Ana Teixeira
Um interesse pelo que acontece com o outro
TEXTO Gianni Gianni
03 de Julho de 2023
Nós em mim, intervenção, boias infláveis, tinta acrílica e marcador permanente sobre parede, SESC São Carlos (SP), 2012
Imagem arquivo da artista
[conteúdo na íntegra | ed. 271 | julho de 2023]
Boias com advérbios bem visíveis grafados em sua estrutura flutuam em uma piscina. Estão disponíveis para os usuários do Sesc São Carlos, que, para manuseá-las, precisam se articular em duplas, trios, coletivamente. As boias estão atadas por um mosquetão, criando frases diversas. Nós em mim, de 2012, inclui ainda um conjunto de desenhos nas paredes daquela instituição, no qual os corpos de pessoas também aparecem conectados. Nos anos seguintes, esse trabalho se desdobra. Seus materiais ganham novos contornos e agregam outras questões na realização de Em contato (2014-2019). As boias e seus advérbios estão lá.
Embora não sejam dos trabalhos mais divulgados de Ana Teixeira, Nós em mim e Em contato ilustram bem alguns dos pilares da obra da artista paulista. Nessa ação, está equacionada a investigação das palavras, o incentivo ao contato, a técnica do desenho e o hábito da continuidade. E esses quatro – tópicos? temas? características? – atravessam os projetos realizados por ela nos últimos 25 anos.
Mais conhecida pelas intervenções Troco sonhos (1998–2007) e Escuto histórias de amor (2005–2013), ambas representantes do seu entusiasmo pela arte que emerge do encontro com o outro, o trabalho de Ana foi muitas vezes aproximado da noção de performance, algo que a artista retifica: “Eu não faço performances, o meu trabalho é de ações no espaço público. A performance tem uma previsibilidade que não tem no meu trabalho. Um programa performático, em geral, como realizei com o De corpo presente (2021 – 2022), é ensaiado – eu sabia o que queria, o que as pessoas tinham que fazer com o corpo. Agora, nas minhas ações, eu não sei o que vai acontecer”.
Nesse caso, Ana faz um contraponto entre suas intervenções mais conhecidas e um de seus trabalhos mais recentes, no qual pessoas vestem camisas com letras que, juntas, formam um texto – trata-se da frase É tarde mas ainda temos tempo. Essas pessoas se deslocam pelo espaço sempre retomando uma posição que faz o conteúdo das camisas juntas ser legível. Curiosamente, enquanto escrevo, percebo que assim como em Nós em mim, temos também indivíduos que se articulam para estruturar uma obra, de certo modo, verbal. Percebo, ainda, que saltei ao fim da história; por isso, recomeço, agora do início.
Cala a boca já morreu!, ação urbana e instalação, Centro Unversitário Maria Antonia, São Paulo, 2019. Imagem: arquivo pessoal da artista.
TORNAR-SE ARTISTA
Como se sabe, o começo é sempre antes. No caso de Ana, a formação artística, no sentido acadêmico e profissional, é precedida por uma infância no interior de São Paulo, na cidade de Pindamonhangaba, em uma casa onde todos desenhavam ou tocavam algum instrumento, além de existir forte estímulo à leitura. Seus avós, seus pais, seus irmãos: todos ajudavam a compor esse ninho criativo. No entanto, a relação que estes tinham com as artes visuais – como acontece com boa parte das famílias de classe média – era mínima. “A gente nunca ia ao museu; nossas idas a São Paulo eram basicamente para ir ao médico”, relembra. Ainda assim, na adolescência, começou a pintar telas com tinta a óleo sem uma orientação específica. Chegou a pensar em trabalhar com moda, numa época em que desenhava croquis para a mãe costurar.
Desde muito cedo, a artista demonstrou habilidade não só para copiar imagens ou desenhar figuras humanas, mas para uma série de atividades manuais que foram úteis quando decidiu morar em Uberlândia, aos 25 anos, com seu então companheiro. Nessa época, desistiu do curso de Serviço Social, teve dois filhos e trabalhou com atividades artesanais. “Eu pintava camisetas, desenhava retratos, fazia pizzas e panetones para vender, organizava um bazar de fim de ano. Paguei aluguel com escultura, troquei roupas por pinturas. Mas ainda não fazia arte, da maneira como entendo a arte hoje”, observa.
