Entrevista

"Não vou desistir nunca de lutar pelo Brasil"

Fernanda Abreu, a cantora e compositora que completa 30 anos de carreira cheia de histórias, vigor e fé no próprio país. Confira entrevista exclusiva

TEXTO Erika Muniz

20 de Outubro de 2020

Fernanda Abreu em 2020

Fernanda Abreu em 2020

Imagem Arte de Victor Hugo Cecatto sobre foto de Alexandre Calladinni/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Expressão capaz de estimular nossos sentidos quase que imediatamente, a música faz parte de momentos marcantes, difíceis ou felizes de nossas vidas. E que “música é um bálsamo”, como disse a diva Gal Costa, em sua live de aniversário, ninguém duvida. Canções, por outro lado, são capazes de tornar vozes memoráveis para o público. E, dentre essas vozes marcantes da música brasileira, a cantora e compositora Fernanda Abreu – que comemora seus 30 anos de carreira em 2020 – é uma das principais do pop nacional.

Garota sangue bom (1995), Rio 40 graus (1992), Amor geral (2016), Kátia Flávia, a godiva do Irajá (1987) a última, composição de seus parceiros artísticos Fausto Fawcett e Carlos Laufer – são alguns dos vários sucessos que, em sua voz, fizeram muitos cantarem e dançarem junto. Carioca, começou sua dedicação à arte como bailarina. Desde sempre, cultiva o encanto pela música de origem negra norte-americana, o funk, a dance music, o samba e o hip hop brasileiro. Tudo isso, inclusive, atravessa suas composições.

Com simpatia e descontração, a artista conversou por telefone com a Continente sobre seu recente lançamento Slow dance – que reúne baladas importantes de sua trajetória –, contou também os projetos que vem desenvolvendo neste período, como o DVD Amor geral, previsto para sair no final deste ano, além de comentar temas como as redes sociais, a importância do amor, política, Rio de Janeiro, algumas memórias e, como não poderia deixar de ser, sua paixão pela música – e pela vida.


Foto: Alexandre Calladinni/Divulgação

CONTINENTE
Fernanda, sei que estás trabalhando bastante, mas como tem sido esse período para você?
FERNANDA ABREU Esse período tem sido até bom para mim. Quer dizer, afora a aflição que todos nós, brasileiros, ficamos com essa situação da Covid-19. Tantas famílias perdendo seus entes queridos e amigos. Isso é uma coisa que sempre deixa a gente mal, com aflição e tal. Especialmente porque acho que todo brasileiro se sentiu um pouco abandonado pelo governo federal. Essa situação de não ter um ministro da saúde por tanto tempo, em um momento de pandemia, é muito ruim, porque não traz segurança para ninguém. Todo mundo já fica inseguro com a doença e também com essa falta de orientação, com essas briguinhas do governo federal com os estados e municípios. Abre ou não abre. Fecha ou não fecha. Isolamento ou não isolamento. Esse é um pano de fundo da pandemia meio chato, que está acontecendo no Brasil. Mas, pessoalmente, individualmente, a pandemia está sendo boa, no sentido de que estou trabalhando bastante, estou conseguindo. É chato porque tenho muita saudade da aglomeração, gosto muito do palco. Em fevereiro, já estava ensaiando a nova turnê dos 30 anos, quando a gente foi pego de surpresa. Conseguimos gravar o DVD, no dia 13 de março, que foi o dia do (início do) lockdown aqui do Rio. Já estava todo mundo, a galera, o público, na porta, mas tiveram que voltar para casa porque não foi possível entrar. Mesmo assim, gravamos sem público e estamos com um material muito bom nas mãos. Agora, lancei o (álbum) Slow dance. No comecinho do ano que vem, vou lançar também um de remixes inéditos, que é uma cena que sempre me apoiou muito nesses anos de carreira. Estou trabalhando bastante. Todos os dias, sem parar. Está sendo bom porque também a gente não fica se sentindo deprimida, chateada. Quando tem muito trabalho, sempre é bom.

