Entrevista

“O futebol é uma representação contemporânea da escravatura”

Ex-juiz gaúcho Márcio Chagas analisa a situação dos negros no esporte, assim como os ataques racistas que forçaram o encerramento precoce de sua carreira

TEXTO Débora Nascimento

22 de Dezembro de 2022

Márcio Chagas, professor de Educação Física, ex-árbitro e militante antirracista

Márcio Chagas, professor de Educação Física, ex-árbitro e militante antirracista

Foto Folhapress

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Após a final da Copa do Catar, os jogadores negros da seleção francesa foram alvo de ataques racistas nas redes sociais, vindos tanto de torcedores argentinos quanto dos próprios franceses. O racismo é uma das faces mais cruéis do esporte mais popular do planeta. O ex-árbitro gaúcho Márcio Chagas sabe o que é enfrentar esses covardes discursos de ódio. Também recebeu ofensas racistas do mesmo nível que atingiram craques da elite do futebol, como Mbappé. Premiado e aspirante a árbitro da Fifa, Márcio abandonou a carreira de juiz, em 2014, com apenas 37 anos, exatamente por conta do preconceito racial. 

A primeira situação de racismo no futebol que enfrentou ocorreu na sua estreia na arbitragem, apitando a final do Efipan – Encontro de Futebol Infantil Pan-americano, no interior do Rio Grande do Sul, e partiu do time argentino Boca Juniors. Após o fim da partida, o coordenador de arbitragem revelou: “Olha, eles não queriam jogar. Disseram que não confiavam em um negro apitando um jogo decisivo. E eles queriam que eu te tirasse do campo. E eu disse que não ia te tirar. E ainda bem que tu foi bem, porque isso demonstrou que tu está pronto para apitar grandes jogos e eu não quis influenciar ou atrapalhar o teu rendimento da partida com essa informação. Mas já te digo mais: isso vai ser bem recorrente na tua carreira”.

Infelizmente, o coordenador estava certo. O fato ocorreu em 2001 e, a partir daquele ano, Márcio viveu diversos momentos difíceis e ultrajantes na sua experiência como árbitro, principalmente por viver e trabalhar no Rio Grande do Sul, estado da região brasileira que lidera casos de racismo nesse esporte, segundo o Observatório da Discriminação Racial.

Embora jogasse basquete na juventude, a ligação com o futebol começou desde cedo, pois seu pai, hoje falecido, era um dos dirigentes do Grêmio Porto Alegrense. Formado em Educação Física, Márcio fez o curso de arbitragem em 1999. Em 2004, veio a estreia no Campeonato Gaúcho da primeira divisão, que apitou durante 10 anos, sendo eleito por cinco vezes o melhor árbitro da competição anual. E em 2005, entrou para o quadro da CBF, atuando nas competições nacionais.

Nesta entrevista à Continente, que é conteúdo extra da reportagem de capa de novembro (ed. 263) sobre diversos preconceitos nesse esporte, Márcio Chagas narra chocantes situações de racismo das quais foi vítima, como também tece análises relevantes sobre o papel dos clubes, da CBF e da Fifa neste assunto – a entidade coloca a responsabilidade da denúncia e do registro de ofensas racistas nas mãos dos juízes de futebol.

Para Márcio Chagas, o futebol é uma representação contemporânea do racismo. “É a única profissão no mundo que se fala em comprar e vender pessoas, e com naturalidade. E se partilham corpos e normalmente esses corpos são corpos pretos. Não tem mais um navio negreiro, mas tem o avião negreiro. Que vem da Europa, explora mão de obra barata, pobre, miserável, cada vez mais cedo. São famílias que entregam seus filhos com 11, 12 anos pros clubes por três alimentações, café, almoço e janta, porque é uma boca a menos dentro de casa. Só que, ao mesmo tempo, esses clubes não têm compromisso algum com a formação e a escolarização desses meninos. E quando eles não se tornam jogadores, eles simplesmente caem no mercado de trabalho para ocupar posições de subserviência.”

