Mirante

"Aquele" Michael Jackson morreu

TEXTO Débora Nascimento

26 de Março de 2019

The Jackson 5 na praia de Malibu, em 1969

The Jackson 5 na praia de Malibu, em 1969

Foto Lawrence Schiller/Reprodução

Em 1969, o fotógrafo Lawrence Schiller recebeu do New York Times a tarefa de fotografar Diana Ross. Quando estava no Central Park fazendo as fotos da principal estrela da gravadora Motown, ele ouviu uma sugestão da cantora: “Você também deveria fotografar um novo grupo musical que eu descobri”. Schiller observou: “Eu não sabia que você estava descobrindo grupos musicais”. Diana respondeu: “Alguém me descobriu e eu estou fazendo o mesmo. O nome do grupo é The Jackson 5”. O fotógrafo ainda não conhecia o quinteto, que lançaria em dezembro daquele ano, pela Motown, o seu primeiro álbum, Diana Ross presents the Jackson 5.

Os garotos de Indiana iam a Los Angeles para divulgar o disco. Schiller, então, teve a ideia de fotografá-los em Malibu. No trajeto para o local, dentro da limusine alugada pela gravadora, ele observou a movimentação de Jackie, Tito, Jermaine, Marlon e Michael e não pôde deixar de perceber o entusiasmo e uma certa timidez neles. Quando o carro chegou ao píer, os irmãos logo desceram do automóvel e correram em direção à água. Arregaçaram as calças, pularam e dançaram próximos às espumas das ondas. Em diversos cliques de sua máquina fotográfica, Schiller captou a alegria incontida daqueles meninos. Eles viam o mar pela primeira vez.

Nascidos em uma família muito pobre de Gary, uma das cidades mais violentas dos Estados Unidos, os garotos viviam enclausurados em casa, ensaiando, sob a vigilância rigorosa do pai. Mas agora estavam prestes a ficar ricos e famosos através do talento musical. O álbum de estreia do Jackson 5 já continha o primeiro sucesso, a vibrante I want you back, uma mistura entre pop, soul e funk, que, mesmo inspirada em Sly & The Family Stone, conseguia esbanjar autenticidade.

O fotógrafo ainda não tinha visto um show do grupo, mas ficou claro, para ele, que quem mais se destacava era o integrante de apenas 11 anos, o vocalista principal. Na ocasião, Schiller fez o registro, antes da fama, daquele que se tornaria o maior nome da música pop. Desde então, o mundo passou a acompanhar o crescimento daquele menino prodígio, as mudanças na sua voz, a evolução como cantor, dançarino e compositor. Bilhões de pessoas ao redor do planeta se acostumariam a falar e a ouvir falar sobre os dois nomes próprios mais conhecidos da música e do entretenimento: Michael Jackson.

Michael Jackson despontou no final da turbulenta década de 1960, um ano depois do assassinato de Martin Luther King Jr. Desde 1959, a gravadora que o lançou, a Motown Records, funcionava como uma máquina de descobrir, formar e lançar artistas negros, em pleno país que praticava ostensivamente o racismo nas ruas, nos estádios, nos restaurantes, nos ônibus, nas lojas, nas escolas, nos meios de comunicação. Embora fosse acusada por ativistas de tentar “embranquecer” os seus contratados, com roupas e cabelos usados por brancos, a gravadora cumpria um importante papel político ao dedicar-se exclusivamente a esses cantores, músicos e compositores.

Firmada em Detroit, a cidade onde operavam as principais montadoras de carros do país, a Motown atuava quase numa analogia a essas empresas. Os seus artistas eram engendrados como se estivessem numa linha de montagem de altíssima qualidade, cujo objetivo era nada menos que a excelência do produto final. Oriundo de uma educação doméstica autoritária, Michael estava no ambiente propício para o despertar de um perfeccionismo doentio e de uma indomável ambição, que o levou à megalomania.

Tratado com brutalidade pelo pai Joe Jackson, um músico frustrado que trabalhava numa fábrica para poder alimentar nove filhos, Michael, o sétimo deles, acabou encontrando fora de casa o paparico que não recebeu na infância. E não é de se estranhar que o seu comportamento diante das pessoas e das câmeras de TV tenha sido não o de um homem adulto, mas o de uma criança. O próprio artista revelou, em entrevista, que ficou triste ao entrar na adolescência.

