Perfil

A tropicalíssima jornada de Tom Zé

Prestes a completar 85 anos, o cantor e compositor baiano já passou por muitos altos e baixos na carreira. Hoje reverenciado internacionalmente, houve período em que nem no Brasil fazia shows

TEXTO José Teles

22 de Abril de 2021

Tom Zé, o baiano de Irará

Tom Zé, o baiano de Irará

FOTO Daniel Conti/ Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Em 1968, Antonio José de Santana Martins, baiano de Irará, de nome artístico Tom Zé, aparentava estar sacramentado na música popular brasileira. Naquele ano, ele foi um dos integrantes de um movimento que ficou conhecido como Tropicália. A metodologia tropicalista era confusa, a rigor nem se tratava de um movimento no sentido estrito do termo. Aliás, nem nome tinha. O Tropicália surgiu por acaso, numa matéria bem humorada de Nelson Motta, no Jornal do Basil. No 1968, Tom Zé reconfirmou sua ascensão, ao vencer, com São São Paulo, o IV Festival da Música Popular Brasileira, promovido pela TV Record.

O tropicalismo fez história mesmo sem ter sido formalmente assimilado pela indústria mercado musical do país. Banidos do Brasil, Caetano Veloso e Gilberto Gil abrigaram-se em Londres no exílio durante a Diatadura Militar. Na trilha deles seguiram cabeças pensantes que agitavam a vida cultural no Rio e em São Paulo: poetas, artistas plásticos, cineastas, responsáveis por tornar a arte brasileira contemporânea pari passu com que se fazia nos países de primeiro mundo. Tom Zé, no entanto, continuou em São Paulo, não se juntou a Caetano em Londres. O empresário Guilherme Araújo até o convidou a se unir à trupe na Inglaterra: “Mandou me chamar mas eu não fui”, confirma Tom Zé, sem se estender os motivos porque optou permanecer no país, quando a ditadura perdia o pudor de prender, torturar, cercear liberdades como lhe desse na telha, amparada pelo Ato Institucional nº 5, o implacável Ai-5. 

Com carreira gerenciada pelo mesmo empresário, o carioca Guilherme Araújo, Tom Zé e Gal Costa, acompanhados pelos Os Brasões, estrearam em dezembro de 1968 uma temporada de dez dias no Teatro de Arena, em São Paulo, com sucesso de público, dois espetáculos aos domingos. Mas seria a tampa do caixão do tropicalismo. Em 27 de dezembro, uma sexta-feira, Tom e Gal adentraram o palco do teatro abalados pelas prisões de Caetano Veloso e Gilberto Gil, ocorridas naquele dia. Eles se apresentaram depois no Rio, no início de 1969, no Teatro de Bolso no Leblon. O “tijolinho” (como se chamavam os pequenos anúncios de shows) publicado na imprensa carioca, seguia o padrão de deboche dos tropicalistas, formatado como um telegrama, assinado pelo ator Aurimar Rocha, dono do Teatro de Bolso: 

LEBLONS DA VIDA. URGENTE

Teatro Bolso. 2ª feira. Pequeno. Conter fãs. GAL GENIAL COSTA. pt. Tom Mix, digo TOM ZÉ prevenido. pt BRAZÕES mandando senhora brasa. Mocidade brasileira solidária paixão Carlinhos Oliveira. pt. 

“Depois do show do Teatro de bolso fui passar uns dias em Salvador e voltei às vésperas do Festival de 69, quando cantei com os Novos Baianos a canção Jeitinho dela”, completa Tom Zé. Na verdade ele passou quase o ano inteiro na Bahia. O festival aconteceu em dezembro, mas Jeitinho dela não ficaria entre as 12 finalistas do último dos festivais de MPB da TV Record, que seria vencido por Paulinho da Viola com uma composição apropriada para aqueles tempos: Sinal fechado.  Em março de 1969, Gal Costa estrearia seu primeiro show solo, intitulado Gal só. Tom Zé seguiria seu próprio rumo, distanciando-se do grupo baiano, surgido nos idos de 1963 em Salvador.  