CONTINENTE Gostaria de começar perguntando como é ser uma pessoa negra no Sul deste país, uma região notoriamente racista, com vários casos de racismo?
MÁRCIO CHAGAS Ser negro no Brasil é difícil. Viver no Rio Grande do Sul é quase uma sobrevivência. Não se vive, se sobrevive. É um recorte racial, social muito forte, mas é uma cidade extremamente segregadora, racista, machista, homofóbica. Por mais que, em alguns espaços, ela demonstre uma certa democracia. Mas ela tem espaços destinados. Eu moro numa região relativamente considerada de classe média, média alta. Eu sou um dos poucos negros que habitam nesse bairro e, de certa forma, me blinda um pouco, porque eles têm que, como dizia o Zagallo, me engolir. Estou dentro do eixo deles sem pedir nenhum favor e estou aqui. Mas eu sinto, através de olhares, algumas questões em termos de reprovação. Eu moro na frente de uma praça que todos os finais de semana lota. Num determinado momento, quando ela estava sendo revitalizada, uma pessoa veio me questionar se eu trabalhava na praça pra entregar cadeira pra ela poder sentar, pra fazer o lazer dela. Eu já trabalhava na televisão. Aí perguntei pra ela assim: "Por que que tu acha que eu trabalho aqui? Eu sei por que tu acha que eu trabalho aqui. Porque eu sou a única pessoa preta que está aqui tendo a mesma oportunidade de lazer e pra vocês não é normal. O normal seria eu estar numa posição de subserviência aqui te atendendo. Mas eu não estou te atendendo. Eu também estou consumindo a praça assim como tu, estou brincando com meu filho. Eu não estou aqui entregando cadeira, entregando guarda-sol". [Ela] "Ah, mal educado." Eu disse: "Não, tu que é racista, tu tem que rever a maneira como tu enxerga uma pessoa preta. Eu também tenho um poder de consumo como tu".

Então, é um desgaste constante, porque tem que estar ensinando o tempo inteiro. E o tempo que eu perco pra ensinar um racista a conviver é o desperdício de tempo de estar com os meus filhos, estar lendo, estar ampliando o meu conhecimento, porque consome demais. E agora uma das práticas mais frequentes que se tem quando alguém comete algum ato de racismo é dizer: “Eu quero aprender”, “Eu não sabia”. Pô, o beabá do convívio vocês não sabem?! Então parece que tem sempre que ter alguém pra estar o tempo inteiro pontuando falas, comportamentos, manifestações que não são adequadas para que a gente possa conviver de uma maneira harmônica. 

CONTINENTE Quando você passou pela primeira situação de racismo arbitrando? 
MÁRCIO CHAGAS A primeira foi justamente na minha primeira competição em 2001. Fui apitar em Alegrete, no interior do Rio Grande do Sul, Efipan – no Encontro de Futebol Infantil Pan-americano. Era semifinal do Boca Juniors da Argentina contra o Defensor do Uruguai. Quando eu entro no campo, a equipe do Boca Juniors sai. E aí eu penso: bom eles vão rezar, fazer todo aquele protocolo que a gente já conhece. Só que não. Eles começaram a demorar cinco, 10, 15 minutos e havia uma movimentação nas arquibancadas de um dirigente que saía do vestiário, subia a arquibancada e voltava. Bom, o time entrou depois de 15 minutos, ganhou a partida e aí, no final do jogo, eu fui perguntar pro meu coordenador da arbitragem o que tinha acontecido. E aí ele ficou meio sem jeito de me contar. Aí ele me puxou pelo braço, me chamou pro lado assim e me contou: “Olha, eles não queriam jogar, o time do Boca. Porque eles disseram que não confiavam em um negro apitando um jogo decisivo. E eles queriam que eu te tirasse do campo. E eu disse que não ia te tirar. E ainda bem que tu foi bem, porque isso demonstrou que tu está pronto para apitar grandes jogos e eu não quis influenciar ou atrapalhar o teu rendimento da partida com essa informação. Mas já te digo mais: isso vai ser bem recorrente na tua carreira. Isso vai ser muito frequente na tua carreira”.

Fiz o curso de arbitragem em 1999. No meu primeiro ano, em 2000, eu trabalhava como bandeirinha e apitava jogos amadores, mas eu trabalhava oficialmente como bandeirinha. Quando eu comecei a apitar, em 2001, me deparei com essa situação. E ali comecei a observar que realmente aquilo iria me acompanhar durante a minha trajetória como árbitro. Tanto que, em 2004, quando fui indicado árbitro revelação do Campeonato Gaúcho da primeira divisão, um membro da comissão de arbitragem me chama pra ir até a casa dele, que era o que eu tinha a melhor relação. Fui até a casa dele. Sentei. Era um baita de um apartamento e tal. Sentei, ele me deu um papel e uma caneta e pediu pra eu ir anotando, pra gente fazer um plano de carreira. E eu inocente comecei a anotar. Não deu cinco, 10 minutos, no máximo. Ele pediu licença, pegou o papel e começou a ler o que eu tinha escrito e falou: “Bá, a letra é tua mesmo. Nós estávamos em dúvida se alguém te ajudava a redigir a súmula porque é um português muito bom e uma letra bonita”. E aí eu disse assim: “Eu sou formado, pós-graduado, concursado, eu trabalho em três empregos e tu tem dúvidas se eu tenho capacidade intelectual de redigir uma súmula?”. Ele disse: “Não, não é isso que você está pensando”. Respondi: “Eu já sei o que vocês estão pensando. Vocês acham que eu não tenho condições ou tu acha que eu falsifiquei o meu diploma de formado. Tu não precisa estar me xingando, eu entendi qual é a dúvida de vocês”. Ali eu senti que, mesmo eu sendo bom dentro do campo, eu tinha que provar muito mais fora do campo. E aí comecei a entender muito melhor essa dinâmica do futebol.