CONTINENTE Primeiro, você disponibilizou o single Dance dance, pela primeira vez nas plataformas digitais. E, mais recentemente, justamente o disco Slow dance, que reúne 16 baladas da sua trajetória. Como foi a decisão de fazer essa reunião de músicas?
FERNANDA ABREU Eu estava no meio da pandemia e comecei a ter que ouvir mais o meu repertório, dentro dos projetos da comemoração dos 30 anos, que tinha esse show, a turnê, o DVD e esse álbum de remixes. Não costumo ouvir meus discos, a gente lança os discos e depois não ouve mais. Por conta desses 30 anos, comecei a ouvi-los e sempre tive uma cobrança do meu fã-clube de reunir as baladas. Eles sempre curtiram muito as baladas, que é uma vertente do meu canto que gosto muito. Achei que seria interessante, estava ouvindo também umas músicas melodiosas. As pessoas também estão em casa, acessando a memória afetiva delas. Como não tem muito lançamento, muita balada, muita festa, shows, eventos, nada, ficam em casa. E, nesse movimento de ficar em casa, tem momentos que você quer também um conforto de uma voz mais quente, de um clima mais de balada, mais reflexivo. De interiorizar, vamos dizer assim. Aí, comecei a ouvir e falei: “Nossa, quantas baladas que eu tenho nesses 30 anos!”. Nem tinha me dado conta que são tantas. Falei: “Ah, pode ser interessante lançar um álbum de baladas”. E eu vou buscar lá em 2006, quando lancei o MTV Ao Vivo, que, na verdade, não vai sair tão cedo. Aquele projeto do MTV Ao Vivo que fiz está guardado sei lá onde. Aí falei: “Vou pegar a música Dance dance, do Rodrigo Maranhão, que gravei lá. Só tem a gravação do show, vou fazer uma em estúdio. Fiz a gravação em estúdio para puxar o disco. E é o single que puxa o disco todo Slow dance.


Fernanda em sequência para o álbum Slow dance. Imagem: Arte de Victor Hugo Cecatto sobre foto de Alexandre Calladinni/Divulgação

CONTINENTE E como rolou a seleção? Devem ter muitas músicas que mexem com sua memória afetiva.
FERNANDA ABREU Sim! Ah, fui ouvindo os discos, cada um deles. E fui separando as baladas que eu achava que tinha a ver com o projeto. Aí, cheguei a essa seleção final. Foi bom porque foi o primeiro projeto da minha parceria, do meu selo Garota Sangue Bom Music com a Universal. A Universal comprou a EMI, que era uma gravadora que tinha. Eu, a vida toda, fui da EMI. Quando eu era da Blitz, era da Odeon, que era Odeon e EMI. Depois, na minha carreira solo toda, fui da EMI. Saí para ficar independente e criar meu selo em 2004. Então, estou retornando à casa com essa parceria. Já não como artista da gravadora, mas como um selo ali dentro. E a gente vai lançar esses três projetos.

CONTINENTE O que seu público pode esperar do DVD que chega em breve?
FERNANDA ABREU Essa turnê do disco Amor geral (2016) foi muito bem-sucedida, porque o público gostou muito e resolvi gravar esse DVD com a referência do que apresentei no Rock in Rio. Então, chamei para participar a Focus Cia. de Dança e dois meninos do passinho do funk, o Hiltinho e o Neguebites, porque lá no Rock in Rio, fiz com o Dream Team do Passinho, mas cada um está com a carreira solo e tal. Quis trazer a dança para o centro do show e trouxe essas participações especiais. O que tenho visto das imagens, de edições e o repertório que escolhi, acho que está uma representação bem fiel do que foram esses três anos de turnê. Estou achando bem legal, acho que as pessoas vão curtir bastante. Mesmo sem público, o show tem um calor, porque ele é muita dança e a banda está tocando super bem também. A gente levou um susto, estava no camarim, às 19h30, quando o público teve que ir embora. Então, a gente teve que pegar energia para fazer o show. Eu chamei todo mundo no palco e falei: “Gente, esse vai ser o melhor show que a gente vai fazer na nossa vida. Olha para a frente, finge que tem cinco mil pessoas e vamos mandar bala”. E eu gravei assim, seguidão, não parei não. Não parei porque aí dá aquela esfriada, sabe?

