Portfólio

Kika Carvalho

O azul ancestral

TEXTO CHRISTIANE GOMES

01 de Agosto de 2023

Sem título, acrílica s/ tela, 200 x 150 cm, 2021

Sem título, acrílica s/ tela, 200 x 150 cm, 2021

Imagem FLÁVIO FREIRE/CORTESIA DA GALERIA NARA ROESLER

[conteúdo na íntegra | ed. 272 | agosto de 2023]

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Quem caminha
com pressa pelas agitadas ruas do bairro de Pinheiros, na cidade de São Paulo, não consegue passar incólume por um grande mural que habita a parede de um de seus prédios. Ali, se vê uma figura feminina altiva, que nos encara de forma contemplativa. É uma mulher negra, mas que tem a pele toda pintada de azul. Como eu sei que é uma mulher negra? Eu simplesmente sei. Ela poderia ser uma amiga, uma irmã, quem sabe até minha mãe mais jovem. O fato é que esse mural desperta um afeto, uma proximidade, daquelas que somente a arte, esteja onde ela estiver, é capaz de provocar.

O retrato mural é da artista visual e educadora social nascida em Vitória, no Espírito Santo (e radicada no Rio de Janeiro) Kika Carvalho, e foi produzido no contexto do NaLata (Festival Internacional de Arte Urbana) da edição de 2021. Este painel demonstra o estilo peculiar e sofisticado de seu trabalho que tem na cor azul um fundamental traço de identidade. O uso das cores, inclusive, foi algo que não animava muito a jovem Kika em suas primeiras linhas desenhadas nas ruas da capital capixaba, onde tudo começou.


Efeito dominó, instalação e performance. 60 peças de cerâmica em terracota, dimensões variadas, 2018. Foto: Luara Monteiro/Divulgação

A criança tímida, que vivia na periferia de Vitória, tinha no desenho sua principal forma de manifestação e, apesar das limitações econômicas, contava com o incentivo constante de sua mãe. Apoio este que encontrou canal também na escola, onde sua habilidade se destacava nas mostras culturais. Foi até o estado de Sergipe para receber o primeiro prêmio de uma promissora carreira que viria mais tarde. Quando entrou no ensino médio, as dificuldades financeiras exigiram que fosse morar com seu pai no bairro da Ilha de Santa Maria, foi lá que teve contato com o que seria a base de seu trabalho artístico: o grafite. Ao se aproximar do movimento hip hop, escolheu o desenho como sua manifestação e começou a pintar e fazer tags nos muros da cidade. O que não agradou muito sua família por conta do caráter transgressor e ilegal que esta manifestação tinha até então. Mas Kika abriu muitas portas e se tornou referência feminina na arte urbana no Espírito Santo.

Essa origem permanece no traço de suas obras até hoje, que vai neste caminho da representação humana. Mas voltamos aqui ao incômodo que sentia no começo de sua carreira: o uso das cores. Achava que quando as inseria em seus desenhos, estragava tudo. O que se mostrava ser um problema. Afinal, no grafite as cores desempenham papel fundamental, pois são elas que chamam a atenção, que destacam o desenho, que fornecem visibilidade frente ao caos urbano, território primal desta manifestação artística. Mas, tinha um tom em especial que a atraia imensamente: o azul, que se tornaria uma marca registrada em suas pinturas. O pigmento nos transporta para outro espaço, algo onírico, sublime. Nas ruas de Vitória, Kika começou a usar a cor, que já se fazia presente em seu cotidiano, no mar que cerca a cidade. Ele era inserido então nos cabelos e nas roupas dos personagens que ganhavam os muros da capital capixaba.


Yeda, da série Encontro, acrílica sobre tela, 200 x 150 cm, 2020. Imagem: Kika Carvalho/Divulgação

O estudo das cores ganhou profundidade quando Kika ingressou no curso de licenciatura em artes visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Em uma específica disciplina chamada técnicas e materiais teve a oportunidade de procurar saber a história do azul. De onde ele teria vindo? Como era feito? Na época renascentista, período onde a representação de Maria, mãe de Jesus, era muito explorada, o pigmento azul usado para pintar seu manto era algo tão caro quanto o ouro. Como as grades curriculares das universidades de arte são totalmente eurocêntricas, essa descoberta a deixou reflexiva.