No meu entendimento hoje, de uma forma crítica, mesmo gostando do futebol, eu vejo o futebol como uma representação contemporânea da escravatura muito forte. É a única profissão no mundo que se fala em comprar e vender pessoas e com naturalidade. E se partilham corpos e normalmente esses corpos são corpos pretos. Não tem mais um navio negreiro, mas tem o avião negreiro. Que vem da Europa, explora mão de obra barata, pobre, miserável, cada vez mais cedo. São famílias que entregam seus filhos com 11, 12 anos pros clubes por três alimentações, café, almoço e janta, porque é uma boca a menos dentro de casa. Só que, ao mesmo tempo, esses clubes não têm compromisso algum com a formação e a escolarização desses meninos. E quando eles não se tornam jogadores, eles simplesmente caem no mercado de trabalho para ocupar posições de subserviência. Então, é porteiro, segurança, empacotador, um Uber. Nunca numa perspectiva de acompanhar esse topo da pirâmide que, em algum momento, eles até ocuparam, porque não há interesse do sistema.

A grande maioria dos negros que são protagonistas dentro do campo de jogo, quando saem das quatro linhas, são invisibilizados e mudos. Eles não ocupam posições de poder e nem de decisão no futebol. Eles não são diretores de futebol, presidente dos clubes, CEO, árbitros, bandeirinhas, preparadores físicos, treinadores. E a própria estratificação dentro dos estádios demonstra muito bem como se apresenta isso ali, naquele cenário do futebol. Quem é que senta na tribuna, quem senta no camarote, quem senta na cadeira, quem senta na arquibancada e quem senta nas arquibancadas localizadas atrás dos das goleiras, as ditas gerais. Então, o futebol é uma representação muito forte da escravatura, onde os corpos pretos são moedas de troca exploradas até hoje.

CONTINENTE E o erro não é admitido, né? Não existe essa tolerância para o erro, e principalmente para o erro cometido pelo profissional negro, vide a história de Barbosa (goleiro da Seleção Brasileira no jogo contra o Uruguai, na Copa de 1950). Mas parece que o juiz é a pessoa de quem menos se tolera o erro. Nessa preparação que você passou pra ser árbitro, existia algum tipo de orientação com relação a xingamentos e à questão específica do racismo?
MÁRCIO CHAGAS Nunca houve uma preocupação e nenhum debate com relação a essa questão racial. As informações eram gerais. Então, quando eu passo minha primeira situação de racismo no futebol, em 2005, faço todo o protocolo de denúncia, encaminho na súmula, que vai pro Tribunal de Justiça Desportiva da Federação, e ali a punição é de 15 dias para a pessoa que cometeu o crime de racismo, eu percebo que não há interesse também e nem vontade de abordar essa temática. Só que, no final do ano de 2005, um jornalista do Zero Hora fez uma matéria sobre o racismo no futebol gaúcho e veio à tona o assunto dessa história que tinha acontecido comigo em outubro de 2005; vem a público numa matéria, num jornal e aí esse repórter não fez a matéria somente comigo, fez com vários casos que vinham acontecendo, inclusive o personagem principal da matéria era o Paulo César Tinga, um jogador aqui do Rio Grande do Sul que, quando tocava na bola em Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, um jogo contra o Juventude, a torcida emitia o som de macaco. E o árbitro da partida, o Agrício Pena Júnior, de Minas Gerais, parou o jogo e comunicou para o delegado da partida que, se continuassem as manifestações, ele ia colocar em súmula. Ele colocou em súmula. O Juventude acabou perdendo 10 mandos de campo na reta final do Campeonato Brasileiro de 2005, recorreu e jogou cinco partidas com portões fechados. Nessa matéria, esse jornalista reacende esse debate. Ele vai na cidade de Encantado conversar com o treinador desta equipe que tinha me ofendido, ele nega, porque o racista sempre é covarde e mentiroso. Daí tem um jogador dessa própria equipe que confessa que realmente tinha acontecido o fato. E que, por ele ter uma relação de respeito comigo e tal, ele tinha ficado muito chateado e não admitia que aquilo ali tivesse acontecido na cidade dele, porque não era uma dinâmica comum.

