Mirante

O rock errou

TEXTO Débora Nascimento

30 de Setembro de 2021

Elvis Presley em encontro com Richard Nixon na Casa Branca, em 1971

Elvis Presley em encontro com Richard Nixon na Casa Branca, em 1971

Foto Reprodução

“Boa tarde, pessoal, hoje não teremos ensaio e nossa transmissão ao vivo não vai rolar! Estamos confiantes e fazendo a nossa parte, é muito importante que todos tomem consciência. Juntos somos mais fortes. E vamos vencer!”

Vemos acima uma amostra dos incontáveis posts nas redes sociais de músicos avisando da interrupção temporária de suas atividades devido ao estouro da pandemia do novo coronavírus, em março de 2020. Esse seria apenas mais um comunicado de artistas que ficariam sem trabalhar durante este período, se não trouxesse uma particularidade. Foi feito por uma banda cujo vocalista e guitarrista estão envolvidos em um dos maiores escândalos ocorridos na saúde pública e privada no Brasil durante este tempo pandêmico.

Respectivamente, o médico Eduardo Parrillo e o administrador Fernando Parrillo são sócios-proprietários da Prevent Senior, plano de saúde e rede hospitalar com mais de 500 mil clientes, em sua maioria, idosos. A empresa é suspeita de ter usado os pacientes vítimas da Covid-19 como cobaias humanas para experimentos com hidroxicloroquina, ivermectina e outras drogas do chamado “kit Covid” ou “tratamento precoce”, desautorizado pela Organização Mundial de Saúde e com ineficácia comprovada.

Não sabemos a que “vitória” exatamente o comunicado se refere, se é da ciência, do ser humano em relação à doença, da saúde pública, da saúde privada, da própria da empresa, da banda de rock ou até do mesmo do rock... O certo é que, ao contrário de muitos músicos que ficaram sem seu ganha-pão neste período, a pandemia, em si, rendeu aos irmãos, em 2020, R$ 495 milhões líquidos, 15% a mais em relação ao ano anterior. Os empresários viram aumentar o número de clientes, que, ao que parece, não tinham do que reclamar do plano de saúde até que os bastidores de sua empresa vieram à tona na CPI no Senado.

Segundo o rumoroso depoimento, no dia 28 de setembro, da advogada Bruna Morato, representante de 12 dos médicos da Prevent Senior, a organização obrigava os profissionais de saúde a receitarem o famigerado kit preventivo, que chegava através de motoboy na casa dos clientes, muitas vezes até mesmo sem o resultado do teste confirmando a doença. No momento mais chocante do relato, ela disse que havia uma indicação para que fosse reduzido o oxigênio dos internados que passassem mais de 14 dias na UTI e falou que por lá circulava a ultrajante frase “Óbito também é alta”. E, nas certidões de óbito, muitas vezes era omitida a Covid-19 como causa da morte. Assim, milagrosamente diminuia-se o número de mortos pela doença.

Os “bons resultados” do experimento desenvolvido pela empresa dariam suporte às defesas da hidroxicloroquina feitas pelo “gabinete paralelo” do Ministério da Saúde e chegaram a ser comemorados pelo presidente da República nas suas redes sociais, citando nominalmente o “CEO Fernando Parrillo”. No Facebook, em 19 de abril de 2020, o post de Bolsonaro teve mais de 52 mil compartilhamentos, espalhando, desta forma, a fake news do “kit Covid”, que se tornaria um dos maiores vilões no combate ao novo coronavírus, pois parte da população, ao acreditar no tal tratamento, provavelmente seria levada a ignorar os protocolos de segurança sanitária – rechaçados pelo mandatário.

Segundo a advogada, o intuito do Ministério da Economia (sim, da Economia, e não da Saúde) era fazer o país escapar do lockdown. Sem isolamento social, o governo federal colocaria em prática a estratégia defendida pelo presidente da República, a “imunização de rebanho”, obtida através do contágio. Se houvesse, com isso, centenas de milhares de mortes pelo caminho, para ele, parecia estar tudo bem.