CONTINENTE E você prefere estar no palco ou gravando em estúdio? Ou não tem preferência?
FERNANDA ABREU Ah, gente! Vou te falar que estou com uma saudade do palco, estou mesmo. Faço shows há muitos anos, né? Desde 1982. Então, a minha vida é sair quinta-feira, fazer a minha mala, ir para o aeroporto, pegar o avião, chegar ao hotel, fazer a passagem de som, fazer o show. Esse contato com o público é muito bom. Adoro o palco, adoro cantar e dançar. Então, estou sentindo falta do palco. Mas adoro estúdio também, porque gosto de áudio, gosto de experimentar as coisas, de sons, de timbres, de texturas. Também curto um estúdio, estou aqui me deliciando com essa parte, que é fazer a mixagem do DVD, fazer a mixagem do CD de remix, a mixagem da música nova. Até essas lives, que tenho feito, são estúdio, não tem público. Não dá para a gente ter tudo neste momento, então, para a gente poder preservar a saúde, não pode ainda ter show. Mas estou louca para fazer um show com o público (risos).

CONTINENTE Você falou que adora dançar, tem também a sua formação no balé. Como é que a dança atravessa sua relação com a música?
FERNANDA ABREU Olha, Erika, vou te falar que eu praticamente canto para poder dançar. Adoro dançar! Comecei o balé aos nove anos de idade. Depois, fiz todos os tipos de dança. Dança afro, dança contemporânea, jazz… Sempre curti break dance, sempre fui interessada em conhecer essas linguagens corporais. Nasci para dançar, a música entrou na minha vida muito pela veia da dança. Quando eu tinha 10 anos, ficava em frente ao espelho imitando Michael Jackson no The Jacksons 5, ficava imitando Tony Tornado na BR3 (1970), ficava imitando Gerson King Combo, que faleceu, é uma figura importantíssima para a música negra brasileira. Sempre gostei muito de samba, sempre relaciono as músicas com os estilos. O funk tem sua dança, o samba tem sua dança, o rock, o tango... Sempre achei interessante. Até tenho um projeto de um programa de TV, que não consegui ainda botar em prática. Ainda não consegui arrumar parceiros. Mas é exatamente falando dos estilos musicais com os estilos de dança que foram criados para acompanhar as músicas.


Foto: Alexandre Calladinni/Divulgação

CONTINENTE Sua presença no palco é muito forte. Por que, para você, é importante cantar?
FERNANDA ABREU Ah, porque acho que é uma voz que ecoa e que tem o seu poder de transformação. Todo artista tem isso aí, não importa se está falando de política, se está falando de questões pessoais. Acho que sempre é a comunicação. Cantar é se comunicar, então, é igual bater tambor. O tambor sempre como o primeiro instrumento de comunicação entre os homens. A música é muito potente na comunicação entre as pessoas. Cantar é isso, é se comunicar, é ter essa voz como poder transformador, entrando na vida das pessoas e trazendo um pouco mais de conforto, um pouco de reflexão, um pouco de debate. Acho que é bacana.