Nós, os vivos, série de 15 desenhos, aquarela sobre papel, dimensões variadas, 2010. Imagem: arquivo pessoal da artista
A virada na trajetória de Ana Teixeira teve como ponto de partida um ateliê de cerâmica em Uberlândia chamado Casa de Ideias, existente ainda hoje. A prática regular com esculturas a levou a se inscrever em um curso de extensão da Universidade Federal de Uberlândia ministrado por artistas como Carlos Fajardo, Ana Maria Tavares e Iran do Espírito Santo. Naquele momento, esses eram nomes desconhecidos para Ana, mas a oportunidade gratuita pareceu calhar. “Eu tinha 36 para 37 anos, e foi como abrir minha cabeça, abrir meus olhos. Eu nunca tinha frequentado uma faculdade de artes, aqueles ateliês, todo mundo desenhando...”, recorda.
A partir daí, os eventos começaram a mover sua vida para o campo das artes com certa agilidade. Foi em novo encontro com Ana Maria Tavares, no curso Escultura como consciência do corpo, que a veterana começou a sugerir – e insistir – que a xará deveria fazer faculdade de Artes Visuais. Mas Ana Teixeira ainda custava a levar essa opção a sério em 1994. No ano seguinte, porém, acatou o conselho da professora e entrou para a Universidade Federal de Uberlândia, seguindo para a Universidade de São Paulo no 5º período. “A faculdade foi um sopro de vida, sabe? Como diz uma exposição da qual participei, Um sopro de fúria e esperança. Caminhos foram se abrindo e eu fui nadando de braçada nesse mar. Na USP, eu fui ter aula com as pessoas que eram as minhas referências bibliográficas, como Julio Plaza e Tadeu Chiarelli.”
Da graduação seguiu direto para o mestrado, e nessa transição iniciou as ações que costuma chamar de “acontecimentos”. “As minhas ações de rua nasceram ali, numa aula de multimídia na qual o professor pediu que realizássemos um curta-metragem, e eu decidi fazer algo documental. Fiz o Troco sonhos pela primeira vez em 1998. Fui para a rua com uma bandeja de bolinhos, uma mesa com uma placa, dizendo às pessoas que eu trocava sonhos por sonhos. Levei um técnico da USP para filmar e apresentei esse filme como trabalho de conclusão da disciplina. Gostei muito daquela experiência. Creio que ali entendi que me interessavam a convivência, a reflexão e o encontro.” Apesar de reconhecer as fragilidades do currículo universitário, Ana se diz defensora da graduação para artistas, sobretudo pelo privilégio que é ter interlocutores dispostos a ouvir e discutir suas ideias.
De corpo presente, performance colaborativa em parceria com Claudia Vásquez Gómez (Chile), MuBE – Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia, São Paulo, 2021. Foto: Léo Faria/Divulgação
IRRUPÇÕES COTIDIANAS
Antes do aprofundamento técnico, Ana já notava sua intimidade com materiais expressivos diversos; apesar disso, são suas intervenções cotidianas – nas quais o seu corpo e sua presença são os principais materiais – que estruturam seu projeto artístico. Sim, é verdade que o desenho é uma grande paixão da artista, mas eles, muitas vezes, se agregam aos acontecimentos, como no citado Nós em mim. No processo formativo, Ana experimentou todas as linguagens que pôde – teve um laboratório fotográfico em casa, participou de ateliês de gravuras –, mas se encontrou em provocações criativas que não visam produtos artísticos. Em Troco sonhos, tentava pensar o dispositivo da troca, das mercadorias. Na base de sua proposição, aparentemente tão simples, estavam as leituras sobre o capital e sobre os ambulantes de rua, na tentativa de pensar uma oferta que não “deveria estar” no espaço urbano. Trocar sonhos por sonhos, por exemplo.
A experiência caiu nas graças do Sesc e Ana rodou por várias cidades com essa ação, que também integrou uma exposição do Museu da Arte Moderna (MAM – SP) curada por Ricardo Rezende. Foram mais de 6.500 sonhos coletados, resultando em 27 horas de gravação. O projeto também foi uma escola para ela entender as negociações da arte na rua – com os camelôs, com os seguranças privados, com a polícia.
