Entrevista

“A camisa de força da ideologia me incomoda”

Rogério Skylab, o irreverente músico carioca, fala sobre suas influências, sua trajetória na música experimental e o estado atual da MPB

TEXTO Marcelo Abreu

14 de Novembro de 2025

Foto Vitor Rosa/Divulgação

À primeira vista, Rogério Skylab parece o perfeito maluco beleza Zona Sul carioca, forjado num ambiente de praia, surfe, som, drogas, informalidade e rock and roll. Uma figuraça da contracultura que, em seu trabalho musical, mistura samba, rock pesado, malemolência, humor, letras escatológicas, deboche, performance, poesia, escracho e violência. Mas o jeitão descontraído de artista marginal e o cabelo grande podem enganar. O sobrenome adotado, Skylab, ainda mais.

De perto, a história é bem diferente. Hoje aos 69 anos, Rogério Skylab é um bancário aposentado, casado, morador de Copacabana e autor de seis livros (entre poesia, ensaios e contos). Lançou 35 álbuns, todos de forma independente, incluindo aí os 24 discos de estúdio (com material inédito), e os discos ao vivo e em colaboração com artistas amigos. Considera– se um estudioso da MPB, da filosofia e da literatura (tem um livro publicado sobre Henry James). No contato pessoal é cordial, articulado e não fala palavrões.

Rogério Tolomei Teixeira nasceu no do bairro de Rio Comprido, na Zona Norte do Rio. Enquanto a cidade vivia seus anos dourados de Bossa Nova, Tropicália e rock and roll, Skylab levava a vida a sério: estudava Direito e Letras na faculdade (acabou concluindo o curso de Filosofia na UFRJ) e trabalhava no Banco do Brasil. Ficou 33 anos no batente até se aposentar em 2010, quando passou a se dedicar completamente aos livros, à música e aos shows. O Skylab do nome não é uma referência a viagens lisérgicas, como se poderia pensar, mas a algo bem mais prosaico, como ele revela nesta entrevista.

 Skylab nunca fez, nem procurou, o sucesso tradicional almejado pelos músicos. Mas obteve algum destaque nacional dando entrevistas no antigo Programa do Jô (o talk show de Jô Soares tinha um formato ideal para seu tipo de interação com o público). Ficou conhecido também por apresentar o programa de entrevistas Matador de Passarinho, durante três anos, tarde da noite, no Canal Brasil.

Experimentos, hoje, Skylab continua fazendo somente na música que apresenta nas plataformas digitais e nos shows que faz pelo Brasil. Faz um som de difícil classificação, passeando por ritmos e letras ousadas. Além de música, ele faz também muito humor, sem nenhuma intenção, como revela nesta entrevista dada num local bastante improvável: um shopping center no Rio de Janeiro, numa tarde de sábado. Um cenário a anos– luz de distância das Dunas do Barato, em Ipanema, que não existem há muito tempo e que ele, surpreendentemente, diz que nunca frequentou. Como escreveu o linguista Gustavo Conde, num prefácio a um de seus livros, “Skylab é tão singular que classificá– lo chega a ser um insulto”. Melhor ouvir o que ele tem a dizer.

Rogério Skylab foi para os braços da galera, no último show que fez no Teatro Guararapes. Foto Lula Portela/Verbo

CONTINENTE – Você tem feito shows pelo Brasil, incluindo o Norte e Nordeste?

ROGÉRIO SKYLAB – Passei no Recife em 2023, fiz show no Teatro Guararapes, foi espetacular. Em 2024, no primeiro semestre, toquei num inferninho, um barzinho pequenininho em Recife, o Burburinho, nunca senti tanto calor na minha vida. Foi bom. Tem um público legal no Recife. Há muitos anos estive no festival RecBeat, tinha lá o DJ Dolores abrindo, foram as três vezes que estive no Recife.  Fiz shows também em Fortaleza, em João Pessoa, adorei.

CONTINENTE – Você sempre foi conhecido como uma figura do underground carioca. Mas ainda faz sentido falar em underground hoje em dia, quando todo mundo produz alguma coisa para colocar na internet e atinge algum nicho?

