Meses depois, Mané, meu filho, se aproximou de onde eu estava, na ampla sala de jantar. “É aquele homem mais um bando de gente.” Mandei entrar. Eram Hermilo, Adib Jatene, que o tinha operado, uma moça moreninha daqui de Pernambuco que Adib disse só botar a mão num doente depois de ela examinar, o anestesista e outros. “Todos vão comprar quadro”, anunciou Hermilo. Me chamou para o fundo da sala e os outros ficaram ao redor da mesa.
Os quadros agora já eram bem maiores, quase um metro, vários temas. Hermilo virou-se para as visitas e exclamou: “Vejam que quadro magnífico”! E a mim: “Diga baixinho aqui no meu ouvido o preço deste quadro”. Eu nem tinha ideia porque não vendia, não tinha preço de mercado. Avaliei pelo preço de Wellington Virgolino, que fizera parte do Atelier Coletivo e já começava a vender. Me lembro de ter dito: “Sessenta”. Hermilo disse: “É de graça”! E completou alto: “Seiscentos”. O dono do hospital, que também fazia parte da turma, disse: “É meu”! E assim todos, formando em cima da mesa uma tulha de dinheiro como eu nunca tinha visto. O último a que fui apresentado, Renato Gouvêa, marchand em São Paulo, perguntou quanto eu ganhava na Sudene, onde eu trabalhava de ajudante de desenhista. Disse e ele respondeu: “Isso eu pago para você ficar em casa”. Aí acertamos um contrato de exclusividade. Desde esse dia, nunca mais bati ponto, a não ser no cavalete.
Isso na década de 1960. Estamos em fevereiro de 2022. Há alguns dias Renato me telefonou e conversamos um bocado, já em função das minhas noventa primaveras que completo este ano. “Sabe aqueles quadrinhos de passarinhos? Ainda tenho todos. Nunca vendi um!” Isso só fui saber quando fiz a primeira exposição na galeria de Renato anos depois. Na ocasião, Renato me levou para uma chácara, como dizem lá, perto de Campinas. Na casa da fazenda me botou olhando para um corredor sem luz. Lá não tinha luz. E foi-se embora com um candeeiro apagado até chegar na outra ponta do corredor. Aí acendeu o candeeiro e gritou: “Pode olhar”. A sensação foi de vertigem, como a de quem, estando na beira de um edifício, olha para baixo. Esse corredor dava para uma sequência de senzalas, cinquenta ou cem metros de corredor e, no fim, uma sala, como pude ver.
Numa grande parede desta sala pude rever quase todos os quadros de passarinhos. Renato explicou que foi convencendo cada enfermeira, enfermeiro, servente e outros que haviam recebido quadro ou iriam receber se não prefeririam um corte da melhor seda para fazer um vestido, ou o melhor sapato, ou mesmo a quantia em dinheiro, e todos optaram pela troca.
Lembrei de Hermilo em pé diante de mim de roupa branca, gravata, e me ocorreu que, de todos os homens que deram uma alavancada na minha vida, o único que se apresentou sem me haver conhecido antes pessoalmente foi Hermilo. Dizendo a título de apresentação: “Você não me conhece”. Agora, tantas décadas depois, Renato falando nos passarinhos, quem aparece diante de mim, em pé, de roupa branca, paletó e gravata, é Hermilo Borba Filho.
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