Reportagem

Jogando contra o preconceito [PARTE 2]

Nos 75 anos do lançamento de 'O negro no futebol brasileiro', de Mario Filho, e no ano da 22ª Copa do Mundo, uma revisão de casos de discriminação racial e de gênero no esporte mais popular do país

TEXTO DÉBORA NASCIMENTO E LUCIANA VERAS
ILUSTRAÇÕES JANIO SANTOS, MATHEUS MELO E RAFAEL OLINTO

01 de Novembro de 2022

Ilustração Janio Santos, Matheus Melo e Rafael Olinto

[continuação da reportagem da ed. 263 | novembro de 2022]

Na última quarta-feira de setembro, o Sport Club do Recife jogaria contra o Clube Náutico Capibaribe pela 32ª rodada da Série B, o campeonato brasileiro da segunda divisão. O jogo começaria às 21h45, mas três horas antes uma faixa já demarcava o espaço próximo ao avião localizado dentro da sede do clube rubro-negro. Por ali, Wanessa Campos, 35, e Carol Souza, 24, entregavam os bonés confeccionados com a marca do coletivo por elas fundado em 2016: Elas e o Sport. E, ao lado de companheiros de outro agrupamento de torcedores, assavam carne e tomavam cerveja e refrigerante enquanto aguardavam a chegada da massa leonina. A animação era imensa e intensa – parecia até que estavam adivinhando que o Leão bateria o Timbu por 2 a 1, de virada.

Essa mesma instigação, no entanto, é diretamente proporcional à revolta que Wanessa, Carol e as 150 integrantes do “movimento”, como se definem, sentem no cotidiano. Porque, mesmo em 2022, ser mulher e frequentar um estádio de futebol (sejam as canchas tradicionais, como a Ilha do Retiro, o Arruda e os Aflitos, sejam as modernas e um tanto assépticas arenas) constituem um binômio complicado. “Até hoje em dia, em alguns grupos, a gente precisa provar que entende de futebol. Porque, senão, tudo que falamos é invalidado com aquela conversa ridícula de ‘ah, mas tu não sabe o que é um impedimento’, ‘acha que tudo é pênalti’ ou ainda ‘tu não sabe nem o nome do jogador, vem só porque é Maria Chuteira’”, situa Carol.

Lidar com essa platitude é o de menos, na verdade. Num país em que, segundo os dados da Pesquisa Nacional de Saúde (2019), divulgados em agosto de 2021 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres correspondem a 52,2% (109,4 milhões) da população nacional, é inadmissível que as torcedoras enfrentem o que Wanessa e Carol relatam à Continente – para não entrar na seara antiga da falta de estrutura dos banheiros femininos, por exemplo, que isso é problema crônico (“se os homens mijassem sentados, aí queria ver se faltava privada ou papel”, disse uma torcedora que por nós passou apressada, mas coberta de razão).

Elas já receberam ameaças de integrantes da maior torcida organizada do Sport, em áudios que vazaram e viralizaram (e nos quais são chamadas, no mínimo, de “gordas” e “burras”, ou de xingamentos ainda reservado às mulheres em um estádio – “puta”, “quenga”, “rapariga”), ao ponto de nem o boné confeccionado para o Elas e o Sport as integrantes poderem usar em paz. Elas são maltratadas por funcionários do clube; são intimidadas por policiais militares na hora de sair do estádio, muitas vezes em horários nos quais é escassa a oferta de transporte público; são ignoradas pelas próprias instâncias do Sport, como no caso em que se pronunciaram contra a contratação de um jogador condenado, em outro estado do Nordeste, por agredir a própria mulher. “Passamos dois meses pedindo uma reunião. Até hoje esperamos”, lembram.