Em seu depoimento, a advogada revelou que os funcionários da Prevent Senior eram ainda obrigados a cantar um hino como forma de lealdade e obediência à empresa, com a mão no peito. A propósito, nas confraternizações da firma, nas quais os donos, em um comportamento que nem Michael Scott, o chefe sem noção de The Office, seria capaz de tal constrangimento, “brindavam” os seus empregados com um show da sua banda, Doctor Pheabes, que é também integrada pelos dentistas Fábio Ressio e Paulo Rogério, no contrabaixo e na bateria, respectivamente.

O nome do quarteto, a propósito, é inspirado no personagem que intitula os filmes de terror O Abominável Dr. Phibes e A Câmara dos Horrores do Abominável Dr. Phibes, em que o personagem interpretado por Vincent Price culpa os médicos pela morte de sua esposa e busca vingar-se.

A bizarra ligação desses músicos-empresários com o “gabinete paralelo” fez muita gente rememorar os aterrorizantes experimentos do médico nazista Josef Mengele e mergulhar em teorias de conspirações. Cogita-se que uma música lançada pela banda, Army of Sun, seria um resumo de Exército do Sol Negro (“Waffen Schwarze Sonne”) – o sol negro era um símbolo nazista. Foi divulgado na imprensa e nas redes sociais que a abreviação de Schwarze Sonne deu origem ao SS da polícia nazista, mas vem do Schutzstaffel (“Tropa de Proteção”), que tinha como lema a frase “Mein Ehre heißt Treue” (“Minha honra é a lealdade”). Alguém lembrou do hino da Prevent Senior? Um trecho da letra do hino, escrita pelos irmãos Parrillo, diz: “E, juntos, nós venceremos / Com espadas e com canhões”. Alguém lembrou do “vencer” do post mencionado no começo do texto?

Conseguir uma claque garantida dos próprios funcionários é mais uma benesse que o dinheiro pode comprar. Há outras, como manter um estúdio de ensaio muito bem equipado no último andar do prédio onde funciona a administração da Prevent Senior e rendeu até reportagem na Veja São Paulo, em abril de 2017, com o CEO Fernando Parrillo dando pulinho clássico do rock’n’roll empunhado sua guitarra sobre a mesa do escritório.

Por falar em comprar... Essa banda, da qual pouca gente sabia da existência até estourar o escândalo, chegou a tocar nos festivais Lollapalooza, no Rock in Rio e Monsters of Rock. Em uma entrevista concedida ao G1, em março de 2017, os músicos-empresários deixaram bem claro que conseguiram as vagas nessas programações de eventos tão renomados e concorridos porque a empresa era patrocinadora deles. E ainda tiveram a coragem de mencionar valores de quanto custava a inserção de atrações em alguns festivais, como se fosse algo normal e aceitável. Em outras palavras, trata-se do jabá mostrando a sua capacidade de revitalizar-se e adaptar-se ao longo das décadas. E aí se colar, colou. O artista do jabá espera, com isso, ganhar fama e conquistar um público maior ou minimamente uma plateia fiel.

Essa exposição do escândalo dos empresários roqueiros da Prevent Senior trouxe, de alguma forma, a fama que tanto os irmãos músicos queriam; uma má fama, é certo. A Doctor Pheabes ficou conhecida. Mas provavelmente deve acabar, assim como a outra banda de Eduardo Parrillo, Armored Down (que teve sua participação no festival Knotfest cancelada). Mas toda essa história bizarra também resgatou o fato de que o rock, mesmo com histórico transgressor, contestatório e engajado em diversas causas humanitárias, também pode apresentar uma contraditória face retrógrada e alinhada à direita ou, nesse caso, à extrema direita.

Embora o próprio Elvis tenha apertado a mão de Nixon em visita à Casa Branca, Johnny Ramone tenha sido chamado de “KKK” por Joey e Phil Anselmo (Pantera) usado bandeira dos Estados Confederados em show, o rock sempre foi associado a um comportamento rebelde, permanecendo, na sua história, imagens marcantes como os protestos dos Beatles contra a Guerra do Vietnã, Jimi Hendrix ateando fogo na guitarra, os Sex Pistols provocando a Família Real.