CONTINENTE Gosto da sua parceria com Fausto Fawcett. Queria que você contasse um pouco dela.
FERNANDA ABREU Eu e o Fausto, a gente se conhece desde 1982. Desde quando eu estudava Sociologia na PUC-Rio e ele, Comunicação. Aí, entrei na Blitz, fiquei lá por quatro anos, quando saí, trabalhei dois anos seguidos com ele nos shows. Dirigi um show dele também, a gente ficou muito próximo. A gente tem uma parceria muito intensa. Em todos os meus discos têm músicas nossas. Sempre faço uma parceria com o Fausto, pelo menos. E a nossa maneira de compor… O Fausto é um escritor, basicamente. Então, ele me passa muitos textos e vou pincelando. Primeiro, a gente se encontra e conversa sobre um tema, por exemplo: “Ah, Fausto, vamos fazer uma música feminista, quero falar das mulheres, quero falar do poder das mulheres”. A gente vai, senta e faz Garota sangue bom (1995). Ele me manda um texto gigante, vou e edito e aquilo vira música. Vou buscando umas palavras, selecionando frases e palavras e botando na música. Depois, ele também acrescenta e tal. Mas normalmente é assim. Ele vem com textos muito grandes, a gente faz um brainstorm primeiro. A gente já compõe juntos há muito tempo, é muito bom.



CONTINENTE Em 1995, durante o programa Roda Viva, você disse que era otimista com relação ao Brasil e ao Rio de Janeiro. Continua assim neste 2020? Como está sua relação com a sua Cidade Maravilhosa e o país?
FERNANDA ABREU Nossa, Erika! (risos) Negócio mudou bastante, né? A gente viu agora, saiu na semana passada que o Rio de Janeiro perdeu sei lá quantos bilhões em corrupção, nos últimos anos. A gente está vivendo em um Brasil que é uma tristeza, no meu ponto de vista. Esse governo, que não consigo nem entender como é que o brasileiro elegeu esse tipo de pensamento, esse tipo de ideologia, para vivermos nesse país maravilhoso. Nós, como sociedade brasileira, que, na minha opinião, estávamos avançando em um monte de questões importantes das, entre aspas, “minorias”. A gente estava discutindo, estamos ainda, o racismo, a homofobia, o machismo, a violência contra a mulher. Acho que é muito importante essas discussões todas de drogas, de aborto, de tudo. É importante a gente não fugir desses assuntos porque eles fazem parte do dia a dia de cada brasileiro, de cada família. Quando a gente vê chegando no poder um governo que aplaude a tortura, para mim, não consigo nem chegar perto de uma coisa dessa. Não tem condição de alguém defender a tortura. Naquele impeachment da Dilma… Não estou aqui defendendo o PT, nem Dilma, estou falando mais da parte humana mesmo, de uma relação humana com as pessoas. O Bolsonaro foi no plenário homenagear o Ustra, que foi o cara que torturou a Dilma. É uma crueldade, uma perversão, acho que quase chega a uma situação meio psicopata. É uma falta de empatia total. Realmente, estou preocupada e desanimada com a situação que o Brasil está vivendo. As queimadas no Pantanal e esse governo que realmente não me representa.

