A rainha da ciranda
Leia trecho de 'Lia de Itamaracá – Nas rodas da cultura popular', de Michelle de Assumpção, lançado pela Cepe Editora dentro da coleção Perfis
TEXTO Michelle de Assumpção
04 de Março de 2020
Lia de Itamaracá, a Rainha da Ciranda
Foto José de Holanda/Divulgação
[conteúdo na íntegra | ed. 231 | março de 2020]
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LIA DA BEIRA DO MAR
A salvação de uma menina pelas festas de fé e trabalho
Eu sou Lia da beira do mar
Morena queimada do sal e do sol
Da Ilha de Itamaracá
Quem conhece a Ilha de Itamaracá
Nas noites de lua
Prateando o mar
Eu me chamo Lia e vivo por lá
Cirandando a vida na beira do mar
Cirandando a vida na beira do mar
(Eu sou Lia, de Lia de Itamaracá)
A casa do seu Santino de Barros Monteiro era o sobrado mais rico e imponente da orla de Jaguaribe, praia mais popular da Ilha de Itamaracá. Seu paradisíaco litoral ainda não tinha sido descoberto pelos veranistas mais abastados da capital. Assim, a população era formada basicamente pelas famílias dos principais trabalhadores da localidade: pescadores, tiradores de coco, gente da construção civil e pequenos biscateiros. Antes de alcançar o mar, o areal branco era quase totalmente coberto por um coqueiral que ocupava toda a extensão do litoral de Itamaracá. As tardes da menina Maria Madalena Correia do Nascimento se passavam nessa praia praticamente virgem.
Pés enormes afundando na areia, pele preta bronzeada, um corpo já bastante alto para sua idade, com uma ginga forjada pelas ondas do mar, dentes fortes, brancos, e um sorriso largo que se abria para qualquer graça que surgisse. A menina distraía-se vendo a arte dos tiradores de cocos, que trepavam nos altos troncos com suas foices amoladas presas na cintura. Cortavam os cachos lá em cima, os quais chegavam ao chão amarrados cuidadosamente em cordas, para que não se partissem. Com afiados facões, os frutos eram descascados e empilhados na carroceria de grandes caminhões, que seguiam lotados para fábricas de alimentos, tanto as da região quanto as de São Paulo.
Até receber o recado de que a mãe estava à sua procura, a brincadeira da moça girava em torno daquele coqueiral. Algumas vezes ia ao mangue com as amigas. Pescavam siri e caranguejo, somente por folia. Quando dava a hora, voltava correndo e fazia sem reclamar a obrigação que a aguardava na residência de um dos homens mais ricos de toda a ilha, dono daquelas terras todas e do lucro pela venda dos cocos. Dentre lavar os pratos, varrer o terreiro ou limpar os móveis pesados de madeira de lei da casa do seu Santino, a tarefa mais pesada era a de encerar o piso, feito de tijolos crus, avermelhados e muito áspero. Maria Madalena e os irmãos foram ensinados a usar a própria casca do coco para deixá-los brilhando. Esfregavam-na no cimento até doerem as mãos e os dedos roçarem no chão pelo desfazimento da casca. Depois tinham de varrer de novo e retirar os fios da palha que ficavam espalhadas pelo assoalho.
A monotonia e a dureza desses dias eram quebradas pelas festas da padroeira Nossa Senhora do Pilar. Historiadores afirmam que a imagem da santa chegou a Itamaracá no ano de 1787, trazida da Espanha por uma fiel católica. Os moradores fizeram, depois, uma capela para a santa, na atual Praça João Paulo XXIII, mais conhecida por Praça do Pilar, onde passaram a acontecer os eventos. A festa é realizada até hoje no último final de semana de janeiro, sendo o dois de fevereiro o dia oficial, quando é feriado em Itamaracá. A celebração para o santo Bom Jesus dos Passos também fazia parte dos festejos tradicionais na ilha. As comemorações aconteciam no bairro de Jaguaribe, onde ainda hoje mora Maria Madalena, ou simplesmente Lia, como desde pouca idade já era chamada. Ela participava das cerimônias em que as imagens dos santos eram levadas pelos fiéis católicos, por terra, até a Igreja de São Paulo, na praia do Forte Orange.
Na semana seguinte, as peças sagradas eram trazidas de volta para suas igrejas, num cortejo marítimo conhecido como “buscada”. Certa vez, Lia estava numa das embarcações que voltavam acompanhando o barco de Nossa Senhora do Pilar, quando viu uma mulher se desequilibrar, cair no mar, e um pescador também quase morrer ao tentar salvá-la no meio das fortes ondas que ameaçavam a embarcação. No final, foram ambos salvos, mas a partir daquele episódio Lia decidiu que só acompanharia os festejos dos santos em sua etapa por terra. Mesmo porque a parte mais esperada e gostosa de tudo aquilo estava no encerramento, quando a celebração virava festa. Fandangos, reisados e pastoris eram encenados à beira-mar, sob a benção de Nossa Senhora do Pilar, de Bom Jesus dos Passos, em um evento de consagração dos pescadores e ainda de toda a população nativa.