ROGÉRIO SKYLAB – Não faz sentido nenhum. Eu até me sinto mal quando me chamam de underground, porque não vejo mais sentido nisso. É como a antiga expressão “maldito”. Pessoas como Jards Macalé reagem. Tem um filme – Um morcego na porta principal – que ele começa falando disso. “Não me chamem de maldito porque não tenho nenhuma relação”.

CONTINENTE – É como se o underground tivesse sido banalizado, de certa forma?

ROGÉRIO SKYLAB – O maldito estava ligado ao underground. Eu me lembro de uma época em que o maldito tinha um certo sentido, foi no final dos anos 1960 e anos 1970, com aquele pessoal como Hélio Oiticica. [O slogan] “Seja marginal, seja herói”, tinha algum sentido político naquela época. Depois o maldito perdeu esse sentido porque, você veja bem, esses artistas malditos tipo Jards Macalé, Walter Franco, Sérgio Sampaio, todos eles gravaram em grandes gravadoras, eles fizeram parte da indústria. O uso do termo “maldito” fica complicado porque, de certa forma, esses artistas conhecidos como malditos fizeram parte do sistema. Ao contrário de mim. Eu, de fato, durante esses mais de 30 anos de carreira, sempre estive à margem da indústria, eu nunca penetrei na indústria. Meu trabalho sempre foi construído à margem. Então há uma diferença, né?  Eu poderia lutar por esse codinome “maldito”. Não esses caras que fizeram parte das grandes gravadoras. Mas nem eu acho que tenha sentido hoje. Porque hoje em dia, 90 por cento da música produzida no Brasil é independente. As grandes gravadoras desapareceram. Ficou a Som Livre, ficou alguma coisa da Sony Music, mas uma coisa muito restrita.

CONTINENTE – Antes da internet, os seus discos circulavam como?

ROGÉRIO SKYLAB – Da forma como todo músico independente fazia. Eles produziam uma quantidade pequena e vendiam os discos em shows ou então botavam os discos em algumas lojas. Foi o que eu fiz.

CONTINENTE – Já era na época do Compact Disc?

ROGÉRIO SKYLAB – Eu comecei no início dos anos 1990, no finalzinho do vinil. O primeiro disco ainda foi vinil. A partir do segundo foi tudo CD. O grosso do meu trabalho é em CD.

CONTINENTE – Hoje ainda saem em CD?

ROGÉRIO SKYLAB – Não, não tem sentido nenhum. Eu faço através das plataformas digitais, é como eu ganho meu dinheiro, através das plataformas digitais. Ganho muito mal (risos). Continua naquele regime, o artista ganha dinheiro mesmo é com show, não é com disco. Na época da grande indústria fonográfica, o artista também ganhava uma porcentagem ridícula, acho que era 5 % [do valor do disco]. O artista nunca ganhou dinheiro com disco, ganhava dinheiro mesmo fazendo show.

CONTINENTE – Você acha que a internet veio para ajudar artistas como você?

ROGÉRIO SKYLAB – Ela é fundamental. Eu já trabalhava antes da internet e tenho a sensação de que nasci para a internet. Sou um defensor da internet e das redes sociais. Ao contrário de muitos colegas meus que adoram marginalizar as redes sociais. E, de fato, as redes sociais têm muito haters, eu mesmo sofro muito com isso. Mas existe um sentido positivo nas redes sociais.

CONTINENTE – Apesar das facilidades que a internet proporciona, você não tem saudade da época em que, para o artista independente, fazer o disco circular era uma coisa mais física, mais heroica, exigia mais do artista e, na verdade, poucos conseguiam?

ROGÉRIO SKYLAB – Na verdade, não exigia nada porque quem fazia todo o trabalho era o marketing das grandes gravadoras. Na verdade, o artista não tinha a menor ideia do que era isso. Quem aprendeu a trabalhar todas as etapas da produção fonográfica foi o artista independente

CONTINENTE – Sim, é aí que eu queria chegar.

