Will Smith, no momento, sorri. Mas dá para perceber que Jada não gostou do chiste. Will percebe o semblante da esposa e então sobe ao palco, vai na direção de Chris Rock, que reage rindo: “Richard?!”, em referência ao personagem do filme King Richard. E em um movimento brusco, bate no humorista. É possível ouvir o barulho. Atordoado, Chris olhou para a plateia, sorriu e disse: “Will Smith acabou de me meter a mão em mim. Este é o maior momento da história da TV”. Todos sorriram. Se muitos ainda cogitavam que poderia ser uma armação da produção do Oscar, afinal ambos são comediantes, os berros de Will (já de volta à sua cadeira na plateia), que ecoaram por todo o auditório do Teatro Dolby, tiraram qualquer dúvida: “Tire o nome de minha esposa da p.... da sua boca!”.
Chris Rock tirou o nome de Jada da sua boca, como também o sorriso do rosto e pediu, meio sem jeito à produção, a exibição dos vídeos dos indicados e anunciou o vencedor: Summer of Soul (Ou quando a revolução não pôde ser televisionada). E aqui vai uma observação: é bastante lamentável que a tão aguardada vitória do espetacular documentário que resgata a existência histórica de um festival de música negra no Harlem em 1969, invisibilizado durante 50 anos por puro racismo, tenha sido ironicamente ofuscada pelo desentendimento público de dois bem-sucedidos artistas negros. Nem mesmo a emoção do diretor Questlove ao receber a estatueta conseguiu impor o brilho que esse momento merecia.
Minutos depois, Will Smith subiria novamente ao palco, desta vez para receber o esperado Oscar de Melhor Ator. Em seu discurso, chorou bastante, provavelmente numa mistura de alegria pela vitória e tristeza pelo ocorrido. Na sua fala, usou como motivo para o gesto intempestivo o argumento que reverberou em muitas pessoas. Will afirmou que, assim como Richard, ele próprio estava protegendo sua família. Numa avaliação rápida e apenas emocional, o motivo levantado por ele faz muito sentido.
Mas essa alegação é extremamente perigosa, porque muitas coisas ruins vêm sendo feitas no mundo em nome da proteção à família. Se tomarmos como exemplo o Brasil, a defesa da família é motivo para armar a população, matar ou permitir matar, inclusive minorias, como negros e gays, oprimir a comunidade LGBTQIA+, tirar direitos das mulheres, como a opção ao aborto descriminalizado. No país, a organização TFP (Tradição, Família e Propriedade) pediu e apoiou a ditadura militar, que torturava e matava pessoas, que, sim, também tinham família. Eram pais, mães, tias, filhos... Mas o conceito de preservação da família parece só valer quando se está defendendo a própria.
Jerry Seinfeld, amigo de Chris Rock, já fez um comentário pertinente na série Seinfeld (1989-1998). Era sobre o comportamento em comum de muitos homens, pais de família, que se sentem superiores ao resto da humanidade. Parecem não precisar de mais ninguém e não veem o direito dos outros, porque fazem suas “próprias pessoas”. “I make my own people”, ironizou Jerry. Isso lembra o despresidente do Brasil, que alardeia a defesa da família, mas a única que ele realmente defende é a dele.
A menção de Will Smith a Richard Williams para justificar seu gesto merece outra observação, porque o pai de Serena e Venus escolheu qual família proteger. Ele havia literalmente abandonado as filhas do primeiro casamento. Seu foco estava nas filhas do segundo matrimônio, principalmente Venus e Serena, para as quais criou, antes mesmo de elas nascerem, um plano de preparação de 78 páginas para que fossem campeãs no tênis.
Esse projeto de vida idealizado por ele surgiu após ter descoberto, através de uma reportagem na TV, os valores das premiações dos campeonatos de tênis. As meninas não nasceram com desejo de se tornarem tenistas. Esse sonho foi implantado na cabeça delas por ele. E Richard se comportava como um treinador full time. O enredo do filme faz uma romantização do treinamento imposto a elas. Tinham que jogar todos os dias, antes e depois da escola, durante horas.
O filme não mostra detalhes bizarros dessa trajetória. Mas uma matéria publicada na New Yorker em 2014 revelou que Richard Williams cortava as cabeças das bonecas das garotas, para que não alimentassem a vontade de ter filhos precocemente. O pai também proibia namoros, porque supostamente isso as dispersaria dos treinos.