tom zé anos 70
Tom Zé nos anos 1970. Imagem: Divulgação

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Curiosamente, no início da carreira em Salvador, Tom Zé participou de um programa de calouros na TV Itapoan, o Escada para o sucesso, apresentado por Nilton Paes. Concorreu com uma música de sua autoria batizada de Rampa para o fracasso, que agradou o público e impulsionou sua carreira na capital baiana. Paradoxalmente, depois de subir a rampa do sucesso em São Paulo, ele retornaria à rampa do fracasso iniciada 50 anos antes. Lançou discos em 1970 em 1972, ambos batizado com seu nome e esnobados pela imprensa: “O ostracismo começou quando o disco Todos os olhos teve a capa feita pelo poeta concreto Décio Pignatari que colocou um ânus feminino na capa. Mas não foi por causa do ânus. Apesar de o disco conter Augusta, Angélica e Consolação, foi considerado muito experimental”, pondera Tom Zé, em entrevista à Continente.

Recém-casado com a jornalista Neusa Martins, Tom Zé retomou um ofício que exerceu em Salvador, o de professor de violão: “A escola de música Sofisti-Balacobaco-Muito Som e Pouco Papo foi instalada numa casa que eu aluguei na Rua Barão de Capanema, perto da Rua Augusta. Eu estava só dando encaminhamento ao fato de eu ter estudado com Koellreutter, Widmer e Smetak na Universidade Federal da Bahia. Gravei músicas com muitos parceiros-alunos. A escola, na verdade, eu vim a fechar em 1972. No tempo de Correio da Estação do Brás eu estava trabalhando na DPZ, fazendo jingles com Duailibi, Petit, Zaragoza e Washington”, conta Tom Zé, que continuou a lançar discos, mais ou menos com frequência, e com público certo e sabido: os universitários paulistas. 

Ao contrário de Caetano Veloso, que enfatizou sua prisão num capítulo de sua autobiografia Verdade tropical (relançada em 2017 e adaptada no documentário Verdade tropical em 2020), Tom Zé, que foi preso duas vezes nos anos 70, mal fala sobre seus dois encarceramentos, ambos flertando com o absurdo. Os militares o prenderam sem motivos, e o soltaram sem explicações. Na primeira foi dirigindo seu próprio carro, acompanhado pelos policiais. Na segunda prisão, depois de alguns dias incomunicável, Tom Zé foi levado para falar com o delegado do DOPS, onde lhe foram feitas duas perguntas televisivas e surrealistas: se ele conhecia Sílvio Santos e o que achava de Hebe Camargo. 

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Depois de Correio da Estação do Brás (1978) Tom Zé só voltaria ao disco oito anos mais tarde, com Nave Maria (1984). Em 1976, gravaria um álbum que daria o que falar, mas que foi mais um passo na descida da rampa do fracasso, Estudando o samba. O LP receberia resenhas elogiosas de alguns dos mais importantes críticos do país. No Jornal do Brasil, Tárik de Souza apontou que o disco “é tanto invenção, como perfeitamente vendável”. Mas só foi comprado pelo público fiel de Tom Zé, uns poucos milhares de admiradores.

Ele voltaria a subir a escada do sucesso por um acaso. Estudando o samba foi descoberto pelo produtor norte-americano (nascido na Escócia) David Byrne mexendo nas gôndolas de uma loja de discos usados no Rio de Janeiro. Foi atraído pela capa, ilustrada por arames farpados, entrelaçados com um cabo de equipamentos de palco (capa de Walmir Teixeira). Byrne só o escutou quando voltou a Nova Iorque. Ficou deslumbrado e intrigado, a história se tornou bem conhecida. Byrne programara-se para vir ao Brasil no final dos anos 90, para fazer um documentário na Bahia e Matinas Suzuki, na época, editor de A Ilustrada, caderno de cultura da Folha de São Paulo, o entrevistou em seu escritório nova-iorquino.

Pela sala espalhavam-se livros, revistas, jornais sobre o Brasil e vários lembretes estavam colados na mesa de trabalhos. Entre eles, Matinas vislumbrou um bilhete que dizia assim: “Procurar Tom Zé em São Paulo”. Neusa Martins leu a matéria na Folha em que era citado este enigmático lembrete e pediu a Matinas Suzuki para que ele a pusessem contato com David Byrne, que estava em São Paulo. A rampa do fracasso começaria a se metamorfosear em escada para o sucesso.