ROGÉRIO SKYLAB – Porque nas grandes gravadoras o artista não tinha ideia, não fazia nada. Era um artista alienado, não tinha a menor ideia. Ele ia para o Chacrinha porque o marketing arranjava. A partir do artista independente, isso mudou. Falando especificamente, historicamente, acho que o movimento da Vanguarda Paulista é o primeiro momento de um trabalho independente organizado, através do Lira Paulistana. Ali realmente começou a se desenvolver esse trabalho de independência mesmo. Os discos de Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, do grupo Rumo, Luiz Tatit, era tudo disco independente. Teve alguns discos do Arrigo que uma grande gravadora teve algum interesse, mas não funcionou porque a ela não sabia trabalhar esse tipo de música. Eles trabalhavam mais com artista de massa. Aliás, a Vanguarda Paulista viveu uma ambiguidade. Ao mesmo tempo que eles queriam afirmar a independência, por outro lado tinham um desejo imenso de tocar na TV e no rádio. Com passar dos anos, o movimento de música independente soube lidar melhor com essa questão, até mesmo porque mídias como a TV deixaram de ter uma força como tinham antigamente, né? Lembro que quando eu ia no programa do Jô Soares, no início dos anos 90, era o que tinha, era uma coisa poderosa. Não tinha internet ainda.  Você sentia a resposta do público quando ia ao programa, mas de um tempo pra cá a TV deixou de ser uma mídia importante, assim como as gravadoras. Então mudou muito a perspectiva. O artista independente hoje tem uma maturidade maior se comparado com a Vanguarda Paulista no início dos anos 80.

CONTINENTE – No Rio houve alguma coisa equivalente, na linha do teatro e centro cultural Lira Paulistana, que reunia um grupo de artistas independentes?

ROGÉRIO SKYLAB – Não. O que aconteceu no Rio, através das grandes gravadoras, foi um contra– ataque à Vanguarda Paulista. O que caracterizou a década de 1980 foram esses dois movimentos: no início a Vanguarda Paulistana e depois o BRock, que foi um fenômeno. Ainda que muitas bandas viessem de Brasília, algumas de São Paulo, o grande núcleo estava no Rio através do Circo Voador e da Rádio Fluminense. Então o BRock estava sediado mesmo no Rio de Janeiro. Acho que o BRock foi uma espécie de contra– ataque das grandes gravadoras em relação à Vanguarda Paulistana. Foi um movimento de massa, e consequentemente foi uma espécie de diluição com o que aconteceu em relação à vanguarda. Basta você comparar o Arrigo Barnabé com sua banda Sabor de Veneno, com a Blitz. A Blitz era uma diluição daquilo. Falo a Blitz porque foi o pontapé inicial desse BRock. Foi um contra– ataque das grandes gravadoras em relação ao movimento independente da vanguarda paulista, eu penso assim.

CONTINENTE – Mas você acha que as grandes gravadoras se sentiam ameaçadas de alguma forma?

ROGÉRIO SKYLAB – As gravadoras precisavam criar o movimento porque a MPB clássica estava em estado moribundo, estava muito ruim. A segunda metade dos anos 70 se caracterizou por uma MPB cambaleando. Ao contrário da primeira metade que teve grupos como Secos e Molhados, Novos Baianos que pegavam o refluxo dos anos 60. A década de 60 pra mim é o grande momento da música brasileira com os festivais da televisão, Festival da Record, o programa da Elis Regina. Ali é o momento forte, os movimentos e festivais universitários de onde Gonzaguinha veio, a própria Bossa Nova, na primeira metade dos anos 60, esse foi o momento mais forte. Mas a partir da segunda metade dos 70 as gravadoras precisavam de uma resposta para aquele quadro e o caminho que a Vanguarda Paulista tomou não podia ser o que eles queriam. Eles queriam uma coisa mais de massa, então criaram o BRock.

CONTINENTE – Você lançou seu primeiro disco no início dos anos 1990 com mais de 30 anos. Por que só então? Estava ocupado com a carreira de bancário?

ROGÉRIO SKYLAB – Eu era funcionário do Banco do Brasil, me aposentei pelo banco, e ao mesmo tempo estava muito envolvido com a faculdade, fazia Letras, depois transferi e me formei em Filosofia. Mas sou um cara que comecei tarde na música. Se você pegar esse pessoal do rock, Cazuza, Barão Vermelho, Paralamas, eles começaram todos novinhos, cedo. Quando eu entrei na música foi já sabendo o que estava querendo.

CONTINENTE – No Banco do Brasil você trabalhou sempre no estado do Mato Grosso?

