Alex Flemming
Colorismo da vida e da morte
TEXTO Laura Machado
11 de Setembro de 2023
Sem título, Série Sumaré, 1998, fotografia em vidro, 175 x 125 cm, Coleção Metrô de São Paulo
Foto Divulgação
[conteúdo na íntegra | ed. 273 | setembro de 2023]
Entre as diversas estações de metrô que interligam a cidade de São Paulo, uma instalação artística difere a Estação Santuário Nossa Senhora de Fátima–Sumaré, parte da linha verde, das demais. São grandes retratos de homens e mulheres estampados em vidro, letras coloridas em azul, laranja, amarelo marcam todas as imagens, formando frases de poesias históricas que só conseguem ser percebidas com atenção do seu observador. Entre as pessoas apressadas que passam por lá todos os dias desde a inauguração da estação no ano de 1998, às 22 fotografias cada uma com 1,75m x 1,25 m clamam por um olhar atento, capaz de decifrá-las.
Explorando e adorando cada etapa que compõe a ação de decifrar, o pintor, gravurista e fotógrafo paulista Alex Flemming criou sua obra mais celebrada como um convite de pausa. Batizada simplesmente de Estação Sumaré, as fotografias usadas no projeto retratam pessoas comuns, que talvez possam ser encontradas ainda hoje pela cidade de São Paulo, talvez pelo Brasil ou mundo. Em 2009, a Folha de S.Paulo publicou texto de Fernando Masini que se propõe a contar as histórias do que chamam de Anônimos da Sumaré: “Um dos mais entusiasmados com o trabalho é Alex Sandro de Sousa, segurança da galeria Prestes Maia. Quando foi fotografado, aos 22 anos, não tinha a menor ideia do que seria feito com as imagens. Hoje é famoso no bairro. ‘É legal que o tempo vai passando, eu vou ficar velho e a foto continua lá’, alegra-se. Na foto exposta na estação, Alex tem a cara fechada e veste um terno e gravata preta. De família mineira, nasceu em São Paulo e mora com a mãe no Bairro do Butantã. Na época das fotos, era vigia no Masp ao mesmo tempo em que se esforçava para completar o Ensino Médio”. A história de Souza é apenas uma das tantas que se perpetuam em forma de obra de arte pelas mãos – e imaginação – de Flemming.
“Como somos letrados, lemos automaticamente e eu não quero nada automático. Acho importante o deciframento da poesia. Escrevi poesias dos últimos cinco séculos do Brasil, começando com José de Anchieta no século XVI e indo até Haroldo de Campos nó século XX e eu não queria que as pessoas simplesmente lessem, eu queria que elas ficassem intrigadas e decifrassem a poesia que existe dentro do outro”, explicou o artista em entrevista à Continente.
Através de sua arte, Alex transparece a ideia de que cada pessoa é o todo, é um mundo – como afirmava Clarice Lispector. Essa visão é explorada com excelência em 1998, quando o artista fez sua obra mais famosa, Estação Sumaré, mas essa marca já se apresentava em seus trabalhos anteriores e posteriores.
Retrato da arquiteta Margareth Nishiyama, obra de Alex Flemming na estação Sumaré do Metrô de São Paulo (SP). Foto: Maria do Carmo/Folhapress
ARTE OU MORTE
Foi quando Alex Flemming tinha por volta dos cinco ou seis anos que pediu e ganhou dos pais uma publicação em fascículos que se chamava Gênios da pintura, da antiga editora Abril. A partir desse primeiro contato com as imagens pintadas, sabia que a arte estava ligada a si.
“Às vezes as pessoas não acreditam, mas é o que aconteceu comigo. Eu, desde muito cedo, muito muito cedo, tinha certeza de que era artista. Venho de uma família que não tem absolutamente nada a ver com a arte, meu pai era piloto de aviação e minha mãe era aeromoça. Não tínhamos nenhuma arte em casa e meu pai, até por ter uma formação militar, não queria que eu fosse artista mesmo”, conta.
Justamente por esse afastamento da família com o mundo artístico, a entrada de cabeça nesse meio não aconteceu assim tão cedo: Influenciado pelo pai, Alex até fez curso na Fundação Getúlio Vargas para ser fiscal de imposto de renda, informação que ele conta com risos escapando-lhe os lábios, “Meu Deus, não tem nada a ver comigo”. Apesar do certo receio em permitir que o filho se aventurasse pelas incertezas que o campo da arte pode oferecer, o caminho não era uma opção para Alex, era um destino certo. Chegou a cursar cinema, e depois, os cinco primeiros semestres de Arquitetura quando já mergulhava na arte e, impaciente para submergir-se por completo, decidiu largar de vez a faculdade para se dedicar exclusivamente a criar, experimentar, pintar e fotografar. Já sabia que não seria arquiteto. “Quem nasce artista, ou você vai fazer arte ou você morre, não adianta.”