Depois em 2006, novamente com um goleiro de uma equipe aqui em Porto Alegre, só que era sábado, véspera de eleição. A gente foi pro Palácio da Polícia fazer a ocorrência, ele não foi preso em flagrante porque tem essa cláusula na Justiça Eleitoral de que não pode prender ninguém no período de eleição e ele não foi preso. Foi pra justiça desportiva, ele tomou uma suspensão de 10 jogos e aí eu comecei a pensar assim: “Será que eu sou o único problemático da história aqui?”. Então, de 2006 a 2014, durante oito anos, até que acontecesse novamente esse fato em Bento Gonçalves, quando eu ia apitar na Serra Gaúcha – Bento Gonçalves, Caxias, Farroupilha, Garibaldi, Carlos Barbosa, Veranópolis, que é uma região de colonização italiana –, eu aquecia no vestiário sozinho e não aquecia mais no campo de jogo pra não ouvir os xingamentos racistas. Para preservar a minha mente e poder atuar sem essa influência antes das partidas, porque durante eles aconteciam também. Mas tipo assim: “Pô, eu não vou aquecer já escutando esse monte de coisa, né? Até porque eu vou identificar, vou estar perto dos caras, eu vou querer responder”. Então, pra eu não entrar na discussão e, daqui a pouco, algum sacana até filmar e vão dizer que o desequilibrado sou eu, eu não aquecia mais no campo. Só que, no dia 5 de março de 2014, na cidade de Bento Gonçalves, mesmo me preservando, aquecendo sozinho no vestiário e os meus colegas brancos aquecendo no gramado tranquilamente, como qualquer pessoa comum, fui xingado antes de começar o jogo, no final do primeiro tempo, antes de começar o segundo tempo e no final da partida. E, em todos os momentos, estava acompanhado da Polícia Militar, que não fez nada. Então, eu estava com quem deveria me proteger e, ao mesmo tempo, eu estava sozinho, não tinha nem como contar com a Brigada Militar, porque também estavam sendo coniventes com os criminosos. Então, eu estava sozinho. E aí veio todo o cenário de pegar meu carro, que estava com as portas amassadas a pontapés e com cascas de banana sobre o capô. Quando eu fui dar a partida do veículo, meu carro engasgou três vezes; na quarta, caíram duas bananas do escapamento e ali, pra mim, foi a gota d'água.

Então, eu venho a público, trago o episódio, sou questionado, e muito, sobre a veracidade do fato, porque a palavra de uma pessoa negra, somente a palavra, não vale. Ele tem que provar ainda que aquilo ali realmente aconteceu. Só que eu vim de uma formação familiar que me deu uma estrutura muito boa para lidar com esse tipo de situação, até porque nunca houve romantização dentro da minha casa com a temática racial na minha vida inteira. Eu tenho 46 anos e, desde os quatro, cinco anos, os meus pais já preparavam os filhos para esse tipo de situação. Então, quando acontece o fato em Bento, eu não tiro foto no meu telefone, eu peço pra um colega meu tirar a foto. Porque se eu tirar a foto, não tem credibilidade. Agora, se uma outra pessoa tirar a foto, está isento. E aí eu peço pro meu colega: “Tira as fotos e amanhã de manhã tu me encaminha. Eu não vou tirar foto”. Quando eu chego na minha casa por volta das 2h30 da manhã, não consigo fazer a ocorrência policial. Eu fico zanzando da sala pro quarto, do quarto pra sala. Na época, meu filho Miguel tinha 10 meses, era um bebê de berço, ele hoje tem nove anos. A minha falecida esposa estava dormindo e eu não quis acordá-la. E aí veio a ideia, vou redigir um texto, vou encaminhar pra imprensa e vou esperar o que vai dar. Redigi o texto, fui me deitar por volta das 6h da manhã, 10h30 começou a tocar meu telefone. Pedi pro meu colega encaminhar as fotos e o assunto veio a público. E aí foi notícia não somente aqui, mas no país, no mundo. E veio a imprensa, todo mundo dentro da minha casa. Era ano de Copa do Mundo, 2014, ano de eleição, e vários casos acontecendo no mesmo período, o que trouxe à tona o debate sobre a questão racial dentro do futebol, até então sempre mascarado e mentido com a versão de que é um espaço democrático, quando, na realidade, a gente sabe que não é. É um espaço extremamente conservador, racista, elitista, de perpetuação de poder dos tataranetos dos senhores escravagistas. É isso que é o futebol hoje em dia. 

