Matéria Corrida

O caminho da glória

TEXTO José Cláudio

07 de Junho de 2023

Imagem Reprodução

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Nas mudanças mil, de fazer inveja a cigano,
que me ocorreram antes de ter casa própria, construída por mim por milagre, longo milagre que até hoje se perpetua, pois moro nela há mais de 50 anos e ainda não terminei de construí-la, sofri inúmeras perdas. Uma, que não me canso de lamentar, é a das cartas dos amigos, muitos já falecidos. 

Hoje, 26 de abril de 2023, eu com 90 anos, faltando quatro meses para 91, a sobrinha Jaqueline encontrou numa caixa de papelão, o letreiro que escrevi, declarando conteúdo da mesma, quase completamente apagado, uma parte ínfima dessa correspondência. Ínfima numericamente mas de importância nada desprezível. 

Eu continuo vivendo dos amigos. Ouvi-los falar, é um conforto infinito. 

Maria Sampaio, ou Maria de Mirabeau, filha de Mirabeau Sampaio, é a primeira que aparece, de mãos dadas com ele, numa foto de lambe-lambe tirada na Praça Cairu, a praça do Elevador Lacerda embaixo, época em que a conheci. Eu cantava folhetos, como os vendedores do pátio do Mercado São José aqui no Recife, e pintei um quadro de Juvenal e o Dragão que lhe dei: ficou pendurado na parede da casa da escritora até sua morte, ainda jovem: virou escritora e mandava os manuscritos para eu dar palpite. Junto desses manuscritos vinham catálogos de obras de Mirabeau, esculturas de sua autoria em madeira tendo como tema santos da coleção de santos antigos, até do século XV, anterior à descoberta, outra das paixões de Mirabeau e inspiração para o seu trabalho escultórico. 

Também da Bahia era Robatto, dentista e amante das artes. Nossa amizade começou com a extração de um dente. Ele gostava de uns versinhos que eu recitava: “De 4 coisa no mundo/já gostei não gosto mais/de cavalo galopeiro/de lamparina de gás/calça com bolso na bunda/paletó lascado atrás”. Outro: “Tem quatro coisa no mundo/que morro e não ixprumento/com dotô não articulo/com padre não argumento/com mulé véia não caso/em poço fundo não entro”. A linguagem de Robatto era o cinema. Fez um filme sobre capoeira, Vadiação, acho que pioneiro e considerado excelente. Seu filho Sílvio foi se encontrar comigo em Roma. Virou arquiteto e construiu, já casado, com a filha da pintora paulista Hebe Carvalho, uma casa na fronde de uma árvore, em Salvador. Ele me levou lá. Seu filho tocava clarineta. Estava estudando na ocasião, tocando pela partitura. 

Ah, Roma. Eu cheguei a estar em Roma sem me lembrar disso, como quem está no topo e não ter mais para onde ir. Quando voltei para o Recife, quem me escrevia de lá era Murilo Mendes. Eu frequentava os seus saraus onde conheci o pintor Emilio Vedova, grande nome da época. Murilo Mendes escrevia em papel aéreo com tinta verde. Devo ter várias cartas. Minha sobrinha Jaqueline só encontrou um cartão de boas-festas escrito em tinta vermelha. Eu morria e não me lembrava. Escrito em maiúsculas: “MEU CARO JOSÉ CLÁUDIO, ESTOU EM FALTA COM VOCÊ, DESCULPE-ME (o hífen ele escrevia com dois tracinhos, como o sinal de igualdade). NÃO MEÇA O GRAU DE AMIZADE PELO TERMÔMETRO EPISTOLAR. SUAS CARTAS SÃO MUITO APRECIADAS. ESCREVA QUANDO PUDER E MANDE-NOS NOTÍCIAS DO SEU TRABALHO. AFETUOSOS ABRAÇOS NOSSOS A V. E LEONICE. MM”. 

As cartas iam sempre para a Rua da Glória, Recife, onde passei uns tempos arranchado em casa de minha cunhada Nicinha, irmã de Leonice, mãe de Jaqueline.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam necessariamente a opinião da revista Continente.

 

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