Como os dados eram superficiais, buscou mais informações “na unha”, escavando e correndo atrás de referências, o que era difícil naquele momento, pois só as encontravam em livros em inglês e francês, idiomas que não dominava. Mas, obstinada, descobriu que o alto valor, concreto e simbólico, se explicava porque ele não era produzido na Europa. O Lapislazuni ultramar, como era conhecido, vinha da África, especificamente do norte do continente. O primeiro azul produzido na história da humanidade foi no Egito.

A descoberta foi como um elo perdido para Kika e banhou de sentido ancestral o que era uma escolha particular. E provocou uma inquietação. No Brasil, o racismo criou campo para um comentário jocoso e pejorativo que diz que pessoas pretas de pele escura são tão retintas que chegam a serem azuis. Como que uma cor que tem sua origem histórica em um lugar de tanta valorização, que representava na Europa a cor do manto de Maria, pode ser usado de forma pejorativa para falar de pessoas negras? O azul, que até então era usado apenas nas roupas e cabelos de seus personagens, ganhou agora a pele. Uma pele negra azul. “Isso fez-me entender como sujeito e encarar a negritude de outro prisma. Me reconectei a minha ancestralidade”, conta Kika.


Retrato mural produzido pela artista para o NaLata (Festival Internacional de Arte Urbana), 2021. Imagem: Bernardo Bastos / Divulgação

Este sentido político do uso da cor salta aos olhos quando admiramos as telas da artista. As figuras retratadas em suas obras trazem uma intensidade carregada de ancestralidade nos retratos, individuais ou coletivos, e nos momentos do cotidiano destas pessoas retratadas em seu trabalho. Um dia a dia de luz, alegria, elegância e altivez que se contrapõe a narrativas de dor ou sofrimento que, muitas vezes, permeiam trabalhos que retratam pessoas negras.

Sobre esta quebra de narrativa, Kika explica que foi uma “virada de chave” importante e fundante do amadurecimento de sua jornada artística que chegou em virtude da sua atuação como educadora social, caminho que ela decidiu seguir diante o conselho de sua tia, também artista, que a instruiu a buscar possibilidades de trabalho outras, visto que apenas a arte poderia não ser suficiente para manter sua sobrevivência. Daí a opção em cursar licenciatura em artes visuais e ter a educação como garantia de renda.

E esta atuação como educadora social com viés da arte lhe forneceu um suporte importante para sua produção artística e vice-versa. “O conselho da minha tia que parecia um banho de água-fria, foi para mim, o que melhor poderia ter me acontecido. Na educação eu descobri um amor que eu não fazia ideia que existia. Uma crença para além da arte.” E esse amor, seguindo o que nos ensina bell hooks, virou ação registrada em suas telas. “Não quero ser uma pessoa que quer produzir mais imagens de dor. Isso a gente vê todos os dias na TV e no jornal. Essa vivência como educadora fez mudar meu trabalho. Me emociona e me dá esperança.”


Doze Novembros #2, óleo e acrílica sobre tela, 200 x 150 cm, 2022. Imagem: Pedro Victor Brandão/Cortesia Portas Vilaseca Galeria

A esperança não está sozinha na obra de Kika, a beleza a acompanha e está presente na obra Ilha dos boys onde sentimos o frescor da representação do menino na praia ou a altivez de Yeda (que representa a grande referência das artes Yedamaria). Mas a jornada é árdua para quem não está no mainstream. “Arte não é só sobre talento e dedicação, porque muita gente as têm mas não é vista. Comigo também estava sendo assim até o momento da pandemia.”