ROGÉRIO SKYLAB – Não. Trabalhei três anos no Mato Grosso. Tomei posse lá, em 1977. Nessa época nem cogitava de música. Surgiu bem depois. Depois voltei para o Rio, trabalhei na Agência Central, no Cesec do Andaraí, trabalhei minha vida toda no banco. Morei em Salvador pelo banco, uns três anos. Conheço muito Salvador. Fui fazer show lá e revisitei todos os lugares. Me aposentei em 2010.

CONTINENTE – Mas na época do banco já tinha carreira atuante na música?

ROGÉRIO SKYLAB – Na época do banco eu fazia shows somente no eixo Rio– São Paulo, esse é o problema, isso é péssimo para o artista. O artista tem de correr o Brasil todo, conhecer a realidade brasileira, e eu ficava no muito no eixo Rio– São Paulo em função do trabalho. Quando me aposentei, passei a fazer shows pelo Brasil todo. Foi ruim para minha carreira ter demorado tanto. Qualquer artista quando começa tem de correr o Brasil, é fundamental. Nesse sentido, alguns lugares foram fundamentais pra mim. Por exemplo, o Centro Cultural São Paulo. Tanto foi fundamental que lancei todos os meus discos lá e gravei meu primeiro DVD lá, o Skylab 9. O Centro Cultural teve uma importância muito grande. Depois houve uma mudança de pessoal lá e adotaram muito essa filosofia identitária, muita música de preto, e aí eu tive certa dificuldade de penetrar. Então tem essas coisas, esses lugares públicos foram invadidos por uma nova ideologia e aí a gente tem de saber conviver com isso e saber também admitir a importância disso.

CONTINENTE – Você acha que a utilização de palavrões e a escatologia em algumas de suas músicas afasta uma parte do público que, de outra forma, poderia se aproximar?

ROGÉRIO SKYLAB – É possível, é possível. Mas a pessoa que fala isso está datada historicamente. Conhece os primeiros discos, não ouviu os últimos discos, que não têm palavrão nenhum. Eu tenho convivido com essas questões, pessoas que não conhecem o meu trabalho, só conhecem três ou quatro músicas e repetem essa coisa. Não vou negar não, é uma coisa forte no meu trabalho, a relação com a escatologia, com o erotismo, sexo, linguagem de bas– fond, eu não estou negando isso. Mas muitos têm uma visão limitada do trabalho, não conhecem. Eu convivi com esse problema a vida toda.

CONTINENTE – Essa imagem acaba se propagando.

ROGÉRIO SKYLAB – Exatamente, como um folclore. Então eles falam de um Rogério Skylab que não conhecem, só falam daquela coisa que é mais...

CONTINENTE – Seu nome Skylab vem de um disco, de uma música?

ROGÉRIO SKYLAB – Vem do “Samba do Skylab”, um samba que eu fiz em razão daquele satélite americano que poderia cair em qualquer lugar do mundo. Vivia– se na época uma paranoia: “onde ele vai cair?” Vivia– se uma paranoia no Brasil, achava– se que o satélite poderia cair no Brasil. Parece que caiu em cima de uma vaca australiana. Foi aí que fiz um samba que nunca gravei, porque nunca gostei desse samba. Ele se chamava “Samba do Skylab”. Foi aí que as pessoas começaram a me chamar de Rogério Skylab.

CONTINENTE – Mas combinou bem com a coisa da contracultura, uma referência vaga a laboratório de drogas, essa coisa toda.

ROGÉRIO SKYLAB – É um laboratório experimental, né? É um lado que sempre tive muito presente no meu trabalho, a coisa da música experimental, uma coisa muito forte, tanto que eu valorizava muito pessoas nessa linha, tipo Arrigo Barnabé. Eu lancei um livro recentemente chamado A melodia trágica, onde abordo alguns músicos brasileiros, um deles é o Arrigo.

CONTINENTE – Aqui no Rio tem dois nomes da música sobre os quais eu queria perguntar e saber se teve contato e acompanhou o trabalho deles. Um deles é Tim Rescala.

ROGÉRIO SKYLAB – Espetacular. Inclusive no meu programa Matador de Passarinho, eu entrevistei o Tim Rescala. Ali falamos tanta coisa, de Mário de Andrade, da música experimental mesmo. É um músico espetacular, só que era também humorista. Aí isso acabou abafando a face mais fundamental de Rescala que é como músico.

CONTINENTE – O outro é Fausto Fawcett.