Em um momento chave do filme, é recriado um fato documentado em vídeo pelo próprio Richard nos anos 1990 (ele vivia registrando treinos, partidas e demais eventos relativos a elas). Nesse vídeo de 1994, disponível na internet, Venus está sendo entrevistada antes da partida com a tenista Arantxa Sánchez Vicario. A menina de 14 anos está desafiando a maior tenista da época. O repórter pergunta se ela está confiante. Sorrindo, Venus responde que sim.
O jornalista questiona de onde vem toda a confiança. Na ausência de uma resposta convincente, claro, pois se tratava ainda de uma jovem tímida, ele insiste na pergunta. Richard aparece e interrompe a entrevista. E diz que o repórter não vai abalar a autoconfiança de uma adolescente negra. A reação de Richard foi louvável como pai, treinador e pessoa consciente do quanto a autoestima dos negros pode ser massacrada por brancos em posições de poder. Mas, por outro lado, pode haver uma brecha para se levar em consideração que o repórter, por sua vez, precisava cumprir o tempo da matéria na TV e obter mais informações do que respostas monossilábicas.
Depois, Venus, que teve um ótimo desempenho naquela partida, acabou perdendo o jogo por conta de uma manobra da adversária, que pediu um intervalo interminável no intuito de esfriar a jogadora desafiante. Mas isso não impediu que Venus entrasse, claro, nos anos seguintes, no panteão das melhores tenistas do mundo, seguida pela irmã mais nova, Serena Williams.
Embora elas sejam as estrelas, o roteiro do filme é focado na atuação do pai. Ficamos sem saber das ideias, particularidades, dos sentimentos e sonhos das verdadeiras protagonistas da história. Mais uma vez, o papel masculino ofusca o feminino. E o subtítulo usado no Brasil (Criando campeãs) também é questionável, visto que abarca dois aspectos problemáticos: primeiro, afora a semântica, o que significa, na prática, ser campeã neste mundo? Implica que, do outro lado, exista uma perdedora? Segundo, o que exatamente quer dizer “criar” campeãs? Implica em pais viverem obcecadamente preocupados com altíssimos resultados em performances, cursos, treinamentos, exercícios, avaliações, notas, aparências de seus filhos? Por que não se preocupar, antes de tudo, com a felicidade deles?
Um aspecto fundamental e pouco falado na criação de filhos é estimular o humor nas crianças e nos adolescentes. Ensinar a enxergar o bom humor nos acontecimentos pode ser algo valiosíssimo, porque haverá uma chance de encarar a vida com mais leveza. Uma das mil formas de fazer isso talvez seja apresentar a seu filho a fantástica série Everybody hates Chris (depois de sua piada no Oscar, o “todo mundo odeia Chris” ganhou outro sentido). Nela, Chris Rock relata a luta diária de seus pais pela sobrevivência no Brooklyn, no início dos anos 1980. A recriação da época, cultura, comportamento, visão de mundo é fenomenal. Nos episódios, são relatadas várias situações de racismo que ele sofreu nas ruas e especialmente na escola onde estudou, situada em outro bairro. De menino negro, só havia ele.
Na série, Chris Rock narra muitos acontecimentos de sua infância e adolescência, que, por outra pessoa, provavelmente seriam encarados somente como tristes, penosos, traumáticos e/ou revoltantes. Ele aponta o racismo, a desigualdade, a hipocrisia da sociedade, com um humor preciso e hilário, simplesmente brilhante. A série mostra como o humor foi a arma que ele encontrou e desenvolveu para tentar se proteger do mundo que o cercava. Em um episódio da segunda temporada, ele conta como descobriu que, se fizesse as pessoas rirem, não apanharia delas (que ironia do destino agora...). Entendeu a força do humor, tanto quanto forma de arte, de sobrevivência, de status e de poder.
Assim como qualquer bom profissional tenta ir além de suas capacidades e superar os seus limites, um bom humorista também faz isso. Porém, corre o risco de ultrapassar as fronteiras do aceitável e até pagar um alto preço por isso. Assim como qualquer outro profissional, um humorista também poderá errar em algum momento da sua carreira. Chris Rock não é do tipo que se acomoda. Ele estica a corda, flerta perigosamente com o limite. Enxergar o lado cômico de tudo é a salvação e a maldição dos comediantes.
Quando Chris Rock fez aquela piada no Oscar, no último domingo, acredito que havia algumas possibilidades: ou ele não sabia do problema de Jada ou sabia e achava que não tocaria tão fundo nela, visto que ela havia feito, em dezembro de 2021, um post leve sobre o problema da alopecia no Instagram. No entanto, ele, que idealizou em 2009 o documentário Good hair (porque sua filha perguntava por que não tinha um “cabelo bom”), parece que não entendeu a importância do cabelo para uma mulher negra. Ou achou que teria passe livre para falar sobre o assunto, justamente por ter produzido o filme.