Apesar de tudo o que os duros anos da pandemia da Covid-19 significaram para o mundo e para o Brasil, seguindo os paradoxos da vida, o momento trouxe também uma projeção inesperada para o trabalho de Kika. Recém-saída de seu emprego regular para se dedicar exclusivamente ao labor artístico, armou uma permuta com um espaço para servir de ateliê e produzir suas telas. Foi quando o isolamento chegou. Mas com ele também uma profunda inspiração e a divulgação de suas obras nas redes sociais. O que chamou a atenção de muita gente. Os convites começaram a chegar aos montes e ao participar de uma residência no Goethe-Institut, em Salvador, Bahia, impressionou os curadores e já saiu de lá com propostas de galerias, o que lhe abriu inesperadas portas para uma artista independente. Hoje seu trabalho está no acervo da Pinacoteca de São Paulo e está presente em galerias do Brasil, Portugal, Estados Unidos e Itália, além da indicação em 2021 e 2023 ao Prêmio Pipa.


Ilha dos boys, acrílica sobre tela, 100 x 80 cm, 2021. Imagem: Kika Carvalho/Divulgação

Mas a narrativa azulada e sofisticada de Kika está presente para além das paredes das galerias e museus do Brasil e exterior. Seu objetivo é conseguir alcançar um público amplo e, de certa maneira, hackear o elitizado acesso à arte visual contemporânea. Neste caminho, seu estilo pode ser visto em ruas, muros de prédios, ilustrações de livro e capas de disco, representando uma diversidade importante que garante o acesso à arte. “É claro que o dinheiro é fundamental e que estar nas galerias me possibilita ter uma condição de vida tranquila fruto do meu trabalho, mas a possibilidade dele circular para além das pessoas que têm condição de comprá-lo é incrível, mesmo porque são pessoas negras que eu represento nas minhas telas.” Sua tela Lover é capa do álbum SAL da cantora e compositora Anelis Assumpção e seus personagens azuis negros ilustram a nova edição do clássico livro O cortiço, de Aluísio Azevedo.

Ainda que o uso do azul em suas telas seja sua marca registrada e peculiar, a artista possui outros trabalhos, como Efeito dominó, performance feita na abertura da exposição coletiva Malunga, de 2018, fruto de uma residência realizada com a artista visual Rosana Paulino, importante referência na cena contemporânea nacional e internacional que foi uma espécie de madrinha e incentivadora do seu trabalho. Nesta obra, a proposta era uma pesquisa com os saberes capixabas, onde Kika trouxe, além da performance, uma tela com inspiração nas paneleiras de barro, relacionando esse saber tradicional do Espírito Santo com os índices de feminicídio do estado. Este trabalho foi fundamental para que Kika pudesse ser vista como uma artista contemporânea para além da cena do grafite.

  
Brasão nº 5, Brasão nº 9, Brasão nº 4, acrílica sobre tela, 2020. Imagens: Kika Carvalho/Divulgação

A menina tímida, que se dedicava aos seus desenhos, hoje tem seu lugar firmado no cenário da produção artística de vanguarda feita por pessoas negras. Se posiciona como uma mulher negra, periférica, bissexual, mas permanece atenta às ciladas que o próprio racismo e misoginia podem preparar para este posicionamento. “É como se toda a minha potência artística estivesse em um segundo plano diante a minha subjetividade. O que eu acho bem frustrante, porque parece que estamos sendo inseridas, mas é ilusão. Porque projetos destas linhas identitárias, normalmente são projetos de menor orçamento e estrutura. Por isso eu tenho evitado me colocar em caixas, quero transcender. Por isso, estou sempre atenta.”

Uma ferramenta usada por Kika para driblar essas armadilhas é trabalhar com sutilezas, mensagens subliminares, como na série Brazões. Nele, a artista se utiliza de símbolos muito usados pela branquitude para reconhecer famílias tradicionais e abastadas, para falar de orixás, mas cria um interessante código, onde apenas quem detém uma visão do candomblé vai compreender a verdadeira mensagem ali colocada.

Esta tecnologia estratégica de sobrevivência e de permanência, alinhada com sua escolha de criar narrativas solares e azulares da representação da negritude e da ancestralidade se insere na revolução que significa pessoas negras felizes, com outras histórias, outros olhares e que encontra no trabalho de Kika Carvalho um fundamental cenário para sua existência.

CHRISTIANE GOMES, jornalista e dançarina. Atua como coordenadora de projetos da Fundação Rosa Luxemburgo e do grupo afrofeminino Ilú Obá de Min.

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