ROGÉRIO SKYLAB – Sim, no meu livro A melodia..., um dos capítulos é dedicado ao estudo da obra do Fausto Fawcett. Do Fausto Fawcett eu ouvi tudo, todas as músicas, além disso li tudo que ele escreveu. Você tem de, no mínimo, saber o que foi feito ali. Meu livro foi baseado em muita pesquisa, levou muito tempo. Um dos textos que mais gosto é esse, a “A odisseia de Fausto Fawcett”.

CONTINENTE – Por que o seu programa Matador de Passarinhou saiu do ar?

ROGÉRIO SKYLAB – Política da emissora. De repente, queriam investir só em ator da Globo. O Canal Brasil está ligado à Globo e aí todos os programas são ligados a atores da Globo, que trabalhavam em novela. Então, nessa nova grade... Mas foram três temporadas, três anos com mais de 80 entrevistas, pessoas que escolhi a dedo, entrevistas das quais me orgulho, como, por exemplo, a Elza Soares, que veio em cadeira de rodas para ser entrevistada, a entrevista com Jards Macalé, com Arrigo Barnabé, com Luiz Tatit. Desse programa me orgulho muito. Apresentavam em horário e dias diferentes, uma vez por semana, de 2010 a 2013.

CONTINENTE – Como foi sua juventude no Rio de Janeiro?  Sendo de 1956, você pegou o auge dos anos 1970, as Dunas do Barato, a popularização do surfe, a época do desbunde. Você viveu tudo isso?

ROGÉRIO SKYLAB – Não, não vivi tudo isso. Primeiro porque eu morava num lugar que não era o lugar badalado da Zona Sul. Morava na Tijuca, nem diria que é Tijuca, é uma Tijuca alternativa, um bairro chamado Rio Comprido. O coração da Tijuca fica na Praça Saens Peña. Rio Comprido é uma Tijuca marginalizada, entre a Tijuca e o Estácio. E ali, na minha rua morava o Tim Maia. Essa turma Jorge Ben, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, tudo vinha dessa região. Era uma música de pessoas menos privilegiadas, ao contrário da Bossa Nova. Imagina Nara Leão, Tom Jobim, tudo de Copacabana e Ipanema, era outro nível. E evidentemente a partir da Tropicália, no início dos 70, nas Dunas da Gal, ainda respirava– se essa atmosfera de Zona Sul. Você acha que Caetano Veloso morava no Rio Comprido? Não, morava em Ipanema, no Leblon. Os nordestinos todos, Zé Ramalho, Fagner, todos eles moram no Leblon, não têm a menor ideia do que é o subúrbio.

CONTINENTE – A propósito, aqui no Shopping Rio Sul ficava o antigo Solar da Fossa, casarão que abrigava músicos iniciantes que vinham para o Rio.

ROGÉRIO SKYLAB – Muito bem lembrado. Não sei se era no Rio Sul ou se era no Canecão, ao lado, estou na dúvida. Solar da Fossa. Em que morou Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Alceu Valença. O pessoal do Nordeste vinha porque era barato. Mas aqui já é Zona Sul. Eu não sou daqui dessa região. Sou de região mais abandonada, mais marginal.

CONTINENTE – Mas você tinha acesso aos discos, ao rock...

ROGÉRIO SKYLAB – A tudo. Eu vivi a época do Rio de Janeiro, mas quando eu falo região geográfica, pra mim isso é muito importante porque, por exemplo, nessa região onde eu estava localizado se ouvia muito o quê? Se ouvia muito Jovem Guarda, se ouvia muito samba, escolas de samba, e se gostava muito de futebol, era uma coisa. É um pouco diferente da mentalidade da Zona Sul que era bossa nova, jazz, uma outra história. Então a geografia para mim é muito importante, a geografia define muito o tipo de música que você vai consumir. Me lembro, eu pequeno com 10 anos, jogando bola, era apaixonado por futebol e o Tim Maia chegava com turma da pesada, da maconha, cocaína e dizia: “Hoje eu vou estar no programa do Roberto Carlos. Liga a TV”. Era isso.

CONTINENTE – Eles estavam começando e ainda moravam lá?

ROGÉRIO SKYLAB – Tim morava lá, era onde os pais moravam. Rua do Matoso, aquela região do Rio Comprido.

CONTINENTE – De certa forma, era uma sorte estar perto desse pessoal.