Cala a boca já morreu!, intervenção sonora e visual, Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo, 2021. Foto: Arquivo da artista
Uma decisão que surgiu nesse momento foi a de não se apresentar às pessoas como artista em suas ações urbanas: “Eu sempre respondo a quem me pergunta o que é aquilo, dizendo apenas o que estou fazendo naquele momento. ‘Eu troco sonhos por sonhos’, ‘Eu escuto histórias de amor’, ‘Eu coleto espécimes locais’ ou ‘Eu quero ouvir o que as mulheres têm a dizer sobre isso’, que foi o caso do Cala a boca já morreu!”.
Essa tentativa de diluir a experiência artística na experiência cotidiana, sem anunciar a fronteira entre elas, é o curto-circuito que Ana Teixeira persegue. E ela tem sido feliz em suas iniciativas, contribuindo para pequenas panes no automatismo da metrópole.
Com a ação Outra identidade, a paulista chegou a ser detida em uma delegacia. Estava realizando o trabalho em uma praça do bairro da Bela Vista, em São Paulo, por volta do meio-dia. Na ocasião, uma mulher chamou a polícia dizendo que digitais estavam sendo coletadas para confecção de passaportes falsos. Quando os policiais chegaram, um deles perguntou o que a artista fazia. Ela explicou que oferecia uma outra identidade e perguntou se ele queria uma. Ele disse que não e voltou a questioná-la: “Mas por que você faz isso?”. A resposta foi curta: “Apenas porque tenho vontade”. O policial então disse que ela não podia coletar digitais, e, mais uma vez, sua interlocução foi sucinta: “Poder eu posso, sim, tanto que eu estou fazendo.”
Outra identidade era composta de um carrinho ambulante no qual Ana levava carimbos e identidades esvaziadas dos dados oficiais. A proposta surgiu, inicialmente, para integrar uma exposição na Galeria Vermelho, em 2003, organizada por jovens curadores sob a mentoria de Lisette Lagnado. Estes buscavam apontar artistas que se avizinhavam de Leonilson. Além de mostrar uma série de desenhos, Ana propôs a ação realizada pela primeira vez no Viaduto do Chá.
Outra identidade, ação de rua com carrinho, desde 2003. Foto: arquivo pessoal da artista
O que aconteceu no Bixiga, lá em 2005: “Uma mulher, cujo marido havia feito uma Outra Identidade comigo, chamou a polícia, a polícia não sabia o que fazer comigo e me levou para um posto policial que existe na praça e de lá para uma delegacia onde fiquei por três horas até uma amiga advogada chegar para explicar que se tratava de uma ação artística, o que eu preferi não fazer até então.” Apesar da experiência inusitada, Ana lembra desse episódio com alguma satisfação: “Se a polícia veio é porque a ação realmente provocou um curto-circuito no espaço público. E essa sempre foi a minha ideia, provocar a sensação de ‘isso não deveria estar aqui’. Não pelo estranhamento em si, mas pelo incômodo que esse estranhamento pode causar.”
Escuto histórias de amor, porém, propunha um dispositivo algo diferente. Nesse caso, tratava-se menos de semear um incômodo – era mesmo uma oferta de escuta. A construção de uma redoma invisível em meio às vias de passagem de cidades caóticas: “Eu realmente ouço as histórias, choro e rio com elas, falo pouco, e coisas pontuais. Escuto.” Essa ação percorreu nove países, nos quais Ana também ouviu histórias de amor em outros idiomas, sempre tricotando enquanto oferecia sua escuta. Embora suas proposições pareçam familiares nos dias de hoje, há 15 anos eram bem menos frequentes. Não se trata de um pioneirismo, mas de um cenário realmente distinto do que temos hoje em termos de valoração e recorrência das ações de rua no Brasil.
