A música pernambucana – por que não dizer brasileira? – viu se “fechar a gestalt” do que ainda se ressentia em sua história. No capítulo que coube ao udigrúdi pernambucano, uma lacuna insistia em permanecer aberta, alimentando a imaginação e os sonhos de muita gente ao longo das últimas décadas sobre “o que teria sido”. Agora é: 45 anos depois de ser “abatida” em pleno voo, durante o regime militar, a Ave Sangria lançou, enfim, o seu segundo álbum, Vendavais.
O novo trabalho da banda – que se tornou uma entidade mitológica na música pernambucana – vem fazer justiça à história de Marco Polo, Almir de Oliveira, Paulo Rafael e, também, Ivinho, Agrício Noya e Israel Semente Proibida (os três últimos in memorian). A trajetória de sucesso que parecia se desenhar após o lançamento de Ave Sangria (1974) – revelando jovens recifenses que misturavam rock a elementos da música nordestina, e tinham um comportamento rebelde e provocativo em palco – foi abreviada por conta da censura que se impôs ao grupo a partir de questionamentos morais à canção Seu Waldir. O aguardado segundo disco da banda não veio e a história da Ave Sangria parecia ter se encerrado.
O hiato foi desfeito 40 anos depois, em 2014, quando os remanescentes da banda (Marco Polo, Almir, Paulo e Ivinho, ainda vivo) se reencontraram no palco do Teatro de Santa Isabel, no Recife, para reviver o antológico show Perfumes & baratchos. Diante da numerosa plateia que lotou o espaço, eles reacenderam uma faísca. O que seria apenas uma apresentação acabou rendendo shows Brasil afora, incluindo o do mega festival Psicodália 2015, em Santa Catarina. Foi nessa ocasião que se deu o estalo: a Ave Sangria retomaria sua história e daria vida ao seu segundo disco.
Em 2019, mais precisamente no último 26 de abril, Vendavais, enfim, veio ao mundo nas plataformas de streaming – será lançado também, este ano ainda, em CD e vinil (com recursos de uma bem-sucedida campanha de crowdfunding no Catarse). Da formação original, Marco Polo (voz), Almir Oliveira (voz e guitarra base) e Paulo Rafael (guitarra solo e viola) se juntaram aos jovens músicos Juliano Holanda (baixo e vocais), Gilú Amaral (percussão) e Júnior do Jarro (bateria e vocais) para construir, meticulosamente, o disco que teria a responsabilidade de dar continuidade à narrativa da Ave Sangria.
Capa com pintura do músico e artista Neilton
Vendavais foi produzido por Juliano Holanda e Paulo Rafael. E o que salta aos ouvidos, de imediato, é a presença clara do “espírito” Ave Sangria. As músicas trazem signos e traços muito nítidos da banda dos anos 1970. Linhas harmônicas e arranjos seguem, naturalmente, por esse caminho. E isso foi uma opção, afinal são canções da época, compostas entre 1969 e 1974, resgatadas especialmente para compor o álbum – com exceção da instrumental Em órbita, de Paulo Rafael, feita mais recentemente.
“Elas (as músicas) estavam guardadas, enterradas em Itamaracá, dentro de um baú de fitas”, brinca, em tom poético, Paulo Rafael. O reencontro com esse repertório foi possível graças ao garimpo feito por Marco, Almir e Paulo, em fitas K7 bem-guardadas e nas lembranças de cada um. “Todo esse repertório já tinha sido vivenciado na nossa intimidade, nos nossos ensaios, na curtição do nosso trabalho. Era algo que já estava introjetado na nossa memória afetiva. Foi um reencontro com algo que já estava dentro do nós”, conta Marco Polo.
De início, foram selecionadas 25 músicas. Já sob a batuta de Juliano Holanda, e para chegar a um repertório que coubesse no disco, uma nova seleção. “A gente tinha algumas ‘pedras de toque’, músicas que a gente sabia, de cara, que deveriam entrar. Mas, para a gente garantir uma unidade conceitual do álbum, fomos retirando algumas”, explica Polo. Os critérios de escolha eram, basicamente, estético e discursivo: letras que não fossem “datadas” e fizessem sentido no contexto atual, identificação estética com o que havia sido feito no primeiro disco etc. “Eles queriam fazer no segundo disco tudo o não fizeram no primeiro. Só que isso levaria a gente a um redemoinho de coisas e, talvez, a gente se perdesse. Então, desenvolvemos essa baliza (de escolha), que não era rígida, mas ajudou a não se perder”, revela Juliano Holanda. Chegaram, então, a 14 faixas. Onze entraram em Vendavais, enquanto outras três chegaram a ser gravadas, mas ficaram de fora do disco – Janeiro em Caruaru, Barrais, o grávido (composição de Israel) e uma versão de Marginal, com Ivinho na guitarra.
A banda nos anos 1970. Imagem: Reprodução
O DISCO “A gente tinha uma preocupação muito grande com a estética desse disco”, diz Paulo Rafael. “A gente queria ter uma sonoridade contemporânea, pois o tempo mudou, a gente mudou. Mas, ao mesmo tempo, tinha aquele gostinho que a gente não queria perder, que era da gente.” De fato, a Ave Sangria ficou marcada pelo som do primogênito álbum. “Aquela sonoridade do primeiro disco virou um mito, uma coisa lendária”, pontua Paulo Rafael. Curiosamente, ela não fora aprovada pela banda. O disco de 1974, lançado pela Continental, foi produzido por Márcio “Vip” Antonucci, que, segundo eles, não conseguiu traduzir a potência do rock que os garotos faziam.
