Matéria Corrida

Hermilo e passarinhos

TEXTO José Cláudio

02 de Março de 2022

José Cláudio. 'Lambu', óleo s/ eucatex, 23 x 31 cm, 1971

José Cláudio. 'Lambu', óleo s/ eucatex, 23 x 31 cm, 1971

Imagem Reprodução

Parece que estou vendo. Hermilo de branco, paletó e gravata, em pé na minha frente, na casa da Rua do Bonfim, Olinda, onde eu morava. Bateram palma, meu filho Mané, ainda menino, disse: “É um homem”. Logo surgiu, depois de atravessar o longo corredor, como era naquelas casas antigas, Hermilo Borba Filho. “Você não me conhece”, ele disse. Eu estava sentado, talvez desenhando, que era o que eu fazia naquela época. “Conheço sim”, respondi. Ele saía muito em jornal e, pessoalmente, já o tinha visto na Livraria Nacional, na Rua da Imperatriz, onde os escritores se reuniam e eu comprara a Aloisio um dicionário fiado.

Paguei.

“Direto ao assunto”, disse Hermilo. E contou que acabara de fazer uma operação, rara então, de safena. Aqui ainda não fazia. Ele tinha feito em São Paulo, ajudado por muitos amigos, e este era o motivo de ali estar diante de mim. Queria dar uma pequena lembrança a todos que colaboraram.

Eu começara a reiniciar a carreira de pintor deixada no meio, sem ligar para o que fazia sucesso. Resolvi pintar motivos que sempre quis desde menino, sem pensar em vanguarda nem coisa nenhuma. Nem papai nem mamãe queriam que criasse passarinho. Não havia pedido. Eu via os outros meninos cantarem as glórias dos seus cabeças-pretas ou papas-capim, bigodes, caboclinhos, (ou cabocolinhos), curiós, passarinhos de canto. Eu era deslumbrado por passarinhos de plumagem: xexéu, pintor-verdadeiro, guriatã, frei-vicente, saíra-azul, pintassilgo (ou pintassilva), galo-de-campina, cantassem ou não. Comprei até um casal de lambus. Aliás, não sei se casal, porque eram iguais. Agora resolvera pintá-los. Quadrinhos de um palmo. Hermilo apontou as paredes e disse: “Pode ser desses passarinhos”. Explicou que não podia comprá-los. No máximo dar o dinheiro das tintas. Disse-lhe não ser necessário, que aquilo era o meu dia a dia. E fui fazendo no que chegou a um total de uns trinta quadrinhos.


José Cláudio. Pintor verdadeiro, óleo s/ eucatex, 30 x 44 cm, 1971. Imagem: Reprodução

Meses depois, Mané, meu filho, se aproximou de onde eu estava, na ampla sala de jantar. “É aquele homem mais um bando de gente.” Mandei entrar. Eram Hermilo, Adib Jatene, que o tinha operado, uma moça moreninha daqui de Pernambuco que Adib disse só botar a mão num doente depois de ela examinar, o anestesista e outros. “Todos vão comprar quadro”, anunciou Hermilo. Me chamou para o fundo da sala e os outros ficaram ao redor da mesa.

Os quadros agora já eram bem maiores, quase um metro, vários temas. Hermilo virou-se para as visitas e exclamou: “Vejam que quadro magnífico”! E a mim: “Diga baixinho aqui no meu ouvido o preço deste quadro”. Eu nem tinha ideia porque não vendia, não tinha preço de mercado. Avaliei pelo preço de Wellington Virgolino, que fizera parte do Atelier Coletivo e já começava a vender. Me lembro de ter dito: “Sessenta”. Hermilo disse: “É de graça”! E completou alto: “Seiscentos”. O dono do hospital, que também fazia parte da turma, disse: “É meu”! E assim todos, formando em cima da mesa uma tulha de dinheiro como eu nunca tinha visto. O último a que fui apresentado, Renato Gouvêa, marchand em São Paulo, perguntou quanto eu ganhava na Sudene, onde eu trabalhava de ajudante de desenhista. Disse e ele respondeu: “Isso eu pago para você ficar em casa”. Aí acertamos um contrato de exclusividade. Desde esse dia, nunca mais bati ponto, a não ser no cavalete.

Isso na década de 1960. Estamos em fevereiro de 2022. Há alguns dias Renato me telefonou e conversamos um bocado, já em função das minhas noventa primaveras que completo este ano. “Sabe aqueles quadrinhos de passarinhos? Ainda tenho todos. Nunca vendi um!” Isso só fui saber quando fiz a primeira exposição na galeria de Renato anos depois. Na ocasião, Renato me levou para uma chácara, como dizem lá, perto de Campinas. Na casa da fazenda me botou olhando para um corredor sem luz. Lá não tinha luz. E foi-se embora com um candeeiro apagado até chegar na outra ponta do corredor. Aí acendeu o candeeiro e gritou: “Pode olhar”. A sensação foi de vertigem, como a de quem, estando na beira de um edifício, olha para baixo. Esse corredor dava para uma sequência de senzalas, cinquenta ou cem metros de corredor e, no fim, uma sala, como pude ver.

Numa grande parede desta sala pude rever quase todos os quadros de passarinhos. Renato explicou que foi convencendo cada enfermeira, enfermeiro, servente e outros que haviam recebido quadro ou iriam receber se não prefeririam um corte da melhor seda para fazer um vestido, ou o melhor sapato, ou mesmo a quantia em dinheiro, e todos optaram pela troca.

Lembrei de Hermilo em pé diante de mim de roupa branca, gravata, e me ocorreu que, de todos os homens que deram uma alavancada na minha vida, o único que se apresentou sem me haver conhecido antes pessoalmente foi Hermilo. Dizendo a título de apresentação: “Você não me conhece”. Agora, tantas décadas depois, Renato falando nos passarinhos, quem aparece diante de mim, em pé, de roupa branca, paletó e gravata, é Hermilo Borba Filho.

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necessariamente a opinião da revista Continente.

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