Somente um dia após as inesquecíveis apresentações, o protagonismo feminino voltou a esquentar o palco principal. A noite de 22 de julho atraiu cerca de 30 mil pessoas ao local, um registro histórico para o festival. O público foi à praça movido pela participação especial e exclusiva, pela primeira vez no FIG, de um ritmo tradicionalmente pernambucano: o brega. Apesar de ser segunda-feira, a banda Amigas do Brega, formada por Palas Pinho, Dany Myler, Dayanne Henrique e Eliza Mell, seguidas pela apresentação da Musa, Priscila Senna, mobilizaram toda a cidade, obrigando o evento a fechar seus portões de acesso devido à lotação.
A iniciativa, apesar de ter demorado anos, finalmente fez jus à preocupação de um festival cujo o intuito é ocupar espaços públicos para difundir a cultura em suas diversas expressões. Sem dúvidas, a repercussão das apresentações foi capaz de trazer a perspectiva das periferias para o centro das discussões, confirmando a força do ritmo e a importância dos festivais culturais. Além, é claro, da representatividade das cantoras, responsáveis, não somente por embalar a gigantesca multidão com os clássicos do brega, mas por ocupar um lugar de fala que sempre as pertenceu.
Priscila Senna, a Musa, no show lotadíssimo da última segunda (22), no Palco Dominguinhos. Foto: Felipe Souto Maior/SecultPE-Fundarpe
DELAS
Donas de sonoridades e personalidades distintas, Karina, Letrux e Céu, vindas de diferentes partes do país, teceram narrativas sobre machismo, política, amor, desejo, solidão e outras vivências que se costuraram, transpassando o imaginário do público, principalmente das mulheres presentes. Prova disso foi a companhia de vozes e aplausos, independente do frio ou da chuva – que quase não deram trégua.
Ainda na primeira canção, Karina Buhr, por exemplo, ouviu seus gritos em Eu sou um monstro ressoarem diante de um público atento e, mais tarde, em um dos momentos mais explosivos da apresentação, testemunhou uma plateia ofegante diante das rimas afiadas e urgentes de sua convidada especial, a poeta Bell Puã, ovacionada após declamar Era uma vez um Brasil conservador.
Tendo passado diversas vezes pelo FIG, como visitante ou artista, desde os tempos de percussionista de grupos de maracatu do Véio Mangaba e suas Pastoras Endiabradas, ou da banda Comadre Fulozinha, a recifense nascida na Bahia, com mais de 20 anos de trajetória, demonstrou total intimidade em sua ácida performance. Não deixou, por exemplo, de aproveitar o caráter crítico de Selvática – álbum de rock alternativo prestes a ganhar o sucessor Desmanche – para expressar suas insatisfações políticas. “O recado, além do show todo, é o que o público cantou junto comigo e gritou ‘Fora, Bolsonaro’, porque tá uma esculhambação”, disse à imprensa na mesma noite.
DO VERMELHO AO AZUL
Dando continuação ao timbre desobediente de Karina, o caráter performático e recheado de ironias do vermelho vívido de Letrux tomou rapidamente Garanhuns, não somente por causa da cor que a banda vestia, mas também pelo posicionamento político demonstrado durante a apresentação. No hit Hypnotized, por exemplo, a cantora Letícia Novaes pegou a bandeira com a frase "Lula Livre" das mãos de uma fã e a deixou estendida no palco, traçando duras críticas ao governo Bolsonaro. Mais tarde, explicou: “Esse figurino vermelho é uma coisa da paixão. Algumas pessoas acham que é só política, até porque política é, de alguma maneira, paixão, mas meu primeiro contato com a cor é porque todo mundo sangra. Esse disco é sobre paixão, sobre estar com as tripas e o coração para fora”.
O primeiro show de Letrux no FIG. Foto: Fernando Figueirôa/SecultPE-Fundarpe
É assim, sem medo de transbordar pensamentos ou mesmo a sexualidade feminina, historicamente reprimida, além de trazer uma sinceridade pungente para os versos sobre sentimentos, por vezes, contraditórios, cômicos e tristes, que a banda vem conquistando a atenção do público desde o lançamento, em 2017, do álbum Letrux em noite de climão. De lá para cá, o synthpop ou pop rock das faixas vem trazendo ainda mais renovação estética para o cenário da música independente. “Sou capricorniana, por isso, quando comecei na música (há quase 15 anos), tinha o objetivo de fazer um disco que significasse algo. Sou apaixonada pelos meus outros discos, mas nesse eu me conectei com meu íntimo, fui honesta, maluca, dei um mergulho forte”, comentou sobre o sucesso.
Participando pela primeira vez do Festival de Inverno de Garanhuns, a carioca, sempre bem-humorada, expressou, ainda no palco, a felicidade de estar participando do line-up do evento, agradecendo a oportunidade à Iansã, Santa Clara e São Pedro, também pela trégua da chuva em sua efusiva apresentação. “Acho que a melhor coisa de fazer show é justamente quando é em festival público, claro que a gente toca no Lollapalooza ou em outros festivais pagos, mas a glória do artista é estar em praça pública, porque seu raio de alcance aumenta, são várias pessoas, de diferentes estilos, idades e classes sociais te vendo tocar.”
Em contraste com o ritmo selvático estabelecido por Karina e com o vermelho dançante de Letrux, quem encerrou a noite foi o azul pixelado de Céu. Entoando sua voz precisa, batidas minimalistas e leves adornos de música eletrônica, a cantora ofereceu um respiro diante da atmosfera agitada, mas sem deixar de conquistar o apreço do público, que, durante a apresentação, cantou em coro canções como Perfume do invisível e Amor pixelado.
De volta ao FIG, a cantora revelou também sua paixão pelas terras nordestinas: “Posso dizer que sou um pouquinho pernambucana, sou casada com um pernambucano, meu filho é pernambucano, é uma terra que amo demais”.
O azul pixelado de Céu. Foto: Fernando Figueirôa/SecultPE-Fundarpe
*A repórter viajou a convite da Secretaria de Cultura de Pernambuco e Fundarpe, realizadoras do Festival de Inverno de Garanhuns.