CONTINENTE Queria que você falasse ainda sobre esse papel dos árbitros. Não somente o árbitro que sofre a injúria racial, mas o que assiste à injúria racial, porque eles têm um papel fundamental no combate ao racismo no futebol. 
MÁRCIO CHAGAS Omissos, completamente omissos. Porque já estão pensando numa próxima escala. Então, não querem comprar uma briga, até porque é um sistema extremamente opressor a arbitragem. É um militarismo, porque quem comanda são ex-militares. Então, há uma pressão de milico ali dentro, né? Qualquer coisa que fuja do controle de quem comanda, vem a punição. Então, nunca houve o debate, a preocupação, a escuta para tratar esse assunto dentro do meio da arbitragem. Na realidade, não se quer falar e se puder fazer o ouvido de mercador, melhor ainda. A ideia é não levar o problema pra dentro da CBF, a ideia é não ter que redigir na súmula, porque ninguém quer se envolver com pautas que, pra eles, não são interessantes. Essa é a realidade. E os árbitros, de certa forma, alguns até se interessam, mas ficam com medo da retaliação e a retaliação acontece. Eu, quando vim a público e expus a situação, o presidente da federação na época, Francisco Novelletto, que hoje é um vice-presidente da CBF, me liga e me pergunta: “Por que que tu não me ligou antes de falar pra imprensa?. Eu disse: “Porque é uma causa pessoal”. – “É, mas tu tá vendo que tu tá expondo a competição, o estado e o meu amigo que é o presidente do Esportivo”. E aí eu perguntei pra ele, “Tá, e eu, como é que fico nessa história?” – “Bom, vocês estão acostumados com isso. Se o problema é o teu carro, eu pago o teu carro. Era só ter me dito. Você está fazendo uma tempestade dentro de um copo d'água”. E aí eu vi que a federação não ia e não comprou a minha denúncia. Tanto que, no final, ele ainda disse: “Bom, tu sabe que a tua carreira foi pro ralo, né?” – “Não tem problema, porque agora eu não vou recuar, eu vou até o final”.

Bom, daí o presidente da federação, o Novelletto, ele me fala isso. Ali eu percebi que, mesmo tendo tomado a atitude mais correta, eu não teria o respaldo algum da federação, como não tive. Tanto que eu encerro a minha carreira como árbitro aos 37 anos, sendo um árbitro aspirante à Fifa. E isso faz oito anos. Estou com 46 agora. Poderia estar apitando até hoje, mas ali eu percebi que eu não tinha mais como representar uma entidade racista, que no momento que deveria me apoiar numa situação de dificuldade, até porque foi um crime que eu sofri, simplesmente virou as costas pra mim, pra ficar do lado do criminoso, que eram os dirigentes do Clube Esportivo de Bento Gonçalves. E aí fomos para o julgamento do TJD, que foi onde eu tomei a minha decisão, de fato, de largar a arbitragem, que foi quando o advogado de defesa do Esportivo, dentro do tribunal da Federação Gaúcha de Futebol, disse: "Chamar um negro de macaco não é ofensivo. Eles estão acostumados com isso. Agora, se deparar com um veículo com as portas amassadas, a ponta pés, isso, sim, é doloroso para um homem, conforme a propaganda dos postos Ipiranga, porque o brasileiro é apaixonado por carro". Ali, esse cara deveria ter sido preso. Foi motivo de risada dentro daquele ambiente e o único incomodado e a única pessoa preta ali era eu. Eu me levantei, saí. Isso era pra uma quinta-feira que antecedia a final do Campeonato Gaúcho, que eu ia apitar e apitei no domingo. E aí eu pensei: “Antes que eu dê um soco e quebre a cara desse cara e seja suspenso, eu vou me embora, vou encerrar minha carreira no domingo apitando nessa partida final, que foi um clássico aqui, e não represento mais essa entidade porque, pra mim, encerrou meu ciclo aqui. E fim de papo”. Foi a decisão que tomei em 2014 e encerrei minha carreira, porque eu não tinha mais nenhum clima para frequentar aquelas pessoas, conviver com elas.

CONTINENTE Você encerrou sua carreira de árbitro aos 37 anos, mas até que idade um árbitro pode trabalhar?
MÁRCIO CHAGAS Em 2014, nacionalmente, ia até os 45 anos, e regional até os 50. Mas, nesses últimos oito anos, houve uma modificação. Então, hoje o árbitro pode apitar até os 55 anos, tanto regionalmente como nacionalmente. Passando no teste físico, estando apto, ele pode atuar. 