ROGÉRIO SKYLAB – Vou te falar um nome: Márcio Greyck. Já viu falar nesse cara? Às vezes passava por minha rua, cabeludo e tal, muita gente ligada à droga, como o pessoal do Tim Maia. Meu pai era advogado e defendeu o Tim Maia várias vezes, roubou uma coisa na casa tal, estava sendo processado por roubo de vaso na casa tal. Procurava meu pai, que era advogado...

CONTINENTE – Você entrou na contracultura a partir de que idade?

ROGÉRIO SKYLAB – Eu nem sei. Você fala “contracultura”... Eu quero dizer, meu primeiro disco foi no início dos anos 1990. Foi o disco Fora da grei. Então, quando você fala “contracultura”, não sei nem o que você quer dizer.

CONTINENTE – Quero dizer, quando passou a usar cabelo grande, adotou um estilo de vida boêmio, ligado às artes, passou a não dar valor ao trabalho tradicional...

ROGÉRIO SKYLAB – Cabelo grande eu sempre tive.... e comecei a fazer meus discos. O decálogo é do Skylab 1 ao Skylab 10, foram dez anos e lancei todos os trabalhos no Programa do Jô, que era muito forte. Se você quiser dizer onde marquei presença com minha imagem, foram nesses discos, onde tinha de fato muito rock, onde a influência do Nirvana era poderosa. Como acontecia em bandas cariocas que não tinham o prestígio das bandas do BRock. Tipo Zumbi do Mato, banda alternativa do underground do Rio de Janeiro. O Rio era uma cidade fraturada. Tinha o Circo Voador, onde tocavam as bandas vitoriosas e tinha um outro lugar chamado Garage, que ficava na Praça da Bandeira. E ali tocavam bandas alternativas que não tinham sucessos, como Zumbi do Mato, Leela, Gangrena Gasosa, são bandas de um outro lado do Rio de Janeiro. Eu acho que eu faço parte desse outro lado do Rio de Janeiro.

CONTINENTE Eu queria saber mais sobre esse período antes do primeiro disco...

ROGÉRIO SKYLAB – Antes do primeiro disco era faculdade, muita discussão literária. Faculdade de Letras, depois transferi para Filosofia, na UFRJ. A Filosofia ficava no Largo de São Francisco, no centro da cidade. E a faculdade de Letras era num barracão na avenida Chile, um lugar muito alternativo e, quando saiu de lá, o pessoal de Letras foi para o Fundão, mas eu não peguei isso.

CONTINENTE – Ficou uns seis anos na faculdade?

ROGÉRIO SKYLAB – Mais ou menos. Estou falando da segunda metade dos anos 1970. Era a época das cantoras tipo Fátima Guedes, Marina, Joana (risos), Ângela Ro Ro. Era a primeira geração de cantoras que falavam, abertamente de uma liberdade sexual. Acho que foi exatamente aí nesse momento que a música brasileira ia mais devagar, quase morrendo, foi aí que precisou de outra coisa que foi o rock.

CONTINENTE – Você ouvia que bandas estrangeiras?

ROGÉRIO SKYLAB – Nos anos 1970 a força pra mim era a MPB. Estava falando isso com João Gordo, dos Ratos de Porão. Se você quer discutir comigo, vamos discutir MPB. De MPB eu entendo, ouvi muito. A partir dos anos 1990 é que comecei a ouvir rock, aí veio todo o movimento grunge, a retomada dos Beatles e Stones. Aí vem Led Zeppelin, foi um fenômeno,

CONTINENTE – Nos anos 1990?

ROGÉRIO SKYLAB – Sim, David Bowie veio ao Rio e foi um show meio frustrante. Em São Paulo foi espetacular, mas no Rio foi horrível. Nos anos 1990 eu retomei... e todo o movimento alternativo do rock com nomes como Frank Zappa, fundamental, referência absoluta. E depois mais tarde John Zorn, que tem uma importância muito grande. Captain Beefheart, esse lado alternativo do rock me chamava muito a atenção.

CONTINENTE – Pegou essas bandas já nos anos 1990 e não mais atrás?

ROGÉRIO SKYLAB – Exatamente. Comigo aconteceu isso. Quando o Led Zeppelin estourou, em 1970, eu era muito garotinho. Depois é que fui pro rock. Por exemplo, eu vi essas bandas todas brasileiras, vi todos elas. Titãs, Ira. Mas eu venho da MPB, minha origem é MPB.

