambuco atualmente?
FÁBIO TRUMMER São Paulo tem investimento da iniciativa privada. Coisa que aqui, em Pernambuco, é muito raro. A não ser em segmentos que são comerciais ao extremo, que são quase onipresentes em todas as rádios e TVs. É uma minoria. Em São Paulo, existem os Sescs, que realmente funcionam, oferecem programação de cultura a preços razoáveis e com muita qualidade – desde a infraestrutura ao elenco escolhido por eles para se apresentar nas unidades. De maneira geral, São Paulo funciona. Fui para lá porque, quando morava em Olinda, tinha chegado a um limite que não conseguia mais melhorar enquanto produtor de cultura. São Paulo era um lugar em que eu podia morar e teria uma melhor referência de funcionamento da cultura. Apesar de Pernambuco ser um polo criativo, gerador de cultura, no que se refere à transformação dessa produção em oportunidades aqui é muito fraco. São Paulo é melhor preparado nesse sentido. É um estado que atrai criadores de cultura todo o Brasil, que trabalham em tipos diferentes de expressão e isso acaba favorecendo o lugar. No Recife, se você quiser fazer show, não tem um lugar com orçamento razoável, chega a existir casas com preços mais caros do que São Paulo. Ainda como falei, em Pernambuco se perdeu a noção da importância da cultura como moeda. É por isso que muita gente vai pra lá. Mas tem que ser São Paulo mesmo. O Rio de Janeiro, por exemplo, está pior do que Pernambuco.

AD LUNA, baterista, ex-Querosene Jacaré e Monjolo, atual Dom Lodo (doom metal) e Sargaço Nightclub (pop rock). Jornalista, editor e apresentador do site e programa de rádio Interdependente – música e conhecimento, da Frei Caneca FM (101,5).

MARCELO SOARES é fotógrafo e jornalista.

Confira a discografia do grupo:

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