Mas, como eu te disse, continuo sendo otimista, acho que do caos vai sair… Não sou ingênua, nem alienada, mas tenho um lado de pensar a vida de maneira positiva. Tentar ver o meio copo cheio e não o vazio. Acho que desse caos vai surgir alguma outra coisa boa. A gente vai se conscientizar de que o brasileiro deu um passo atrás votando nesse governo. A gente vai retomar uma nova consciência, um novo debate. Espero que isso aconteça. Em relação ao Rio de Janeiro, é uma tristeza também o que está acontecendo porque a gente tem um governador... Nos últimos cinco governos, todos os governadores foram presos. Como eu digo na música Rio 40 graus (1992), o Rio de Janeiro não tem mais só “comando de comando submundo oficial” e “comando de comando submundo bandidaço”, que era o tráfico de drogas. Agora, a gente tem milícia que é um negócio muito mais sério porque é a bandidagem que pode andar na rua. O traficante de drogas não pode andar na rua, mas a milícia pode andar na rua, armada, sabe? Então, o Rio de Janeiro precisa se refundar. É uma cidade maravilhosa, uma cidade que tem uma história espetacular, que foi capital do império, que teve aqui a corte. É uma cidade que tem muita história para contar, é linda. Mas a gente tem que refundar o Rio de Janeiro. O carioca também tem que se tocar e começar a eleger uma galera um pouco melhor. É isso. A gente (tem que) tentar retomar o nosso DNA de um povo inventivo, criativo, receptivo, porque o carioca está muito deprimido. A situação está difícil no Rio de Janeiro, mas tenho fé de que a gente vai sair dessa porque a força da natureza e a força do Rio de Janeiro simbolicamente é tão grande, que acho que ultrapassa esses momentos difíceis. Nesses momentos muito difíceis, a gente sempre se agarra a isso, à nossa história, à nossa beleza, aos nossos traços. Nós, cariocas, os nossos traços estão no nosso DNA, que é isso tudo que te falei, mas precisa aí ter uma conscientização. A gente precisa tomar o Rio de Janeiro de volta para a gente, né? “Quero o meu crachá” (risos).



CONTINENTE O que é que não sai da sua playlist, que você adora ouvir?
FERNANDA ABREU Ah, eu adoro Steve Wonder! Mas gosto de ouvir muita coisa. Tem muita música negra, samba... Gosto muito de Clara Nunes, Clementina de Jesus, Martinho da Vila, João Nogueira, Candeia, Cartola, Luiz Melodia, Novos Baianos, Gil, Caetano, Tom Jobim. Mas gosto da galera também nova. Gosto da minha geração, do rock. Mas gosto muito de Planet Hemp, Marcelo D2. Adoro hip hop de São Paulo, adoro funk americano, gosto de trap, de R&B... Vou ouvindo de tudo, gosto de estar por dentro de tudo.

CONTINENTE Você cresceu em um ambiente musical? Sua família já era próxima da arte e da música?
FERNANDA ABREU Minha mãe era biblioteconomista, uma profissão linda. E o meu pai era arquiteto. Mas eles sempre gostaram muito de música. Então, na minha casa, depois do jantar, sempre alguém botava um vinil. Meu pai adorava comprar vinil. Eles tinham um grupo de samba amador chamado A Patota, que juntava os amigos deles e ficavam tocando todo fim de semana. Meu pai tocava cuíca, minha mãe tocava ganzá e cantava. A gente ficava ali, pequenininhos, em volta, vendo. Meu irmão também trabalha com música, ele é preparador vocal e professor de canto. Super bem-sucedido aqui no Rio, dá aula para todo mundo. Desde os novos talentos, até Caetano, Simone. A galera curte o trabalho dele porque além de dar aula de canto, ele faz a preparação vocal dos discos depois que as bases estão prontas, que o cantor vai botar a voz. O Felipe (Abreu), meu irmão, é muito solicitado, porque é muito bom nesse trabalho. Então, a música sempre esteve muito próxima. Estudei a minha vida toda em escola pública, tinha uma professora muito importante para a nossa formação, que foi a Dona Raquel. Ela incentivou muito, então, a gente, desde pequenos, 12 anos, ela (nos) dava aula de composição, de instrumento. Fazia canto coral. A gente chegou a gravar um disco na escola. Sempre foi muito presente a música na minha vida, apesar de a gente não ser filhos de artistas.