Sem título, 2004, acrílica sobre fotografia sobre PVC, 151 x 200 cm.
Imagem: Divulgação
Sem título, 2005, acrílica sobre fotografia sobre PVC, 130 x 180 cm.
Imagem: Divulgação
Sem ter cursado tradicionais escolas de arte e ainda bastante jovem, Alex agarrou a liberdade que se apresentou como oportunidade. Trabalhou como gravurista nos anos 1970, época que a profissão ainda era bastante valorizada no Brasil, e, logo depois, no ano de 1981, recebeu a bolsa de estudos Fulbright e foi estudar no Pratt Institute, em Nova York.
“A coisa mais difícil para um jovem artista é como ele vai sobreviver e eu me inseri no mundo das artes pelos Salões Nacionais que existiam pelo país inteiro, eu participei de todos e tive a sorte de ganhar muitos prêmios. Com isso, sobrevivi. Uma outra sorte foi que o governo americano me ofereceu a bolsa Fulbright para ir para os Estados Unidos com tudo pago para fazer o que eu quisesse durante dois anos. Eu fui lá fazer o projeto Nudez masculina e feminina de uma maneira foto abstrata, que tem tudo o que eu faço até hoje em dia. É corpo humano, é fotografia e já era pintura sem ser em tela.”
Desde o princípio, o corpo humano se fez um elemento central na obra de Flemming, como no caso da série Natureza-morta, produzida durante a ditadura militar brasileira, na qual ele utiliza seu próprio corpo como ferramenta para representar as torturas feitas pelos militares àqueles contrários ao regime. As fotogravuras em metal são símbolo do desamparo e da dor.
“São nove gravuras em pequeno formato feitas com fotos que eu fiz de mim mesmo como sendo uma pessoa torturada, claramente, já que não dá para chegar aos militares e falar que você quer fotografar a tortura. Eu tenho muito orgulho de ter feito essa série em 1978, ou seja, em plena ditadura militar. É muito fácil fazer algo depois, o negócio é fazer na hora, é ir lá e denunciar, dizer ‘olha, eu não sou a favor disso’. ‘Eu sou contra a tortura!’. Essa foi a primeira série que eu fiz, anteriormente já era a fotografia, mas eram obras esparsas”, destaca o artista.
Alicate, 1978, fotogravura em metal, 19,8 x 12,8 cm, Museu de Arte de São Paulo. Imagem: Divulgação
Com a simulação de tortura denunciando a violência do Estado durante a década de 1970, Alex Flemming já se estabelecia como um artista multiplural, conhecedor de técnicas e adpeto ao experimentalismo, porém mais do que isso, já deixava claro a intriscidade entre a politica e sua produção artistica. Visto vezes de maneira mais abstrata, vezes mais facilmente identificáveis, os corpos fotografados ou pintados pelo artista representam denúncia. Seguindo esse ideal, os corpos mais uma vez são retratados no centro político com a série produzida a partir de 1997, Bodybuilders. Concretizando a imagética iniciada anteriormente, Flemming utiliza imagens de abdomens pertencentes a homens jovens e bonitos com mapas colados sobre suas peles para protestar contra as guerras que assolam os territórios diversos expostos nos homens. “Na guerra, quem vai matar e quem é morto são pessoas muito jovens, lindas. E eu quero que essas pessoas, ao invés de irem matar uns aos outros, vão se foder, foder no bom sentido, de um comer o outro. Eu quero que a juventude tenha sexo, entende? E por isso eu ponho os bodybuilders com uma espécie de tatuagem de conflitos.”
Através dos corpos, Alex Flemming ecoa um grito de revolta à violência com os seus bodybuilders e mostra a potência que a representação corporal ocupa no seu trabalho, verdadeira ferramenta de revolução.
Angriff auf Bagdad, série Bodybuilders, 1997, acrílica sobre
fotografia sobre PVC, 154 x 202 cm. Imagem: Divulgação
VIDA É ARTE
Influenciado pelo seu tempo estudando cinema, Flemming acredita no poder da imagem e utiliza-a ao seu favor na hora de trabalhar. “Eu sempre cito Carlos Drummond de Andrade quando fala ‘Fica um pouco do teu queixo no queixo da tua filha’. É o mesmo queixo, mas já é um outro queixo. isso é a minha obra pictórica e fotográfica, então a maioria das minhas fotografias são o que em alemão chamam-se unikat, ou seja, são únicas à medida que eu pinto em cima delas, dou números, grifo, faço alguma intervenção pictórica. Isso faz com que cada uma das fotos seja única, por mais que eu use a fotografia em cinco ou seis obras, essas obras serão diferentes entre si”, conta.
