Capa do livro 'Carybé nas suas visitas ao Benin (1969-1987)', que saiu pela Imprensa Oficial de São Paulo
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O médico Mirabeau Sampaio, além de diretor do posto de saúde do Barbalho, Salvador, tinha uma fábrica de calçados que fazia sapatos sob medida. Foi a única vez que calcei sapatos sob medida. Também era excelente escultor em madeira. Dona Norma, agora lembrei o nome de sua esposa.
Mirabeau me disse, a mim, de outro estado, que na Bahia não existia negro. Ele, nascido e criado na Bahia, nunca tinha visto um negro. Isso até a chegada de Carybé, do pintor Carybé (Hector Julio Páride Bernabó, Lanus, Argentina, 1911 – Salvador, 1997). É possível que isso que aconteceu com Mirabeau tenha acontecido no Brasil todo. Eu mesmo soube que tinha “um pé na senzala”, como disse FHC, pelo próprio Carybé, eu trabalhando com ele no andaime no Centro Carneiro Ribeiro, Salvador. Ele disse com uma certa inveja: “Tu? Tu és negro”. Essas coisas me vêm em mente ao olhar o livro Impressões de Carybé nas suas visitas ao Benin, mostrado pelo meu filho Mané Tatu, que ele adquiriu, e editado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, sob a régia de Cecília Scharlach, a mesma que publicou o meu José Cláudio da Silva/100 telas, 60 dias & um Diário de Viagem – Amazonas, 1975.
Eu também visitei o Benin. Em 1993. O convidado foi Carybé, para um certame patrocinado pela Aliança Francesa. O Benin fala francês, além das mais de duzentas línguas locais: língua de verdade, sem parentesco uma com outra. Fiz amizade com diversos pintores do Haiti, Nigéria, Benin. Um deles, certa ocasião, se referiu a mim como se eu fosse branco. Eu disse que era negro. Ele aí encostou o braço no meu. Não precisou falar para contestar a minha pretensa negritude. Nem sei se contei isso a Carybé.
O Benin é o oposto de Pernambuco, do outro lado do Atlântico. Até o formato parecido. O clima, igual. Não tem muriçoca. Publiquei, aliás, Tereza Dourado publicou, patrocinado pelo Bandepe, Os dias de Uidá, de minha autoria. “Uidá” vem do nome português do Forte da Ajuda. “Ajuda” virou “Uidá”. Os portugueses andaram por lá.
O livro de Carybé, não precisa dizer, é uma maravilha. Ele desenha e escreve ao mesmo tempo como se fosse uma coisa só. O grande e rigorosíssimo desenhista paulista Arnaldo Pedroso d’Horta dizia que Carybé suava desenho, mijava desenho. Era tão natural como falar. É uma continuação da caligrafia. Só vendo. No mesmo espaço do papel. Sem separação. Tudo feito na mesma hora. Era seu jeito de contar o que via. Vocês conhecem os Cadernos da Bahia? É aqui elevado à enésima potência. Sem mais precisar se impor. É conviver com o divino.
Me lembrei de outra. Eu estava na casa de Carybé. A família tinha viajado. De manhã, ele me chamou para tomar banho de mar. Eu vesti meu calção e ele, o dele. Ao atravessarmos o Largo de Sant’Ana, Carybé parou e disse: “Vou voltar”. Voltou correndo e entrou no sobrado onde morava. Perguntei: “O que foi que houve?”. Ele respondeu: “Estou com vergonha das minhas pernas brancas”.
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