Desde 1969, nos acostumamos a um mundo com Michael Jackson. Seja entoando graciosamente a letra de ABC, cantando temas românticos que não seriam para sua idade, como Ain't no sunshine, I'll be there, I wanna be where you are, Got to be there, Happy, One day in your life, Ben. Seja no clipe de Don't stop 'til you get enough (1979), uma explosão de disco e black music, cuja letra, inspirada em Star wars, menciona a palavra central do filme de George Lucas: “força”. Se já havia nascido a definição de blockbuster no cinema com Tubarão (1975) e Star wars (1977), Michael alcançaria, na música, o topo desse conceito de arrasa quarteirão, com o lançamento de Thriller (1983), o álbum mais vendido da história – mais de 110 milhões de cópias em todo o mundo.

Coincidentemente, Michael despontou no mercado fonográfico no ano em que os Beatles fizeram a sua última gravação, Abbey Road. Se o quarteto de Liverpool já havia superado Elvis Presley em números, em 1969 surgiu o cantor que ultrapassaria os recordes da banda. Ele bateria todos os possíveis: tornou-se o mais célebre artista da história por ter vendido 1,5 bilhão de discos, segundo o Guinness Book, e manteve-se nas paradas musicais desde 1969, com 41 canções no topo dos rankings, 13 Grammys (sendo oito por Thriller) e um dos raros nomes a entrar duas vezes no Rock And Roll Hall of Fame.

Após conseguir quebrar o racismo da MTV com seus videoclipes, Michael Jackson lançou, em 1984, o VHS de Thriller, acompanhado de um documentário sobre os bastidores da produção. O vídeo vendeu 4 milhões de unidades, tornando-se o mais vendido de todos os tempos, até ser superado, em 1997, por Titanic, de James Cameron. Uma das pessoas que comprou essa fita foi a australiana Joy Robson. Seu filho, Wade, ao assistir ao vídeo, descobriu sua paixão, a dança. Ele assistia diversas vezes para aprender a coreografia. E, aos cinco anos, venceu um concurso de melhor imitação do Rei do Pop. O prêmio era o sonho de milhões de crianças (e adultos): conhecer o artista.

Aos sete anos, voltou a encontrá-lo e, daí, ele e sua família estreitariam uma amizade relativamente duradoura com o astro. Em 2019, Wade Robson, que, por méritos próprios virou coreógrafo de Britney Spears e N'Sync, está no noticiário internacional por ser um dos dois personagens principais do documentário Leaving Neverland, que estreou este mês na HBO.

Com descrições minuciosas e perturbadoras do abuso sexual praticado por Michael Jackson, o documentário dirigido por Dan Reed, na prática, não deixa dúvidas sobre os crimes cometidos contra essas crianças. Disponibilizado no ano em que se completa uma década da morte do cantor, ocorrida no dia 25 de junho de 2009, o filme não consegue mais atingir a pessoa física ou a jurídica, mas provavelmente afetará a imagem do ícone da música pop para as futuras gerações. Os terríveis relatos não deixam de macular, de forma contundente, a história do garoto pobre de Indiana que virou o artista mais popular do planeta. O estrago, por enquanto, só não foi maior porque o filme não estreou na Netflix, plataforma que mais repercute nas redes sociais.

Lançado inicialmente na HBO norte-americana, teve a terceira maior audiência de um documentário nesta década nos Estados Unidos, com resultados negativos para a “marca” Michael Jackson. Diversas rádios retiraram de suas programações o patrimônio artístico deixado por ele, suas músicas. A apresentadora Oprah Winfrey, que, em 1993, havia realizado uma célebre entrevista com o cantor, fez agora uma outra rumorosa, desta vez com o documentarista Dan Reed e as duas vítimas, o músico James Safechuck e o coreógrafo Wade Robson.

Esses relatos mostraram o quanto o acompanhamento da trajetória de Michael Jackson, desde a infância, pesou para que as famílias dessas vítimas confiassem no cantor. Como não acreditar na boa fé de alguém que escreveu e cantou canções como We are the world, Heal the world, Man in the mirror, They don't care about us? O artista, com sua imagem de eterno garoto, era visto como alguém inofensivo. Sua postura corporal delicada, seu tom de voz suave, sua timidez e aparente vulnerabilidade foram elementos-chave capazes de manipular tanto os garotos quanto suas famílias. O mais surpreendente é que essas duas crianças, na época, não se sentiam abusadas. E ainda tiveram ciúme quando a atenção do astro voltava-se para um novo amigo menor de idade, como o então garoto prodígio do país, Macaulay Culkin, que atuou no videoclipe de Black or white (1991).