Mas essa não foi a primeira vez que ele brincou com o casal Smith. Durante o Oscar em 2016, havia a polêmica do “Oscars so white”, que virou hashtag. A academia havia ignorado vários profissionais negros que poderiam ter sido indicados. Celebridades negras, então, anunciaram que boicotariam o evento. No comando da cerimônia, Chris Rock, que não havia poupado ninguém em suas tiradas, ironizou o fato de Jada Pinkett Smith, que trabalhava em filmes irrelevantes, não-oscarizáveis, ser uma das pessoas a boicotarem o Oscar.
“Mas o que aconteceu este ano? As pessoas enlouqueceram. Spike Lee enlouqueceu... Jada Pinkett Smith enlouqueceu. Will Smith enlouqueceu. Todo mundo enlouqueceu. Jada disse que não vem protestar. Ela não está em um programa de TV? Jada boicotar o Oscar é como eu boicotar a calcinha da Rihanna – eu não fui convidado! Esse não é um convite que eu recusaria. Mas eu entendo. Eu entendo que você está brava - Jada está brava porque seu homem Will não foi indicado por Um homem entre gigantes. Eu entendo. Diga a verdade. Eu entendo. Não é justo que Will tenha sido tão bom e não tenha sido indicado. Também não é justo que Will tenha recebido US$ 20 milhões por Wild Wild West”.
E aparentemente todos continuaram a se falar. Mas houve o domingo 27 de março de 2022 no meio do caminho. Chris Rock, que, em Everybody hates Chris, narrou tanto bullying sofrido por ele, reproduziu isso com Jada. Se ele realmente a ama, como disse no Oscar, deveria pedir desculpas. Não para melhorar sua imagem à opinião pública, mas para ficar em paz com sua consciência.
A internet, que quatro semanas atrás, discutia quem tinha razão ou não na guerra Rússia x Ucrânia, agora volta a ficar dividida, com tendência maior a defender o ato cometido por Will Smith, o que é preocupante. Fala-se inclusive que o ator pode perder sua estatueta, pois teria quebrado o código de conduta da Academia, assim também como pode ter feito Chris Rock. Não acredito que a Academia chegará a esse ponto. Mas é possível entender e aceitar que ambos estejam errados.
Para se ter ideia do mau exemplo, Jaden, filho de Will e Jada, tuitou: “E é assim que nós fazemos”. Isso me pareceu frase de faroeste ou daquelas famosas brigas de rappers, que, vez ou outra, ainda hoje acabam em morte. Não é esse o mundo que nós devemos querer para as próximas gerações.
Infelizmente esse fato do domingo só veio aumentar a ojeriza que muitas pessoas alimentam contra os humoristas (foi a primeira "acusação" que fizeram contra Volodymyr Zelensky), especialmente porque já foi feita muita piada que ultrapassou o limite do tolerável em stand-up comedy. E isso é uma pena porque deixa-se de conhecer, através do formato, muitas das mentes mais brilhantes do mundo (a Netflix está repleta de especiais incríveis), numa arte que começou no século 19 com o escritor Mark Twain, que enxergava humor em tudo, como Chris Rock.
Assim que o comediante foi estapeado, no último domingo, sorriu para a plateia e disse “Will Smith acabou de meter a mão em mim”, lembrei imediatamente de um cartum de Millôr Fernandes, em que um palhaço caído no chão, cheio de sangue, prestes a morrer, preocupa-se em perguntar a seu assassino ainda com o revólver na mão: “Mas, tirando isso, você achou boa a piada?”
Atualização: Às 20h da segunda (28), Will Smith publicou um pedido de desculpas em seu Instagram: A violência em todas as suas formas é venenosa e destrutiva. Meu comportamento no Oscar de ontem à noite foi inaceitável e imperdoável. Piadas às minhas custas fazem parte do trabalho, mas uma piada sobre a condição médica de Jada era demais para mim e reagi emocionalmente.
Eu gostaria de me desculpar publicamente com você, Chris. Eu estava fora de linha e estava errado. Estou envergonhado e minhas ações não foram indicativas do homem que quero ser. Não há lugar para violência em um mundo de amor e bondade.
Também gostaria de pedir desculpas à Academia, aos produtores do programa, a todos os participantes e a todos que assistem ao redor do mundo. Eu gostaria de me desculpar com a Família Williams e minha Família King Richard. Lamento profundamente que meu comportamento tenha manchado o que tem sido uma jornada linda para todos nós.
Eu sou um trabalho em andamento.
Sinceramente,
Will
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necessariamente a opinião da revista Continente.