CONTINENTE O que você acha da reação dos jogadores às injúrias raciais? Você concorda com elas? Por exemplo, quando jogaram aquela banana no campo, Daniel Alves comeu. 
MÁRCIO CHAGAS Eu acho que elas são muito pacíficas. E a do Daniel Alves, pra mim, foi um desserviço ter feito aquilo. E aquela hashtag [#somostodosmacaco] foi pra vender camiseta pro Luciano Huck ganhar dinheiro, mais dinheiro ainda. Eu não culpo esses jogadores, mas, ao mesmo tempo, eu rechaço a maneira como eles atuam com relação à luta antirracista, mas eu também volto lá ao início do nosso bate-papo, porque onde não há escolarização, não tem nem como se conhecer a sua própria história. E, no Brasil, se vende a ideia de que o Brasil foi descoberto, quando, na realidade, ele foi invadido. Então, não se fala aí na questão do período de 350 anos de escravização no país, do pós-abolição. Logo que teve a Abolição, em 1888, no ano seguinte, já veio a "lei da vadiagem", pra prender todo mundo. Então, num país onde as pessoas não sabem nem a sua história, elas não têm como se manifestar, e aí eu tenho que fazer uma analogia dos atletas americanos negros com os atletas brasileiros. Porque, nos Estados Unidos, nenhum atleta não se torna profissional sem passar pelo high school, pelo college, pela universidade. Já tem um nível intelectual muito mais avançado e já está preparado como se estivesse entrando no mercado de trabalho. Aqui, no Brasil, se começa uma carreira profissional com 16, 17 anos, mas sem ter terminado sequer o ensino fundamental. Então qual é o parâmetro para esse atleta? É o empresário dele.

Quem são os empresários? Normalmente são homens brancos, racistas, homofóbicos, machistas e conservadores. O discurso desse atleta vai ser o mesmo, porque vai vender a ideia de que ele já não é mais preto. Ele já está num patamar diferente. O atleta brasileiro, que ganha dinheiro, a primeira coisa que ele faz é se tornar branco, porque ele não quer mais ser preto. Porque ser preto num país racista é muito ruim. A história da negritude dentro do nosso contexto social, se a gente for analisar, ela não traz nenhum benefício em ser preto. A não ser os que ascendem economicamente, porque daí vão ter uma caminhonete, vão ter uma mansão, vão ter lancha, um monte de mulher, vão frequentar tudo que é festa e vão ser tolerados em virtude do seu dinheiro estar sendo aceito e gasto dentro de um ambiente que é racista. Então, é complicado com relação aos jogadores em termos de posicionamentos. E não é uma questão nem de posicionamento partidário, é de politização. Não há interesse. Porque a própria imprensa diz que futebol e política não se misturam. Nunca há um interesse para um debate político, quando, na realidade, nós todos somos agentes políticos o dia inteiro. E eu digo normalmente que quem é preto começa a ser politizado desde cedo, quando tem que ouvir do pai e da mãe, com 7, 8 anos, que tem que sair bem arrumado, sair com documento e não correr nas ruas, porque o risco de não voltar pra casa é muito grande, se, porventura, se deparar com a polícia. Não tem como não ser politizado. A não ser que seja alienado.

CONTINENTE Qual é a sua análise sobre esses mecanismos de combate ao racismo no futebol?
MÁRCIO CHAGAS Eu vejo como uma transferência de responsabilidade. A Fifa, em 2019, lançou um código disciplinar com relação à questão da luta antirracista. E aí tira toda a responsabilidade da entidade e transfere para a arbitragem. A arbitragem é que está agora tendo que fazer isso. A orientação era fazer três procedimentos. Primeiro, paralisar a partida. Segundo, comunicar ao delegado da partida através dos alto-falantes para que as manifestações parem. E terceiro, encerrar o jogo. Só que o que normalmente acontece quando os jogadores são ofendidos e reclamam da arbitragem, os próprios jogadores recebem uma advertência. Segundo, já viu algum hábito preto apitando na Europa? Como é que vai ter luta antirracista com os próprios colonizadores, os descendentes dos colonizadores? Não vai ter, porque um italiano que for apitar lá na Rússia, ele vai dizer que não entende o russo, que não entendeu a manifestação, não vai botar na súmula. E o que fizer esse procedimento de encerrar uma partida, nunca mais apitará também. Então, não há interesse. Quando a Fifa tira do colo e transfere para arbitragem, que é o lado mais fraco, ela simplesmente está lavando as mãos: se a arbitragem não fizer nada, não tenho nada a ver com isso. Mesmo que tenha um representante lá da entidade que observe tudo que esteja acontecendo, ele vai transferir pro lado mais fraco da corda que é o da arbitragem. E não vai ter essa manifestação. Então, as entidades são covardes. 