A partir dessa ideia, séries como Lápides se destacam. Nela, o artista pediu computadores antigos a conhecidos, parentes, amigos e qualquer um que possuísse um notebook sem funcionalidade em casa para pintá-los com cores vibrantes e escrever o nome de seus antigos donos. Como o próprio nome da série já esclarece, a proposta do paulista é simbolizar a morte, mas ao fazer isso, também simboliza a vida.
Para que a morte ocorra, antes é necessário nascer, viver, estar aqui e muitas obras produzidas por Flemming possuem esse pulsante clamor pela vida. Estão na Natureza-morta, nos bodybuilders, nas Lápides, em Roupas – série na qual o pintor colore com fortes tons suas roupas usadas. “Eu pintei as minhas próprias roupas, as roupas que eu suei. Minhas cuecas, minhas calças, minhas camisas, camisetas, paletós.” Com as cores, os números e as palavras, Alex cria uma arte com toques do pop art que vibra diante dos olhos do espectador e aquelas peças de roupa deixam de ser dele para serem também um pouco suas, minhas, nossas.
Lápides, 2011, tinta acrílica sobre computador. Imagem: Divulgação
Em 1990, o artista pintou a tela Retrato de minha mãe aos 62 anos de idade. Parte de sua coleção de retratos, a tela utiliza tons alaranjados e amarelos como fundo para delineados de uma senhora em azul e vinho. Anos depois, ele visitou a mãe já em seu leito de morte e pintou a tela Despedida. Ele confidencia: “É o retrato da morte da minha mãe, vim ao Brasil, eu nunca tinha entrado em uma UTI e é um choque quando você abre a porta e é um bando de aparelhos. Eu fiz uma homenagem bonita, porque minha mãe, até no leito de morte era linda e mandona”. Outra obra do pintor é Retrato do Sr. Comandante, que representa seu pai, fardado, arrumado, com largos ombros e olhar firme. Pessoais, as imagens são poderosas e evidenciam a memória e convidam a sentir.
“Pode parecer um pouco autocentrado, mas artista é autocentrado mesmo. Eu faço (arte) para mim e acho legal que os outros tenham sensações completamente diferentes das minhas. O quadro da morte da minha mãe, para mim é uma homenagem e eu acho um quadro lindo, mas quando eu mostro para outras pessoas elas ficam petrificadas, então cada pessoa tem sua visão. A beleza da arte está exatamente na multiplicidade das leituras.”
Sem ambição de ser um artista tradicional, Alex clama pelo diferente, faz todas as suas obras sem ajuda de assistentes e se orgulha tanto de sua autonomia quanto da liberdade que admira nos admiradores de seu trabalho: “a beleza está, não no que eu acho, mas nas milhões de leituras de cada um que a lê. Isso é a riqueza da arte”.
Retrato do Sr. Comandante, 1989, acrílica sobre tela, 140 x 120 cm.
Imagem: Divulgação
“Tudo é orgulho, tudo é sequência, tudo é consequência. A vida do artista é a sequência do que você fez e eu não acredito em artistas que não sejam caudalosos e que guardem os sonhos na gaveta, nem artista nem qualquer pessoa”. Categórico e firme, Alex Flemming não é uma pessoa que mantém seus sonhos apenas para si. Colore retratos e fotografias, mais recentemente está trabalhando, inclusive, com pinturas em longplays – “que é uma forma de escutar música que já está morta, mas tudo pode ser ressuscitado” –, pinta em vidro e outras superfícies, tudo isso representa seus sonhos, sua ideologia e sua vida.
“Quando eu era jovem e besta, eu destruí muitas obras minhas porque você vai passando de uma série para a outra e pensa ‘Nossa, eu não queria ter feito isso! Que horrível” e foi muito bom porque meu marido começou a esconder as obras já que eu destruía. Hoje em dia eu me arrependo tremendamente das obras que destruí. São representações de diferentes épocas de mim. São partes de mim, porém são parte do todo. Me decidi muito claramente em assinar todas as obras com ‘Alex Flemming’ porque tudo sou eu, não são diferentes eus, tudo é Alex Flemming, que vai se transmutando, não há dúvida. Como todos nós”, afirma.
LAURA MACHADO, estudante de jornalismo e estagiária da revista Continente.