O melhor do que já foi realizado em termos de rock teve origem, em sua maioria, na classe pobre e operária. Raros músicos ricos passaram pelo teste do talento e da relevância. Julian Casablancas é um deles. Autor das músicas dos Strokes, o filho de John Casablancas ressuscitou o rock há exatos 20 anos com o lançamento do disco Is this it. E agora o gênero, mais uma vez, é dado como morto. A nova geração parece estar mais interessada em videogames, em séries da Netflix e, se gostar de música, encontra maior atualidade e contestação em outros estilos musicais, como o rap, ou em bandas que abranjam diversidade racial e de gênero do que um estilo musical predominantemente branco, hétero e classe média/alta, e muitas vezes descolado da contemporaneidade.

É inegável que o rock, nascido das mãos dos artistas negros, tenha ficado branco e rico demais. Quem seria o culpado por afastar dele, então, a juventude negra, seja como artista ou espectador? Os artistas brancos? As gravadoras? A TV? A MTV? As rádios? O racismo? A demasiada idolatria aos clássicos do rock que paradoxalmente quase inviabiliza a acolhida a novas bandas e músicas do gênero? A ganância dos empresários que, a partir da década de 1990, encareceu discos e ingressos para shows, tornando-os exorbitantes e destinando-os a um público seleto? E o fato de Trump ter se apropriado de clássicos como Sweet child o'mine, You can't always get what you want e Rockin' in the free world não ajudou muito a imagem do rock...

Há décadas, é raro ver espectadores negros tanto nas programações quanto nas plateias de shows de rock. Nos festivais de música pop europeus, só tem caucasianos. Para alguém com poucos recursos, conseguir o ingresso de alguns dos melhores festivais de música, hoje em dia, é necessário cogitar vender um rim. Nos anos 1960, com o valor do preço de um ingresso do show dos Beatles podia-se comprar um pastel e um caldo de cana.

Por isso é fácil existir uma plateia branca e rica vaiando Roger Waters ao elencar Bolsonaro como um dos líderes fascistas do mundo hoje. Só quem não tem empatia ou não sofre na própria pele os efeitos de um governo nefasto contra negros, indígenas, gays, não concorda com o ex-baixista do Pink Floyd. Mas esse público que, em 2018, condenou seu próprio ídolo, certamente deve se achar rebelde porque curte rock. Para essa plateia, o fato de ser antipetista dá abertura para apoiar um político fascista.

Dessa ideia de se entender como antissistema, mesmo apoiando um fascista atolado até o pescoço no “sistema”, surge uma confusão semântica e ideológica que faz com que protestos contra a democracia e o STF, usem músicas como Brasil, de Cazuza, Que país é este?, da Legião Urbana, e Até quando esperar, da Plebe Rude, e dá aos seus manifestantes um caráter de oposicionistas – para eles, o fato de ser “oposição” já lhes garante instantaneamente um manto de dignidade.

No Brasil, alguns roqueiros talvez achem bonitas muitas das declarações deploráveis de Morrissey e queiram se comportar como ele. Mas, ao que parece, a carreira do ex-vocalista dos Smiths não sofreu um abalo tão profundo quanto a de certos brasileiros. Autor de vários hits do rock nacional, Roger Moreira virou apenas um músico no auditório de Danilo Gentili e não consegue mais nem despertar a ira dos seus opositores ou o interesse dos antigos fãs para irem ao cinema conferir o documentário sobre o Ultraje a Rigor, que foi um fiasco total, assim como um curta-metragem sobre Lobão.

O rock, gênero musical que teve fundamental importância na contracultura e na cultura pop, em meados do século 20, revolucionando costumes, hoje passa cada vez mais vergonha ideologicamente. Talvez o problema comece até na própria música, como disse, em entrevista à Rolling Stone, em 2020, Keith Richards: “Não existe rock and roll novo. [risos] Não tem sentido. Há grandes músicos e alguns grandes cantores e tudo mais. Infelizmente, pra mim, na música, foi tudo sintetizado até a morte. Uma vez que você começa a sintetizar as coisas, você não está tendo a coisa real. Mas eu não quero fazer um longo discurso sobre o que está errado com os sintetizadores e as músicas de atualmente, só dizer que elas são ordinárias e cafonas”.

A propósito, por falar em Keith Richards, a banda Doctor Pheabes chegou a ser escalada para abrir um show dos Rolling Stones no Brasil, no esquema patrocinou, escalou. E que bom que isso foi o mais próximo que o nosso bom e velho Keef chegou perto da Prevent Senior...

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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