Um dos depoentes, James Safechuck, que conheceu Michael durante a gravação do comercial da Pepsi, revelou que se sente um traidor do artista, por ter escancarado ao mundo o que aconteceu – em um comportamento recorrente da vítima se sentir culpada. E tanto ele quanto Wade Robson só perceberam que foram realmente abusados quando tiveram seus próprios filhos e viram a inocência de suas crianças refletida na infância deles. Até então, foram manipulados para entenderem o abuso como uma demonstração de amor e cumplicidade. O fato de ainda nutrirem, apesar de tudo, uma afeição pelo artista talvez seja a maior prova do poder da música, da força da arte.

Antes de escrever este texto, fui rever alguns videoclipes dele, desde sua infância até a fase adulta – sim, embora ele quisesse mostrar o contrário, houve uma fase adulta. E não há como extrair o pensamento de que esse mesmo artista brilhante e tão querido é acusado de cometer um dos crimes mais perversos contra um ser humano, provocando uma experiência traumática para o resto da vida de suas vítimas. O documentário Leaving Neverland (que se refere ao rancho, que servia de isca para essas crianças, tal como a casa de bombons do conto João e Maria) permite que não apenas as crianças Wade e James deixem Neverland, mas também o restante dos fãs de Michael Jackson.

O documentário colabora para que todos os defensores dele saiam de lá – afinal ainda perdura a tese de que as vítimas e suas famílias que o processaram estavam apenas em busca de dinheiro. Nos anos 1990, os dois depoimentos de Wade, em defensa do artista, foram determinantes para a absolvição do réu. Agora, Wade e James Safechuck, além do diretor do documentário, estão sendo acusados e até ameaçados por fãs mais ardorosos e insensatos. Diversos jornalistas, críticos e blogueiros que escreveram sobre o documentário receberam comentários furiosos de leitores que, inclusive, se recusam a assistir à produção.

Essa negação dos fãs, incluindo nesse rol a amiga Diana Ross, de aceitarem o erro de seu ídolo pode ter uma explicação plausível não apenas na sólida memória afetiva construída e fortalecida coletivamente ao longo dessas cinco décadas. Mas também porque Michael Jackson representou, no inconsciente coletivo, não somente a união de um país e de um mundo dividido entre brancos e negros, mas o empoderamento de uma raça. No começo dos shows dos Jackson 5, sua plateia era formada basicamente por jovens negros, que tiveram a partir de então uma banda de rapazes pela qual gritar e se espelhar. A partir dos anos 1980, quando ele, no auge de sua carreira solo, lotava estádios, não dava mais para distinguir cores de pele, embora houvesse uma maioria branca.

No começo daquela década, começou o seu processo de embranquecimento, por conta do tratamento para o vitiligo. Usava uma peruca porque havia queimado o couro cabelo num comercial da Pepsi, mas era de fios lisos. O nariz afilado foi resultado de diversas cirurgias mal-sucedidas. Era, na verdade, uma resposta aos danos à autoestima provocados pelo pai. No entanto, o seu maior problema era a solidão - mencionada no documentário.

Quando Michael Jackson morreu, diversas pessoas foram ao Teatro Apollo, no Harlem, onde ele, junto aos irmãos, fez um dos seus primeiros shows. Havia muitos fãs na porta do lugar, berço de outros artistas negros. Durante cinco décadas, foi indisfarçável o orgulho de que o cantor mais popular do planeta era um negro nascido num país racista. Esse orgulho estava evidente no documentário de Spike Lee, Michael Jackson's Journey: from Motown to Off the wall (2016), que cobre até 1979, sem abranger o período em que o artista começa a embranquecer e se envolver no maior escândalo de sua vida. O sucesso de Michael Jackson carregava consigo toda uma responsabilidade. Mas, ao que parece, ele não deu ouvidos à letra de Man in the mirror.

Em 2013, meu filho, então com sete anos, estava aficionado por dançar. Aproveitando o interesse dele, mostrei alguns vídeos de Michael Jackson no YouTube. Ele ficou especialmente maravilhado ao ver as performances de Billie Jean, com o moonwalk, e do Smooth criminal na famosa inclinação de 45 graus. Mostrei os vídeos do Jackson 5 e a animação do grupo, que passava na televisão norte-americana nos anos 1970. Diante do fascínio dele, evitei dizer que Michael Jackson estava morto. Em março deste ano, enquanto eu assistia ao documentário na HBO, não quis que ele ficasse na sala e corresse o risco de ouvir as descrições das vítimas de um artista que acabou utilizando a sua arte para abusar de seus fãs. No entanto, mais cedo ou mais tarde, ele vai descobrir que não há como trazer de volta aquele Michael Jackson, que era somente um artista fascinante e brilhante. Ele morreu.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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