CONTINENTE O Sla Radical Dance Disco Club (1990) foi sua estreia na carreira solo. E é uma peça importante na música brasileira, porque trouxe muito da energia do pop e da música dançante naquela época. O que esse álbum representa para você?
FERNANDA ABREU Esse disco é importante mesmo. Com o passar dos anos, ele foi ganhando o peso necessário que ele tem. Vai até sair uma reedição da Noise Records, eles vão reeditar agora com acetato vermelho em uma edição super bonita e uma revista que acompanha com 60 páginas. Fiz agora uns vídeos, umas fotos e uma entrevista longa, acho que vai ser bem legal. Esse disco realmente foi o pontapé inicial do pop dançante brasileiro. Agora, as pessoas até me chamam da “mãe do pop dançante brasileiro”. A gente estava saindo dos anos 1980, em que, na verdade, as gravações se davam muito com registro de banda. A banda entrava no estúdio, registrava e tinha o disco. Eu fiz esse disco muito com programação, já com computador, sequências e samples. Ele trouxe essa nova linguagem de tecnologia dentro da música pop. Foi um disco importante e, para a minha carreira, foi fundamental, porque foi o primeiro disco da minha carreira solo. Eu estava colocando ali o meu som, que não era o som da Blitz. Foi o que, simbolicamente, a Fernanda traria para a música brasileira, que seria essa música pop dançante brasileira.


Ouça o Sla Radical Dance Disco Club
Foto: Flávio Colker/Divulgação

CONTINENTE E você gravou com meu conterrâneo Chico Science uma versão de Rio 40 graus. Me conta essa memória. Como é que foi essa experiência?
FERNANDA ABREU Bom, o Chico é um gênio, um cara muito talentoso, muito inteligente. Quando ele e o (Fred) 04 (começaram) com a história do Manifesto Manguebeat, fiquei muito impressionada. Achei um movimento espetacular, porque também já estava vindo com essa ideia de fazer uma música pop, vamos dizer assim. Uma linguagem que misturava scratch com os elementos mais roots daí, de Pernambuco, embolada, maracatu e trazendo essa linguagem do caranguejo, da “lama ao caos”. Eu achava tudo muito bom. Nos encontramos em Nova York. Teve um festival que Chico Science & Nação Zumbi abriram e eu fechei. Otto também foi tocando. Até a música Jack soul brasileiro (1997), de Lenine, saiu desse encontro. Eu e Otto estávamos em uma boate e começou a tocar um hip hop. Ele estava com o pandeiro e começou a cantar: “Tião? Oi! Fosse? Fui!”, de Jackson do Pandeiro. Aí, falei: “Otto, por que a gente não faz uma conexão Recife, Rio de Janeiro, Nova York? Vamos fazer uma música pop, mas homenageando Jackson do Pandeiro, que realmente é um cara com um suingue espetacular”. Aquela mistura de rap com repente, um cara que tinha um puta suingue. Ele falou: “Vamos chamar Lenine”. Aí, eu cheguei ao Rio, liguei para o Lenine e falei: “Lenine, Otto deu essa ideia, ‘não sei o que’, a gente estava numa boate”. Lenine fez Jack soul brasileiro em um disco meu e, depois, lançou em um disco dele. Com o Chico, a gente passeando em Nova York, curtindo e tal. Na passagem de som, depois, saímos, comemos alguma coisa e comentei com ele: “Ah, Chico, estou fazendo um CD agora chamado Raio X (1997), uma espécie de releitura mais brasileira das minhas músicas, que são sempre tidas como muito cariocas. Vou chamar o (Carlinhos) Brown, da Bahia; vou chamar o (André) Abujamra, de São Paulo. Queria tanto que você fosse um representante de Recife”. Ele adorou a ideia, fomos para o estúdio e gravamos com todo mundo. A gente ficou super amigos. Depois, o Lúcio Maia e o Dengue participaram de outras músicas, de outros discos, fazendo as partes de bases das músicas. Parece até que alguém da família do Chico me ligou, eu até participei de um documentário. Me falaram que as imagens que a gente fez da gravação de Rio 40 graus parece que foram uma das últimas imagens do Chico.