A CBF este ano está com algumas ideias inovadoras. Inclusive, em setembro, fez o primeiro seminário antirracista, trouxe a pauta, fizeram vários debates, o presidente da CBF, de alguma forma, está tentando algum tipo de punição a partir do campeonato do ano que vem. Tem uma resistência muito forte dos clubes para que não aconteça, porque sempre se pensa adiante, né? “Ah! E se algum torcedor infiltrado do outro time entrar na torcida e fizer?”. Identifica, entrega. Tinha um fato que era bem corriqueiro no futebol brasileiro que era o lançamento de objetos no campo de jogo. Não aconteceu mais, porque quem fizesse o arremesso, automaticamente todos os torcedores já identificavam e entregavam. Mas quando são racistas, não. Porque o crime de racismo, em grande massa, é mascarado, escondido e potencializa pra que isso aconteça. No meu imaginário, como brasileiro afrodescendente, todos ali dentro do estádio têm o desejo de extravasar algum tipo de preconceito e o racismo também, através de manifestações e até em atitudes violentas também. Então, é um espaço que, se não tiver um comprometimento da CBF com os clubes e as federações, não vai modificar absolutamente nada.

CONTINENTE Você pode falar sobre sua polêmica saída da RBS (afiliada da TV Globo no Rio Grande do Sul), onde você passou seis anos? O que foi que aconteceu para você sair de lá?
MÁRCIO CHAGAS Bom, eu tive muitos problemas desde a minha ida para a televisão e, principalmente, quando eu ia fazer as transmissões no interior do estado, na Serra Gaúcha. Na minha primeira transmissão, em 2015, em Caxias do Sul, dois torcedores tentaram invadir a cabine pra bater em mim, no intervalo do jogo. Me chamaram de tudo, “negro”, “macaco”, “morte de fome”, “favelado”, “volta pra África”, “volta pra selva”, “mentiroso”, “só está aí porque inventou a história das bananas”. Como eu estava chegando, eu fiquei na minha, não fiz uma exposição muito do ocorrido, não tive respaldo do meu ex-chefe também e fiquei com aquilo ali meio que engasgado.

No outro ano, em 2016, a RBS faz um acordo com o Juventude, que, nas transmissões, logo abaixo da cabine de transmissão ficassem os familiares dos jogadores para não acontecer a possibilidade de torcedores tentarem invadir a cabine novamente. Deu certo. Só que, em 2019, houve um jogo conturbado no mesmo local, com o Juventude lá, no estádio Alfredo Jaconi, xingamento, tentativa de invasão da cabine. Esse meu chefe me dizia no ponto pra eu não revidar. E aí, quando ele chegou e disse pra mim assim: “Se tu quiser sair da transmissão, eu te apoio”, eu disse: “Não, eu não vou sair da transmissão. Eu vou ficar aqui até o final. Se tu quiseres me apoiar de verdade, tu me dá as imagens ou divulga pra todo o estado o que está acontecendo aqui”. – “Ah! Não posso porque tem os patrocinadores” – “Então tu não está sendo parceiro”. Quando eu vejo que ele não é parceiro e no final da transmissão, na hora de ir embora no ônibus, ele me pergunta assim: "Ah, mas isso aí te afeta de alguma forma?". Eu disse pra ele: "Cara, isso não só me afeta, como deveria te afetar também. Porque se tu é o meu chefe e tu está observando tudo que está acontecendo aqui, tu deveria te abalar também e tentar propor alternativas de modificação no comportamento desses torcedores. Mas está tudo tranquilo. Eu já sei o que eu vou fazer".

Bom, eu já tinha feito a ocorrência no Ministério Público. Quando eu fiz a ocorrência e publiquei, o UOL viu, entrou em contato comigo e quis fazer uma matéria sobre o que vinha acontecendo. Bom, foram três semanas. Eles encaminharam alguns jornalistas, fotógrafos. Fizemos a matéria. Não só comigo, mas colheram informações de Bento Gonçalves, da Federação Gaúcha e de Caxias do Sul e tudo bateu. No dia 30 de abril de 2019, essa matéria veio a público com o título que era um dos que eu recebia frequentemente: "Matar negro não é crime, é adubar a terra". Que era o que eles diziam frequentemente. Foi topic trends naquele dia e ali eu sabia que eu estava demitido. Só que eles não iam me demitir naquele momento, porque tinha tido uma repercussão muito grande, tanto que, duas semanas depois, eu participei do Papo de Segunda com o Porchat, o Emicida, o Chico Bosco e tal, deu uma amenizada, mas eu fui, ao longo do resto desse ano, cada vez mais perdendo espaço. Então, eu já não participava mais tanto da programação. Não era mais convidado pra absolutamente nada. Já não era antes, mas fiquei menos convidado ainda.