Escuto histórias de amor, ação urbana, 2005-2013. Foto: Arquivo da artista
Percebe-se na obra de Ana um interessante compromisso ético com o outro. Talvez esse seja o principal elemento que me faz pensar na obra de Eduardo Coutinho quando converso com ela ou escrevo sobre seu trabalho. O interesse pelo que acontece no encontro, o cuidado com aqueles que aderem à sua proposta e à sua disponibilidade, como ela mesma identifica: “Sim, eu tenho uma disponibilidade para o outro, porque o outro me interessa. Eu costumo dizer que o outro sou eu, eu sei de mim por meio do outro.” O projeto Empresto meus olhos aos seus é um bom exemplo dessa sua característica. Nesse trabalho, Ana agregou a uma viagem pessoal a tarefa de buscar paisagens, pessoas ou experiências que amigos brasileiros gostariam de ver ou vivenciar em um percurso para o Uruguai.
“Vinte e seis amigos aceitaram o convite e me pediram coisas das mais diversas, como visitar um sambaqui em Santa Catarina – e eu nem sabia o que era um sambaqui – ou encontrar uma tia que não se via há muito tempo. Registrei tudo em fotos e depois as entreguei a cada um dos participantes junto com uma carta escrita à mão na qual narrava o que havia acontecido durante a realização daquele pedido. A viagem foi toda preenchida pelas encomendas de olhares. Encontrei amigos de amigos, andei por um bairro desconhecido para registrar minha impressão sobre ele, tomei uma bebida específica num lugar específico, olhei distâncias com olhos estrangeiros, inventei histórias para paisagens, busquei animais silvestres, capturei cores de terras e céus, entreguei um presente para um desconhecido. No processo, eu me sentia despindo meus olhos e vestindo os olhos de quem me demandou o pedido. Esse trabalho não tinha sido mostrado até 2019, quando produzi um filme relato dessa experiência que se revelou uma bela tradução desse acontecimento”, situa.
Troco sonhos, ação urbana, 1998-2007, Foto: Iara Freiberg/Divulgação
O PESSOAL É POLÍTICO
Tanto o Escuto histórias de amor quanto o Troco sonhos sempre foram assombrados pela noção de que se tratava de algo “romântico”, “bonito”, “suave”. Para Ana, porém, esses trabalhos não estão tão distantes da sua intervenção mais recente, Cala boca já morreu!, facilmente vista como militante ou feminista. “Sempre foi claro para mim que aquelas ações eram um ato político: oferecer uma escuta no espaço público, provocar o outro a falar do que é privado com uma estranha, suscitando possíveis reflexões sobre essa narrativa, são ações da esfera política.”
Para o projeto Cala a boca já morreu!, a artista colocou um cartaz em frente ao Centro Maria Antonia, da USP, junto a algumas cadeiras e uma mesa. Sua ideia era seguir o modelo de interação que sempre acompanhou suas ações: conversar individualmente com cada participante. Mas não foi o que aconteceu. Dessa vez, as interlocutoras se aproximavam, se acumulavam e interagiam entre si. Pela primeira vez em seu trabalho Ana vivenciou a possibilidade de uma conversa coletiva e de trocas imprevisíveis e inesperadas. “Minha pergunta inicial às mulheres era ‘O que você não quer mais calar?’. Eu tentava condensar a resposta em apenas uma frase, escrevendo-a então em um cartaz. Perguntava, em seguida, ‘Com que corpo você diz essa frase?’ O gesto-resposta era então registrado por mim em uma foto usada posteriormente como base para os desenhos previstos no projeto.”
Nessa etapa, Cala boca já morreu! ganhou materialidade no interior do Centro Maria Antonia, em uma mostra individual da artista, na forma de um grande mural, de 13 por 4 metros, com desenhos de 40 mulheres com as quais a artista conversou nas ruas.
Para Galciani Neves, curadora da exposição, “os procedimentos de Ana costuram e atravessam as ficções e os resíduos poéticos de seus trabalhos: resistir, insistir, traçar encontros. Enfrentando a lógica dos dispositivos de opressão que nos impõem margens de ação cada vez mais encurtadas, Ana age nas brechas do tempo incerto – e apesar das barreiras que já erguemos, como sujeitos, para viver em sociedade – na busca de alguém que não quer ser buscado e/ou não espera ser visto”.
GIANNI GIANNI é escritora, artista-pesquisadora, arteterapeuta e editora assistente da Cepe Editora.