 


Foto: Breno Laprovitera

Wanessa conta que, na final do Campeonato Pernambucano de 2019, pôde, finalmente, levar sua mãe para a Ilha do Retiro. Pela primeira vez juntas, sem a companhia de homem algum. “Porque eu sabia que, se chegasse com ela ou sozinha, ia encontrar as meninas aqui. Minha mãe tinha medo de vir. Participar do Elas e o Sport foi uma libertação: poder vir com ela, com minhas amigas ou sozinha, porque a gente pode vir sozinha sabendo que tem meninas junto aqui com a gente. Que vamos nos encontrar geralmente no pé de manga, ali, perto da entrada do estacionamento. Porque é só isso que a gente quer: vir pro estádio para torcer, vibrar, comemorar o gol, como qualquer outra pessoa, sem que ninguém nos assedie”, atesta. As mulheres só querem uma existência digna e plena na arquibancada.

Até porque, sem elas, não haveria a melhor descrição para esse ato de se emocionar muito diante do seu time de coração. É o que destaca a jornalista Ana Carolina Guerra, em seu projeto de conclusão de curso, apresentado em junho deste ano na Unicap. No website Jogadeiras – Futebol de mulheres no Brasil, ela narra: “A origem da palavra torcedor deu-se pela ação das mulheres que assistiam aos jogos gritando, xingando, e torcendo os seus lenços e luvas, que ficavam encharcados de suor devido ao nervosismo durante as partidas, realizadas no início do século XX. Foi a excitação das mulheres que fez com que o termo fosse criado pelo cronista esportivo Coelho Neto”.

Em outras desta compilação impressionante de dados e histórias, recorda que “o futebol feminino não recebeu apoio para ser desenvolvido da mesma maneira que o masculino” e que “as partidas não eram remuneradas e os jogos aconteciam apenas nas preliminares de disputas profissionais dos times formados por homens”. Até hoje, Marta, Formiga, Debinha, Cristiane, Bárbara e tantas outras atletas e ex-atletas da Seleção Feminina ganham muito menos – em salários, premiações e patrocínios – do que os homens que envergam o manto da Canarinho. E também, mesmo sem muito apoio do Conselho Nacional de Desportos (segundo Ana Carolina Guerra, o então presidente, Cesar Montagna, “afirmou que, mesmo com a regulamentação do futebol feminino, a categoria não deveria realizar os jogos em campos oficiais”), a Comissão Brasileira de Arbitragem (Cobraf) anunciou, em 23 de dezembro de 1982, “a criação de um quadro feminino de arbitragem, sob a perspectiva de regulamentação do futebol de mulheres no Brasil”.



Fotos: Folhapress; Breno Laprovitera; Marcos Ribolli

Quarenta anos depois, Deborah Cecília, uma recifense de 37 anos formada em Educação Física e estudante de Fisioterapia, é uma das poucas mulheres a integrar o quadro nacional da Fifa. “Somos 10 árbitras e 10 bandeirinhas. Homem tem muito mais”, resume a juíza, que conversa com a Continente numa quarta-feira à tarde, nos Aflitos, instantes antes de apitar o confronto entre Náutico e Ceará pela Copa do Brasil sub-20. Ela, que jogava futsal e nem sonhava em apitar, foi instada a fazer o curso oferecido pela Federação Pernambucana de Futebol e conquistou a vaga no quadro Fifa desde 2017. “E depois consegui passar para apitar no masculino”. As diferenças? “São os índices. Corro com eles na bateria deles: 40 tiros de 75m, com intervalo de 15 segundos apenas.” Para formar uma árbitra, no gênero feminino, a aferição é replicar os parâmetros masculinos.

À pergunta óbvia, porém ainda necessária, sobre como ser mulher e atuar na posição mais visada dentro de um gramado, ela responde com a firmeza que lhe caracteriza: “Quando eu entro no estádio, pode estar vazio ou lotado, mas o meu trabalho vai ser o mesmo. Nada vai me desconcentrar. Agora, a cobrança é maior e muito pior por eu ser mulher. É três vezes maior do que quando um homem erra. Porque não esquecem. Se um homem marca um impedimento errado, pode ter certeza de que vão esquecer. Mas se for uma mulher... Nunca vão esquecer. Podem passar 10 anos, mas, por aquela situação com Jean Carlos mesmo, vou ficar marcada para sempre”.