Desta vez, a banda contou com a maturidade e a experiência para alcançar um resultado mais satisfatório. Vendavais foi gravado no estúdio Órbita, do músico Carlos Trilha, no Rio de Janeiro, com registro em modo analógico, posteriormente convertido para o digital. Os músicos gravaram tocando juntos, para conferir maior organicidade à execução das músicas (com exceção de algumas guitarras, feitas posteriormente). Talvez o som pudesse ser um pouco mais “sujo” nas timbragens, para soar ainda mais familiar ao que nos fisga os ouvidos, de uma banda forjada na atmosfera dos anos 1970 – e que opta por dar continuidade a essa proposta. Mas o que se sobressai em Vendavais é o seu repertório.
A Ave Sangria presenteia seus fãs com canções que têm o rock como espinha dorsal e flertam com a música nordestina e com outros elementos que sempre figuraram na órbita criativa da banda. Baião, repente, tango, balada e outros gêneros se vestem com riffs de guitarra e estruturas harmônicas típicas do rock’n’roll, como antes. “É como se não houvesse esse hiato de 45 anos. É como se esse fosse o segundo disco que nós faríamos na época”, diz Marco Polo. “Aquilo que está nas músicas gravadas hoje traz uma essência que não se apagou, continua na gente e não vai mudar nunca, que é esse sentido de liberdade e dessa verdade que a gente tem, de falar de coisas alegres e contestar o que nos incomoda”, conta Almir.
De fato, o discurso de algumas letras não envelheceu com o tempo. É o caso da faixa O poeta, que abre o disco e se adequa bem aos dias de hoje, em que instabilidade social e política têm sido o cotidiano brasileiro. “O poeta suicidou-se de repente/ Deu um teco na ideia e já estava demente quando anunciou: Não te iludas mais, criança/ Antes que tenhas tempo pra correr/ Já estarás na pança de um aparelho de TV”, canta Marco Polo. “A gente percebeu uma ironia do destino: nós surgimos em plena ditadura, e a gente volta num momento que não é uma ditadura, mas é de extrema regressão ao fundamentalismo, à intolerância, a um direitismo exacerbado”, diz o vocalista. “Nós estamos fazendo uma música necessária, num momento desnecessário”, arremata.
O lirismo setentista, psicodélico e, por vezes, surreal, da Ave Sangria é outro ponto forte. Há músicas como Ser, que evoca o renascimento após as “pedreiras” da vida: “Nascer depois de cada batalha perdida/ E saber que a vida ainda/ Tem muito pra dar e receber (...)/ O que importa é o caminho/ E não o porto e ponto final/ Segue, meu amigo e companheiro/ Pega tua estrada real/ Segue tua estrada do sol”. O tom contestatório está na faixa-título Vendavais, que amealha Zona da Mata e Litoral, com uma letra que convoca a uma postura de questionamento do que está posto na sociedade: “Parta para o tudo/ Quebre tudo ao redor/ toda forma e forma dos que dizem: isso é melhor / Melhor é escolher/ O que você quer ser/ Mesmo que não seja/ O aprovado pelo status quo/ Lá no meio da sujeira/ No lado do lodo escuro/ Está o muro da intolerância e da miséria/ É sério? Isso é verdadeiro?/ O ser humano conseguiu/ Transformar o mundo nesse breu derradeiro?”.
O rock Dia a dia versa sobre a igualdade entre homens e mulheres em tempos de feminismo atuante: “Lado a lado/ eu e a menina/ Tudo de baixo, tudo de cima/ Dia a dia, mais perto do amor”. Já a balada Carícias traz certa sensualidade jocosa, imagens surreais e a insinuação ao flerte de um vampiro. Outra música já conhecida do público, Marginal, ganhou em lirismo com um arranjo que contempla cordas e a voz de Marco Polo – que, diga-se de passagem, parece praticamente a mesma, imune aos efeitos do tempo. Os dois baiões do disco – Sete minutos e Sundae – têm uma construção melódica que remetem muito ao primeiro momento da Ave Sangria. Uma novidade em Vendavais é Almir assumindo os vocais em duas faixas: Silêncio segredo, meio cantada/falada, que, sutilmente, lembra algo dos Novos Baianos; e Olho da noite, que nos transporta a um esotérico sertão nordestino, com pitadas mouras no canto entoado por Almir.
Vendavais consegue cumprir sua missão de recolocar a Ave Sangria na trilha da história que fora interrompida precocemente, já sendo, por isso, um disco histórico. “É uma sensação de felicidade e de vitória contra tudo aquilo que nos tirou do caminho natural que a gente vinha fazendo naquela época. Uma vitória sobre a opressão”, declara Almir, ao reforçar o mito que, felizmente, volta à plena atividade. “A Ave Sangria passou 40 anos sobrevoando o deserto até que a gente voltasse à terra dos sonhos dela, que é o palco.”