CONTINENTE – Como vê esse estilo de música brasileira atual, digamos militante, onde se fala muito em “resistência”, “ancestralidade”.

ROGÉRIO SKYLAB – É complicado (risos). Esteticamente, muito ruim. Eu bebi em fontes como Frank Zappa, ou mesmo na MPB, Chico Buarque, Caetano Veloso. Os discos de Caetano no início dos anos 1970 eram poderosos. Quando você ouve essa música... E aí eu não estou querendo dar uma de “ah, na minha época era melhor”. É horrível esse tipo de coisa. Tanto que tenho um programa no Spotfy chamado Contemporâneos podcast onde eu analiso discos brasileiros de 2000 pra frente. O grosso são artistas que vieram depois da decadência das grandes gravadoras. São artistas que não ganham muito dinheiro, característica da nova geração, são artistas que não viveram a época áurea da música brasileira. É a geração de 2000, 2010 pra frente.

CONTINENTE – Mas voltando ao discurso militante...

ROGÉRIO SKYLAB – É ideológico, esse é um discurso ideológico, Emicida, Crioulo. É um discurso absolutamente ideológico. Compreendo totalmente que, numa sociedade absolutamente injusta como a nossa, é fundamental a afirmação da música negra, a afirmação das mulheres, do LGBTQIA+, é fundamental. O problema é isso se transformar em ideologia. O meu trabalho está ligado a uma coisa libertária. Então a camisa de força da ideologia me incomoda um pouco. Compreendo a postura deles, e eles estão fazendo festivais, ganhando muito dinheiro, ok, legal, bacana. Ao mesmo tempo, eu tenho minha música. Não me identifico com o trabalho deles. Mas acho o trabalho dos Racionais genial, diferente.

CONTINENTE – Existe patrulhamento hoje?

ROGÉRIO SKYLAB – Muito forte. Eu venho da esquerda. Quero me apresentar, mostrar meu trabalho em vários lugares. Se há possibilidade de cantar minha música no programa do Danilo Gentili, eu vou. Eu não vou ficar dizendo: “ah, essa cara é fascista”. Mas eu vou lá mostrar [meu trabalho] para o grande público. O meu lema é o grande público. Meu lema não é o nicho. Por isso que participei do Programa do Jô e agora no programa The noite, de Danilo Gentili. Qualquer lugar, onde possa passar o meu trabalho para uma grande quantidade de público, me interessa. Podcasts, Flow, fui várias vezes. Me interessa esse público de mistura. Estive no Provoca [da TV Cultura] e disse que fico feliz no canal aberto, o que me interessa é o canal aberto, não o fechado. Eu quero falar com o grande público, mesmo correndo o risco desse público não me compreender, me xingar, me ofender, como ofende. Eu tô pouco me lixando.  Me chamam para cantar numa casinha de 50 pessoas, eu não vou cantar para uma casinha de iluminados. Eu não vou, prefiro o Circo Voador.

CONTINENTE – Ainda sobre o patrulhamento, até os Rolling Stones foram patrulhados por uma música como “Brown sugar”.

ROGÉRIO SKYLAB – O tempo inteiro. E as marchinhas de carnaval? (risos) “O teu cabelo não nega, mulata” [dos Irmãos Valença e Lamartine Babo]. Esse clima é tão forte e ideológico que às vezes eu fico constrangido de cantar antigas músicas minhas como “Você é feia”, “Motosserra”, “Naquela noite”, que são claramente politicamente incorretas. O clima ideológico hoje é tão forte que às vezes me cria autocensura e me produz um constrangimento na hora de cantar essas músicas. E eu luto contra isso, procuro lutar contra. Se me perguntar a música minha mais conhecida, é “O meu pau fica duro”. É absolutamente politicamente incorreta. Mas o público vai ao delírio, é a que mais gostam. Talvez por isso, eu venha a ser conhecido, ligado a essa coisa do erótico. É uma pena porque meus últimos discos são riquíssimos em termos de construção, mas as pessoas querem ouvir aquela coisa. Fiz recentemente um show no Circo Voador lançando a Trilogia do fim, e chamei alguns artistas que fizeram parte para tocar comigo. Estava lotado, mas quando comecei a tocar [as músicas novas], o púbico se afastou. Foram beber. Depois voltaram.

