Matéria Corrida

“À” Hermilo

TEXTO José Cláudio

09 de Agosto de 2022

Imagem Reprodução

“Revendo papéis antigos/velhas cartas dos amigos/o teu retrato encontrei/e ao vê-lo tão desbotado/ao relembrar o passado/confesso a ti que chorei”, cantarolava eu ao me deparar com uma carta a Hermilo, assinada por mim, que não enviei. Nem cartas dos amigos nem retrato desbotado. O retrato de Hermilo nunca desbota. Que ano ele morreu? É comum escrever a carvão o ano do falecimento dos amigos na parede do atelier. Não o de Hermilo. Para mim, continua vivo. Também não sei que carta é essa. Devo ter escrito à mão, como sempre faço, e pedido a alguém para datilografar. O tipo da máquina é em itálico, e nunca tive máquina de escrever com o tipo em itálico. Nem sei quem tinha. 

Além do tipo da máquina, não cometo erro de português como “cozinhado” com s (“cosinhado”) ou “À Hermilo”, como tem no endereço do envelope. 

Outra coisa de que não me lembro é um selo de brincadeira desenhado por mim e colado no dito envelope, um envelopinho aéreo comum, desses com listinhas verde-amarelo nas beiradas, como podem ver na ilustração. 

A carta fala de uma peça de Hermilo intitulada Sobrados e mocambos para a qual fiz os cenários, que consistiam em desenhos projetados no fundo do palco por slides

Coincidência é que, enquanto lia a carta, telefonam do Teatro Hermilo Borba Filho, me lembrando da 19ª edição da Semana Hermilo, em que também sou homenageado pelas ilustrações no livro Agá, tendo o autor deixado aos meus cuidados todo um capítulo que pediu para transformar em história em quadrinhos, caso inédito na nossa literatura, creio. 

Foi Hermilo que me tirou do trabalho escravo, digamos, apresentando-me ao marchand Renato Gouvêa. Renato me perguntou: “Quanto você ganha na Sudene?” Eu disse não lembro mais quanto. Ele respondeu: “Isso eu pago para você ficar em casa pintando”. 

Chega de explicação. Eis a carta. 

Recife, 16 de janeiro de 1977 

Hermilo: venho – como alguns milhares de vezes aconteceu contigo –, estou vindo do teatro. Não era mesmo um teatro, uma casa de espetáculos com camarins e palco. A bilheteria era uma mesinha, o coquetel uma batidinha de limão, mas tudo feito com muito carinho, podes crer. Até ias gostar do amendoim cozinhado (ainda estava quentinho), os carocinhos descascados, servido em bandejas, para se jogar de punhado na boca: cuidados de Margarida. Daí estás vendo, mas quero te contar cá de baixo, da “zona do agrião”. Grandão, que fez o cenário, não sei como se mantém em pé. Fez mesmo, serrando no serrote, e também o figurino, e trouxe num saco às costas uns restos de umas latas de tinta para pintar os cartazes que pedes para a boca de cena, e mais cartolinas com sarrafos apanhados no lixo de uma serraria na Ilha do Maruim. Falta fazer os cartazes de rua, para o que já providenciou um pedaço de tela de silk-screen e vai recortar os letreiros (os possíveis patrocinadores despediram-no, a ele e a Fábio, com simples NÃO). Na falta de outro papel dei-lhes a ideia de imprimir sobre jornais velhos. Guilherme, o diretor da peça, plantou se dia e noite na máquina de costura e, fazendo milagre dos pães, emendando fazendas, deu à luz cinquenta e tantas fantasias, além de perneiras, capacetes, máscaras, botinas, mas aí já estou de novo no terreno de Grandão e outros. Atores e atrizes estão com as pontas de dedo roídas e calos nas mãos, além da garganta seca de gritar para casas vazias. Apanharam barro do talude da estrada para modelar formas de máscaras, etc. (algumas, como a da cartola em cima de uma tábua, te lembraria coisas da escultura “Dadá” ou quadro de René Magritte). Atores abandonaram a peça por um motivo inacreditável: não ter o dinheiro da passagem de ônibus. Cada um copiou do próprio punho a sua parte por não ter dinheiro para comprar o livro. No sábado em que deram duas apresentações, e, trabalharam das cinco às onze no palco, cotizaram-se para a janta com o dinheiro que cada um trazia no bolso pois a bilheteria deu déficit – tinham de pagar seiscentos ao teatro onde estavam, cento e oitenta de direitos autorais, músicos, bilheteiro, gorjeta aos funcionários, imposto sobre não sei o que – e depois de receberem as ameaças em lugar dos sonhados aplausos, deu para cada um tomar uma, única, guaraná (sem bolo). Por isso estão agora no terracinho da Biblioteca Pública, no Parque Treze de Maio, e alegre-te, porque ao menos esta, Margarida Matheus de Lima, que nem sei se te conhecia pessoalmente, não te faltou. Inda promoveu uma exposiçãozinha dos desenhos que fiz para os slides no saguão da Biblioteca, pregando ela própria com durex as cartolinas nos painéis. Infelizmente ontem a máquina projetora pifou. Sabes de alguém que pudesse emprestar uma? Miguel está se virando com Spot-latas, refletores improvisados com latas de tinta vazias. Vê aí quem ficou no lugar de Terpsícore. A representação está linda, muita coisa você não imaginaria que os meninos do Vivencial tivessem estofo de criar, como som, cena, beleza plástica, espetáculo. Eu me surpreendi. Eu vi teatro nascendo. E às vezes te via nas coxias ou junto de mim como no pastoril do Janga, procurando último tostão para da-lo a uma pastora que apesar de ter dançado e cantado a noite inteira ainda não tinha descolado. 

Não tenho visto os teus amigos na plateia. 

JOSÉ CLÁUDIO



 ---------------------------------------------------------------------------------
*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

Publicidade

veja também

Caranguejo

Iluminado

O caminho da glória