Em 30 de abril, quando o meia alvirrubro deu uma cotovelada no rosto de Yuri Bigode, do Retrô, na segunda partida da final do campeonato pernambucano, após a revisão pelo VAR (o sistema de arbitragem de vídeo), Deborah o expulsou; o jogador do Náutico se descontrolou e precisou ser contido. “Não vou falar sobre essa questão porque repercutiu muito”, diz. A pergunta que perdura até hoje é: se em vez de Deborah Cecília fosse um homem com o cartão vermelho na mão, Jean Carlos teria partido para cima da arbitragem?

Deborah ganhou o noticiário nacional em maio, depois do episódio com Jean Carlos. E coube a Igor Benevenuto, outro árbitro Fifa, dessa vez do quadro VAR, virar notícia em todos os cantos do país em julho ao ser entrevistado para o episódio O sindicato, do podcast No armário dos vestiários, uma produção do Globo Esporte em parceria com a Feel the Match apresentada por Joanna Assis e William De Lucca, e se tornar, aos 41 anos, “o primeiro árbitro Fifa no mundo a declarar minha sexualidade – porque hoje eu quero viver como eu mereço”. O curioso é que Igor havia dado a entrevista em off, mas ao ouvir o capítulo de estreia do podcast, em que o ex-jogador e atual comentarista Richarlyson (craque do São Paulo e do Atlético Mineiro na década de 2000) se revela bissexual, decidiu romper com o anonimato e permitir que a verdade viesse à tona.

Em entrevista à Continente, de Belo Horizonte, onde nasceu e ainda mora, ele pontua: “Primeiro, chorei igual a louco, né? De emoção. Tremia e morria de medo quando saiu a reportagem. Mas foi muito legal e positivo o apoio das pessoas me abraçando, me ligando e me mandando mensagens. Nos jogos que eu tenho ido, assim que chego ao estádio, vários jogadores e treinadores vêm me dando parabéns pela minha atitude. E isso foi muito bom. Diretamente, não ouvi nenhum tipo de agressão verbal para mim, mas sei que algum comportamento inadequado ainda pode existir. Mas a gente está se preparando e eu espero que isso não aconteça, assim como espero que a repercussão da minha história toque várias pessoas que vivem a mesma situação. Muita gente me mandou mensagem me parabenizando, me dando força e contando sua história. É de arrepiar cada história que eu ouvi. Tem muito gay ainda no armário do futebol”.

Igor conta que, na infância, odiava o esporte. “Imagina uns 25 anos atrás: a criança que não jogava bola já era taxada ‘ah, vai ser bichinha, vai ser gay, isso vai ser um viadinho’. E por volta dos meus 12 anos, eu já sabia que tinha atração por homens. Fiquei numa sinuca de bico, inclusive com a cobrança toda de uma família evangélica, e tive que arrumar uma estratégia para camuflar essa minha orientação. Aí veio a Copa do Mundo de 1994 e a figura do árbitro ali no campo me chamou muita atenção. Quando comecei a gostar do futebol, meus olhos estavam focados na arbitragem. E ali consegui me camuflar”, recorda.

Mas quando, já como juiz nos jogos dos amigos, era chamado de “Margarida”, apelido do árbitro Jorge José Emiliano (que atuou nos anos 1980 e 1990), ele se ressentia. “Todo mundo vai para campo para poder atacar o árbitro e as pessoas e qual é o grito que começam? Viado. Me incomodava muito ser ligado a Margarida porque ele era homossexual. Eu, como gay que queria esconder para todo mundo, ficava incomodado. O homem que era chamado de Margarida, se fosse hetero, se sentia menosprezado porque a pessoa que é gay perante a sociedade é inferior às outras pessoas. Isso é o pensamento. Então, para poder xingar uma pessoa, é de ‘bicha’, ‘viado’. Porque pesa e diminui a honra e a masculinidade”, constata o juiz.

Para a população LGBTQIAP+, um estádio de futebol é o espelho da crueldade e do preconceito arraigados em nosso DNA de nação. É o templo da performatização de uma masculinidade ameaçada por qualquer drible, para usar uma metáfora apropriada, à heteronormatividade. “O futebol está dentro de uma sociedade homofóbica. Moramos no país que mais mata LGBT+ do mundo. Não podemos imaginar que vamos ter um futebol superdiverso em uma sociedade extremamente conservadora e homofóbica. É como se a estrutura para sustentar aquela masculinidade padrão não pudesse ser ameaçada por nada diferente daquilo. Então, é preciso educar para a diversidade”, alerta o jornalista e ativista William De Lucca.