David Byrne finalmente conheceu Tom Zé e fez com que o mundo o conhecesse. Primeiro lançou, em 1990, a coletânea Massives hits – The best of Tom Zé Brazil Classics 4 – Compiled by David Byrne. Em seguida veio The hip of traditions, que levaria Tom Zé e sua bandas a mares nunca dantes navegados. “A crítica de Nova Iorque me recebeu extremamente bem. E logo a seguir a da Europa. Mas não foi como um artista exótico. Ao contrário. Me comparavam aos mais destacados experimentalistas desses continentes. E até com roqueiros importantes”, enfatiza Tom Zé. 

***

Tom Zé tem uma ligação com o Recife que remonta ao famigerado ano de 1968, quando estreou em LP pela pernambucana Rozenblit e que também fez parte da sua trajetória inversa do fracasso para o sucesso. Pelo selo AU/Rozenblit foi lançado seu álbum de estreia, que tem seu nome por título, mas que é conhecido como Grande liquidação, um das placas em néon que ilustram a capa. Quando fazia a trajetória de retorno aos palcos, ele apresentou dois shows apoteóticos no festival Abril pro Rock (em 1999 e 2002), que finalizaram seu processo de ressurreição. No primeiro ele realizou o show mais apoteótico da história do festival, com uma plateia que mal o conhecia. No segundo, repetiu a eufóricas reação da plateia, que abalou o coração de Tom Zé. “Mas realmente o show no Abril Pro Rock foi excepcionalmente bem-sucedido, inacreditavelmente aplaudido, e o fato de estar presente a imprensa internacional, além da brasileira e pernambucana, foi muito bom”, concorda o músico.


Capa do disco Grande liquidação. Imagem: Divulgação

Depois do show, no camarim, ele estava muito pálido, queixava-se de dor de cabeça. “Por causa da dor de cabeça, me desculpei  de dar uma entrevista para a Globo. O produtor do festival comentou comigo: 'Tom Zé, olha, o Hospital do Coração é aqui vizinho. Você vai lá só pra ver o que foi essa dor de cabeça'. Fui atendida pela médica Diana, que botou a mão no meu peito e disse: 'Entre aí que você vai ser operado'. E chamou o doutor Homem de Melo”. Ele estava tendo um infarto. 

A trajetória de Tom Zé é a do patinho feio da Tropicália que se tornou um requisitado cisne. A caminho de completar 85 anos, ele deixou de realizar duas dezenas de apresentações no verão europeu de 2020. Mas ainda assim não parou de produzir enquanto se preserva no isolamento social. “Pouco antes da pandemia eu estava compondo para Felipe Hirsch as peças de um musical inspirado em Língua brasileira (que acabou dando nome à peça) e está gravada no disco Imprensa cantada. Como o vírus atrasou tudo, Hirsch me propôs compor mais músicas que têm me dado um trabalho intenso, mas prazeroso. É a atividade principal que estou fazendo. Além de ter a máxima preocupação, o máximo cuidado de não fazer propaganda de governo falando mal dele”, conta Tom Zé, que já sofreu pesados ataques de haters por críticas governo Bolsonaro.

Além disso, ele dá os tratos finais no primeiro disco que lançará desde a pandemia. Pedimos que adiante alguma coisa do projeto: “Sobre disco novo? na Bahia há um provérbio que diz: mulher que fala muito perde logo seu amor. Se eu falo no que estou trabalhando diminui um pouco o élan, e eu acabo às vezes até desistindo. E muitas vezes mudo a ideia, até sem ninguém falar nada. Portanto, só posso ficar mudo, desculpe”, tergiversa Tom Zé do alto da Escada do sucesso, no seu apartamento em Perdizes. Parafraseando Drummond: quando Antonio José Santana Martins nasceu na pequena Irará, sertão da Bahia, um anjo torto desses que vivem nas sombras lhe disse: “Vai Antonio José, vai ser gauche na vida”.

JOSÉ TELES é escritor e jornalista especializado em música. Foi crítico de música do Jornal do Commercio de 1987 a 2020 e já escreveu sobre o assunto em diversas publicações do país.


EXTRA: Leia resenha da primeira biografia de Tom Zé.


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