CONTINENTE – Você conhece o trabalho do cearense Falcão?

ROGÉRIO SKYLAB – Sim. Alguma coisa. Não gosto muito não, acho chato. Um trabalho de humor. É muito difícil eu gostar de trabalho de humor.  As pessoas fazem associações que não têm nada a ver. Com Falcão, nada a ver. Eu não tenho muita relação com músico de humor.

CONTINENTE – Queria saber sua opinião sobre três figuras badaladas hoje em dia em festivais no Brasil. Primeiro, Anitta:

ROGÉRIO SKYLAB – Um dia eu falei para Régis Tadeu: “Pra mim, Anitta não existe”. Nós vivemos numa época em que as coisas são muito assim... Nunca ouvi nada dela, não interessa, não conheço nada dela, gosto de ver a dancinha, o bumbum dela, mas na música dela não tenho interesse. É como se não existisse.

CONTINENTE – Pabllo Vittar.

ROGÉRIO SKYLAB – Não existe, não dá nem pra...

CONTINENTE – Gloria Groove.

ROGÉRIO SKYLAB – Pior ainda. Se falei pior ainda é porque eu ouvi alguma coisinha pra falar. Você acha que nessa idade vou perder meu tempo ouvindo Pabllo Vittar e Gloria Groove? A gente tem de ser seletivo.

CONTINENTE – Você nunca teve mesmo problemas com censura?

ROGÉRIO SKYLAB – Isso é uma coisa surpreendente porque tem músicas em que eu mexo com personalidade. Por exemplo, tem uma música chamada “Fátima Bernardes Experiência”, em que crio uma Fátima Bernardes ficcional, maluca, e digo “Fátima Bernardes cheirando cola / Fátima Bernardes com a pica dura”. Evidentemente ela podia me processar, ficar puta comigo. Mas deve ter uma cabeça legal. Ela compreendeu qual era a viagem daquilo. Produzi uma Fátima Bernardes ficcional.

CONTINENTE – Como anda sua relação com o cinema?

ROGÉRIO SKYLAB – Vou trabalhar num novo curta, como ator. Tenho trabalhado como ator em alguns filmes. Por exemplo, Como se tornar o pior aluno da escola, um filme de Danilo Gentili [roteiro e produção], um filme horroroso, mas trabalhei com Joana Fomm, com atores e atrizes bons. Quando me sobra uma vagazinha para trabalhar no cinema, eu trabalho. Mas a força do meu trabalho é na música e na pesquisa em literatura.

CONTINENTE – Qual a situação da MPB atualmente?

ROGÉRIO SKYLAB – Muito boa. É porque você me deu péssimos exemplos anteriormente (risos). Nesse podcast que tenho no Spotfy eu analiso discos de artistas contemporâneos. Cada episódio é um determinado disco. Faço em recenseamento da Música Popular Brasileira, tocando, por exemplo, esse rapaz de Pernambuco, Zé Manoel, pianista que canta bem, trabalho autoral de canções, muito bom, espetacular, maravilhoso. Siba está trabalhado com música popular, é espetacular. Temos grandes artistas. Dizer que a música popular hoje é fraca em relação ao passado é conversa de preguiçoso. Se pesquisar, vai ver grandes figuras.

CONTINENTE – Mas isso não se reflete em grandes festivais como o Rock in Rio, por exemplo.

ROGÉRIO SKYLAB – Não só nesse, mas em outros festivais ligados à ideologia, esse é que é o problema. Eu, por exemplo, jamais seria chamado para um festival nesse toque identitário. Jamais. Mas, a música popular hoje? Riquíssima. Tem Ava Rocha, artistas maravilhosos. Nesse meu programa, o podcast Contemporâneos, cada episódio trata de um disco de um determinado artista. Faço com Paulo Almeida e com o sociólogo Marcos Lacerda, que tem vários livros sobre a canção. A gente analisa discos. Acho a música popular fortíssima, riquíssima.

CONTINENTEAgora, não é a música que toca no rádio.

ROGÉRIO SKYLAB – Não, no rádio você vai ouvir sertanejo, samba, pagode...e funk.


MARCELO ABREU é jornalista e escritor, autor de Viva o grande líder

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