E aí chegou o mês de novembro, no mês da Consciência Negra, depois de um programa com o Marcelo Barreto com redação SporTV, o meu ex-chefe me chamou pra uma reunião e me falou: "Oh, estou pensando em te desligar depois do Campeonato Gaúcho de 2020". Então, a gente já estava em novembro de 2019. Era uma questão de cinco, seis meses. "Eu tô pensando em te desligar, mas eu não quero que tu pense que seja porque tu é preto." Daí eu disse assim: “Por que que tu tá entrando nessa seara? Tu já está justificando". – "Não, não é isso". – "Beleza”. Saí de férias, voltei, trabalhei no mês de janeiro, trabalhei no mês de fevereiro e, repentinamente, no último dia de fevereiro, 28, que era uma sexta-feira, ele me ligou e me falou: "Na segunda-feira, tu tá de férias". Eu disse: “Não, mas eu já saí de férias”. – "Mas o RH tá me cobrando porque eu não encaminhei as tuas férias". Daí eu pensei: "Ele está me dando férias porque, quando eu voltar, ele vai me demitir para não pagar as férias na hora da rescisão e foi justamente o que aconteceu. Eu saí de férias. Só que deu 10 dias ou 15 e, logo em seguida, teve a pandemia de 2020, parou tudo e aí, quando eu voltei das férias no início de de abril, eu trabalhei mais alguns dias de forma remota e aí, na sexta-feira, 24 de abril de 2020, ele me ligou. Eram umas 7h30 da manhã pedindo pra eu ir até a RBS, que ele queria conversar comigo. Aí eu disse: "Cara, eu não posso sair de casa. Eu estou com meus dois filhos em casa, uma criança de seis, o Miguel, a Joana, com dois anos". Aline, minha falecida esposa, estava, então, fazendo tratamento de quimioterapia, tratando um câncer de mama. "Eu não tenho como sair de casa. Eu posso ir à tarde." – "Não, à tarde, eu não posso. Tem que ser agora." Eu disse: "Agora eu não vou. Não vou deixar meus dois filhos sozinhos em casa." – "Ah, mas tem que ser agora". Eu disse: "Cara, eu não vou sair de casa agora". Desligou o telefone. Aí me deu um estalo: "Que urgência é essa pra esse cara estar me ligando agora? Deve ser alguma reunião, alguma coisa do grupo e tal". Quando entrei no e-mail corporativo, já estava bloqueado. Aí pensei: "Estou demitido". Daí, a cinco minutos, ele me liga e diz: "Oh, estou te desligando, mas eu queria ter conversado contigo pessoalmente”. Eu disse: “Não, está tudo certo”. E assim foi a minha demissão: por telefone, com a minha mulher na época doente e eu com meus filhos em casa. Simplesmente aconteceu dessa maneira aí, covarde, porque, como eu vinha cada vez mais denunciando os casos de racismo, aquilo começou a dar um choque da empresa com os patrocinadores, que não queriam mais que esses fatos viessem à tona. E a única maneira de não vir à tona era tirar quem estava denunciando. Não é à toa que continua sendo o campeonato estadual e o estado com o maior número de denúncias de racismo desde 2014. Quando o Observatório da Discriminação Racial, do Marcelo Carvalho, foi lançado, o Rio Grande do Sul tinha mais de 80% dos casos de denúncia no país.

CONTINENTE Quais são suas atividades hoje e quais são os seus planos?MÁRCIO CHAGAS Em 2020, assim saíram comigo da RBS, eu fui convidado pela deputada federal Fernanda Belchior pra me filiar ao PSOL, me filiei e concorri a vice-prefeito de Porto Alegre. E comecei a trabalhar como assessor parlamentar dela desde 2020. Nessa última eleição, concorri aqui a deputado federal, mas não fui eleito. Agora, eu volto a trabalhar com ela de novo e já começo a me preparar para a campanha de 2024, para entrar como vereador em Porto Alegre. Então, eu tenho trabalhado a questão política, tenho dado palestras também sobre a questão racial em escolas, em empresas. Ano passado, cheguei a trabalhar no canal TNT Esportes, no Campeonato Brasileiro, de junho até dezembro, e a minha ideia é continuar lutando e colocar alguns projetos de leis fortes com relação a esse combate antirracista, pra que a gente tenha uma sociedade, daqui pra frente, ou que os meus filhos, mais adiante, quando forem adultos, tenham um cenário bem diferente do que se apresentou pra mim, e muito melhor do que se apresentou para os meus pais, muito melhor do que se apresentou pros meus avós. Essa é uma luta que já vem dos ancestrais, de séculos atrás e ela não pode te parar. E somente através desses espaços políticos é que há possibilidade de modificar alguma coisa, que são os espaços de decisão e de poder, porque, se não tiver uma representatividade ali de quem tem a pauta, não vai mudar absolutamente nada.

DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente e colunista da Continente Online.

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