CONTINENTE Você tem ouvido falar do movimento bregafunk daqui do Recife? Que tem artistas como MC Loma e Schevchenko e Elloco. O que você acha?
FERNANDA ABREU Acho muito legal, porque assim… O funk carioca, que agora virou o funk brasileiro, ele sempre foi a música eletrônica brasileira. É uma música feita por DJs. Por equipes de som aqui do Rio e DJs. Depois apareceu a figura do MC, dos cantores, mas o funk já tinha uma história antes como equipes de som. A batida do funk tem uma força muito grande. O funk é para a música eletrônica brasileira, assim como o samba é para música oficial brasileira. Ele é muito potente. Acho natural que as pessoas que façam música eletrônica no Brasil, com os seus sotaques regionais, como Jaloo, de Belém (PA), a galera aí de cima. Tem gente fazendo isso em todo lugar do Brasil, misturando a batida do funk com esse acento regional de cada um dos lugares. Acho genial. Acho que isso que é o que a gente tem para dar para o mundo, essa mistura que a gente consegue fazer e que acaba inventando uma outra coisa nova. A gente está sempre se renovando, na verdade. E trazendo esse frescor para a música que é super importante.

CONTINENTE Como é sua relação com as redes sociais?
FERNANDA ABREU É inevitável, a gente tem que estar lá (risos). Agora, esse é o modelo de divulgação do trabalho. Tenho uma relação assim, tipo zero celebridade, não é muito a minha praia. Minha praia é mais de aproveitar as redes sociais para ter um contato mais próximo com os meus fãs, com quem me segue. E divulgar o meu trabalho, minhas ideias, o que estou vendo no dia a dia, não só dos trabalhos que faço de gravações, filmagens, participações, fotos, programas de TV, agenda de shows, mas também do que percebo da atualidade. Volta e meia coloco alguma notícia política, alguma coisa de uma agenda mais humanitária que acho interessante. Mas, raramente, tenho uma posição mais privada, íntima. De vez em quando, posto alguma coisa fazendo exercício ou eu com o meu cachorro. Muito raro, não é muito a minha praia de ficar expondo a minha casa, minha família, minhas coisas e tal. Mas, de vez em quando, a gente dá isso porque o público pede também. Então, vamos equilibrando.

CONTINENTE Do que você sente saudade dos anos 1980?
FERNANDA ABREU Os anos 1980 foram muito importantes para a juventude, que estava ali despontando naquele momento. A gente estava saindo dos anos 1970, anos de ditadura militar. Então, os 1980 foram muito libertários para a nossa geração, a gente teve muita liberdade. O Circo Voador, por exemplo, em 1982, foi um marco para a gente, para a cultura carioca e brasileira também. Tenho um pouco de saudade desse convívio, né? Acho que isso o mundo digital tirou um pouco da gente. E essa liberdade de você encontrar os amigos. Outro dia estava até brincando e falei: “Pô, o Cazuza, hoje em dia, ia ser uma tristeza”. Porque a gente fazia muita bagunça no Rio de Janeiro, nos bares de noite, nas praias. Hoje é todo mundo monitorado, sabe? Fotografando e postando; fotografando e julgando isso e aquilo. Isso é uma coisa meio chata do mundo digital. É muito julgamento e pouca diversão. Pouca liberdade, sabe? Acho que o que sinto mais falta é dessa liberdade, de estar fora desse tipo de julgamento, desse tribunal que são as redes sociais.

CONTINENTE Seu repertório tem muitas músicas para dançar, mas também tem muitas músicas românticas. Quanto de amor importa nessa vida? E para sua música?
FERNANDA ABREU Cem por cento, Erika! Cem por cento amor, 100% em tudo. Em tudo o que você faz tem que ter amor, que eu digo que é você fazer as coisas para você e os outros, sem esperar nada em troca. Você faz porque está emanando amor, porque você quer, porque isso é que é bom na vida, esse prazer que dá em você fazer as coisas, ou para você mesmo ou para os outros. Isso, por si só, já alegra a vida, já te dá o prazer. Isso é que é amor. Além de respeito, que é fundamental. Acho que o respeito é a base do amor. Não acredito naquele cara que diz que é apaixonado e que ama a esposa e que grita, que não deixa ela sair de minissaia. Isso não é amor, é outra coisa. O amor é o respeito à liberdade, é o respeito aos outros, é a vontade de se doar, sabe? Acho que isso tem que estar em tudo na vida. Na sua relação com o seu trabalho, com o seu marido, com a sua namorada, namorado, com seus filhos, com seus pais, com as pessoas na rua. Acho que, quando você abre a porta de casa e sai, aquelas pessoas são seus parentes também. É a sociedade, é o lugar que você vive. Tem que dar bom dia, tem que dar boa tarde, tem que estar ali vivendo também com aquelas pessoas. Não pode ser um negócio individualista, a gente vive no coletivo. Todo mundo é meio nosso parente.



