Retrato em alta definição do homem que canta “eu tô te explicando pra te confundir/eu tô te confundindo pra te esclarecer”, a biografia oferece diversas peças para montar o quebra-cabeça da vida de Tom Zé. Dá pistas de influências, como o sambista Adoniran Barbosa (1910-1982) e o livro Os sertões, de Euclides da Cunha (1866-1909), e desvenda bastidores de episódios importantes, entre os quais, de que forma se deu sua contratação pela gravadora pernambucana Rozenblit para gravar o primeiro disco, de 1968, e o dia no qual conheceu Neusa, com quem é casado desde 1970. Sem deixar de explicar o momento de ebulição cultural que vivia a Salvador do fim dos anos 1950 e início dos 1960, o berço do que seria o Tropicalismo.
Para a tarefa de reconstruir a história, Scaramuzzo se comunicava com o artista por e-mail e também utilizava o WhatsApp. Como morava em Lisboa à época, e com o aprofundamento da pesquisa e dos assuntos, o telefone logo se tornou um instrumento vital. “Quem administrava era a Neusa: passava a ela os temas que queria abordar, e o Tom Zé ficava se preparando. Ele estudava mesmo!”, relembra. Aí virou rotina, com dois ou três telefonemas por semana. “A gente tinha horário marcado, data marcada e conversava de forma livre.” Ele entrevistou ainda personalidades como Gilberto Gil, José Miguel Wisnik, Rita Lee e, na capital portuguesa, conseguiu se encontrar com Caetano Veloso para um papo no camarim, antes de um show de sua turnê Ofertório.
Assim, o jornalista e médico de 39 anos costurou uma trama responsável por levar o leitor a assistir tanto a um rapaz extremamente tímido inventar o próprio estilo de compor música, atrás do balcão de sua loja de eletrodomésticos e artigos de presente na Irará da década de 1950, quanto ao homem frustrado e chateado por se ver ignorado pela imprensa e o público, ao lançar discos como Todos os olhos, de 1973, e Estudando o samba, de 1976. Álbuns que seriam celebrados mundo afora somente após duas décadas de esquecimento.
O jornalista italiano Pietro Scaramuzzo, autor da biografia. Foto: Divulgação
Tal fase é considerada inacreditável pelo autor do livro. “Hoje, se você imagina aquele tempo, você pensa ‘não é possível que o Tom Zé ia trabalhar no campo tendo produzido esses discos. Ele não conseguia fazer shows’”, diz, referindo-se a quando foi funcionário de uma empresa agrícola em Embu das Artes, na Grande São Paulo. “Para mim, o Brasil tem uma dívida de 20 anos com Tom Zé.”
O período de ostracismo só teve fim devido a um fato inusitado. De passagem pelo Brasil, nos anos 1980, o então líder da banda Talking Heads, David Byrne, se deparou com uma cópia de Estudando o samba numa loja, julgou interessante a capa que tem um arame farpado e a levou aos Estados Unidos. Foi colocar o vinil na vitrola e o som não parou mais de fazer sentido. “Esperava ouvir samba e em vez disso encontrei a vanguarda de Nova York, de Paris e de Berlim. Alguém em São Paulo estava fazendo uma música de pesquisa malditamente boa”, afirma Byrne, em trecho de entrevista concedida a Scaramuzzo. Encantado pelas invenções de Tom Zé, o norte-americano quis conhecê-lo e acabou o contratando para seu selo Luaka Bop.
Agora, outro estrangeiro se debruça sobre Tom Zé, em mais um encontro marcado pela curiosidade. Para Scaramuzzo, essa é a grande característica do músico, hoje com 84 anos. “Talvez tenha sido ela quem o deixou são e vivo naquele momento (de ostracismo artístico). Porque desde criança, ele se moveu pela curiosidade. Pela energia elétrica, pela banda que tocava no clube do lado da casa dele, pelas experimentações que fez”, enumera. “Tom Zé continua mantendo-a viva, por isso é tão elétrico. É uma curiosidade muito bonita.”
FERNANDO SILVA é jornalista.