De Lucca, coapresentador do No armário dos vestiários, foi ele mesmo fonte do podcast, falando sobre sua experiência na arquibancada do Palestra Itália. “Tenho essa militância desde 2013, quando ajudei a fundar a Palmeiras Livre, e há dois anos também fundei o Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTq+, que congrega 16 torcidas. É difícil ser ativista nessa pauta porque homofobia, no futebol, é muito séria e os ativistas que ousam pautar esse debate são muito atacados e perseguidos. Eu mesmo já recebi muitas ameaças de agressão e até de morte nos espaços virtuais. É difícil ser vocal nesse sentido, até porque você só quer estar torcendo por seu time de forma digna e segura”.


Imagens: Lucas Figueiredo/CBF/Divulgação; Acervo pessoal

No lançamento do observatório, em um encontro virtual transmitido pela Mídia Ninja em agosto de 2020, dezenas de ataques LGBTfóbicos ocorreram após a divulgação pública do link – numa reprodução online da agressividade recorrente nos estádios. “O grau de violência sofrido pelas torcidas nas redes sociais antes do lançamento do Observatório mostrou a necessidade de gerarmos uma ferramenta que pudesse ajudar a monitorar esses casos e propor mecanismos e alternativas de combate a LGBTfobia no futebol”, ratifica o coletivo.


Extra:
Leia a entrevista completa com Márcio Chagas


A recifense June Ellen, que integrou a Coral Pride, a torcida LGBT+ do Santa Cruz Futebol Clube e atua no Canarinhos, compreende que a jornada é difícil. “Os torcedores vão a campo como se fossem gladiadores, para matar ou morrer. É uma cultura de violência extrema. E eles sabem que, em casos de machismo ou homofobia, pouco ou nada vai ser feito contra eles. É um passe livre para agir dessa forma, para dizer que futebol não é lugar de viado. Quando nós reclamamos, é sempre o mimimi, o vitimismo. Porque efetivamente pouco é feito mesmo. Se uma torcida usa cânticos homofóbicos, o coletivo reclama e representa no STJD, mas a punição ainda é pequena”, situa. Ela, contudo, crê numa transformação. “Tenho que acreditar na mudança. Busco fazer minha parte. Se vou ao estádio com amigos e a torcida puxa algum cântico homofóbico, digo pras pessoas não cantarem mais aquilo”, ilustra.

Um evento realizado neste ano pode apontar para um futuro mais democrático no futebol. Em agosto, a CBF promoveu, pela primeira vez, um seminário para discutir racismo e violência no desporto. Além de ter criado um grupo permanente para analisar diversos casos e ações, a entidade também está mais inclusiva. Após mais de 100 anos de existência, tem agora um presidente negro (Ednado Rodrigues) e duas mulheres como diretoras: Samantha Longo, na Diretoria Jurídica, e Luísa Rosa, na Diretoria de Patrimônio. Além delas, Aline Pellegrino, gerente da Diretoria de Competições, e Regildênia Holanda Moura, a primeira mulher no comando da Comissão de Arbitragem.

Será que a mudança acontecerá a tempo de beneficiar esta ou a próxima geração de torcedoras e torcedores, jogadoras e jogadores, árbitras e árbitros? Banir de vez o racismo, o machismo, a misoginia e a homofobia do futebol: eis um imenso desafio. Em ano de Copa do Mundo, no campo da várzea, no Maracanã, na Ilha do Retiro, em qualquer lugar… O futebol precisa, de uma vez por todas, jogar melhor preparado e seriamente contra o preconceito.


Foto: Thaís Magalhães/CBF/Divulgação

DÉBORA NASCIMENTO e LUCIANA VERAS, repórteres especiais da Continente.
JANIO SANTOS, MATHEUS MELO e RAFAEL OLINTO, designers da Continente.

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