Foto: Alexandre Calladinni/Divulgação

CONTINENTE Está tendo um revival da música disco, algumas cantoras estão lançando álbuns e singles com essas sonoridades. Queria que você contasse a importância desse gênero para você.
FERNANDA ABREU Vi agora até que a Iza lançou com o Bruno Martini e Timbaland. É tudo, cara! Sou uma pessoa que nasci e cresci na era disco, conheço muito. Eu me lembro até do Marcelo Braga, que era um cara importante de rádio aqui do Rio, da Rádio Mix. Ele fez o primeiro programa dele, Sarcófago, e me pediu uma playlist, porque ele sabia que tenho uma gigante de disco. Meu primeiro show, quando saí da Blitz, foi no AeroAnta, de São Paulo, tinha todas as terças uma AeroJam, que artistas famosos iam fazer shows cantando outros repertórios. Por exemplo, Nando Reis, que estava no Titãs estourado, foi lá e cantou só reggae. Aí, me convidaram, fiz um show só de disco. Eu adoro, a minha praia é mais disco funk mesmo. Kool & the Gang, Chic, a parte mais negra da disco. Acho assim, a disco é tão forte, um movimento tão poderoso, que volta e meia tem uma coisa cíclica. Nesses anos todos, já vi ela voltando umas três vezes, acho que vai ficar para sempre. Vai passar um tempo e vai ter uma nova geração que vai reinventar, vai de novo redescobrir a disco e usar elementos dela. É super bacana.

CONTINENTE Você falou do Chic, só penso naquela guitarra de Nile Rodgers.
FERNANDA ABREU Nem me fala! (risos). Eu subi no Rock in Rio do lado dele. Quase morri. E cantando Good times (1979)! Todo mundo cantava o refrão e eu sabia o verso da letra. Ele olhou para mim e ficou surpreso. Falou: “Caraca, ela conhece o verso da música”. “Conheço, conheço tudo da sua banda, meu filho”.

CONTINENTE Para finalizar, como é que faz para a gente manter essa positividade e leveza consciente que você tem?
FERNANDA ABREU Ah, não sei, gente (risos). As pessoas me perguntam isso, eu fico tão feliz. Porque, assim, é tão orgânico da minha natureza. Acordar de manhã, olhar para o céu. Falar: “Gente, que bom, mais um dia, mais um sonho a ser realizado, mais um projeto para inventar, mais uma coisa para eu fazer. Minhas filhas com saúde. Meu marido me ama e amo meu marido”. Pena é esse Brasil, mas a gente vai lutar, a gente tem a arma da empatia. Não vou desistir nunca de lutar pelo Brasil, sabe? Não sou uma pessoa que acordo e fico pensando em mim. Tem tanta coisa para ser feita na vida, a gente precisa dessa energia para produzir e realizar isso. Então, acho que é isso que me dá essa vontade de viver assim, essa energia que eu tenho. E, claro, dançar, fazer exercícios, tudo oxigena, traz uma disposição para a gente. Quanto menos você se mexe, mais parado você fica. E, aí, para também sua cabeça, não é legal.

ERIKA MUNIZ, jornalista com graduação em Letras.

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