Imagem de 1977 que gerou a foto da capa do primeiro disco de Lia de Itamaracá, intitulado
A Rainha da Ciranda. Foto: Acervo pessoal de Fernando Borges/Reprodução
De origem portuguesa, a tradição do fandango fixou-se mais nas terras brasileiras do Sul, mas também chegou ao Nordeste brasileiro e, em Pernambuco, podia ser assistida em territórios do Recife, Nazaré da Mata, Carpina ou Itamaracá. Na ilha, fortalecido pela identidade do seu povo, que fez da pesca a atividade mais rotineira e sustentável, essa manifestação cultural se inseriu como um costume muito natural, quase familiar. Sua encenação — mais comum nos ciclos dos festejos natalinos — mescla música, dança, lendas, orações, numa ode ao marujo e suas aventuras em alto-mar. O tablado para a brincadeira era montado, geralmente, em frente à igreja, enquanto os personagens, vestindo fardas de oficiais da Marinha e de marinheiros, cantavam e dançavam ao som de uma orquestra formada por viola, violão, cavaquinho e, por vezes, banjo.
No cortejo de abertura entoam-se cantos e recitais sobre a difícil vida no mar. O enredo gira em torno da seguinte narrativa: por conta de uma tempestade, uma embarcação passa anos vagando no mar e, um dia, quando já quase não havia mais comida para alimentar a tripulação, um deles é escolhido para resolver como matar a fome dos demais. Mas, antes de acontecer o pior com os famintos, Nosso Senhor Jesus Cristo, driblando as armadilhas do Diabo, faz o milagre de salvá-los, fazendo com que cheguem sãos e salvos à Espanha.
Lia assistia ao espetáculo ao lado dos amigos pescadores da sua vizinhança, e se divertia muito esperando pela parte quando — já no final da encenação — o brincante que representava o personagem responsável pela comida para a tripulação deixava que os espectadores pegassem um pouco das bolachas que trazia embaladas em sacos. Era a folia derradeira e geral.
Assim como o fandango, Lia também presenciou e apreciou a apresentação de muitos pastoris na ilha. Foram as primeiras melodias de que tem lembrança, e provavelmente as primeiras canções que aprendeu a cantar. Nunca fez parte de nenhum grupo, mas brotava nela, desde aqueles momentos, por volta dos doze anos de idade, uma enorme convicção e vontade. Levava jeito. Tinha uma voz firme, forte e afinada, e por isso não deixava ninguém admirado quando afirmava o que queria ser na vida: uma artista, cantora. Eram, então, apenas as loas dos fandangos – os versos em que se homenageia alguém ou um episódio – e as canções de pastoril que Lia cantava naqueles tempos, em Itamaracá, em suas tardes livres do trabalho infantil pesado, alimentando e fortalecendo a determinação de um dia se apresentar ao público como artista.
Eu me balançando naquelas palhas, eu queria ser era uma cantora para ir para os parques de diversão. Correr naqueles parques! Quando eu vinha para casa, minha mãe já estava com o cipózinho para dar nas minhas pernas. — Menina, eu tava brincando, oxe, e precisa bater é? — Eu gostava muito de ver a pessoa cantar, eu amava e dizia — Eu quero ser uma cantora para estar no meio desse povo tudo. Eu tenho uma irmã que ela dizia: — Lia, tu vai cantar mesmo no meio desse povo todinho para esse povo tá olhando para tua cara? — Eu digo, oxente, o que é que tem? Eu vou cantar! Jesus Cristo não agradou a todos. E eu vou cantar neguinha, Deus sabe o remédio, mas eu vou.
Para o povo negro e pobre da Ilha de Itamaracá, diversão era sinônimo também de frequentar as rodas de coco. Sua mãe, Matilde Maria da Conceição, além de alguns dedinhos de cana, gostava também de relaxar da labuta indo dar umas boas umbigadas nesses cocos. A mulher havia chegado a Jaguaribe carregando sete filhos, contando com Lia. O patrão era o seu Santino, proprietário de terras que, precisando de uma doméstica para fazer de tudo na casa, deu emprego a Matilde, aceitando a mulher com todos os seus filhos. Abrigou todos eles numa casinha que tinha num sítio próximo. Matilde e sua prole passavam o dia na casa-grande do patrão. Enquanto Matilde cozinhava e cuidava da cozinha, os meninos varriam o quintal, estendiam as roupas no varal, limpavam os móveis ou corriam na venda para comprar algo que estava faltando na casa. Havia sido um contrato de boca com Seu Santino. O que a mãe recebia só dava mesmo para alimentar os filhos e comprar umas peças de pano, que ela mesma costurava para fazer as roupas de todos eles.
O trabalho na casa do patrão era duro, mas ele era considerado um homem bom e generoso, pois aceitou Matilde com seus sete filhos, justamente quando a mulher estava passando por sérias dificuldades para alimentar a família. A mulher havia finalmente deixado para trás o pai dos filhos, que nunca assumiu o relacionamento e a mantinha como segunda esposa, a amante, “a outra”, para não dizer coisa pior, como muitas vezes foi difamada na boca do povo fofoqueiro da antiga vizinhança.
A casa de Seu Santino, patrão da mãe de Lia, considerado por ela como seu pai de criação.
Foto: Ricardo Moura/Divulgação
Minha mãe era simplesmente uma empregada doméstica, meu pai um agricultor. Dona Matilde da Conceição e seu Severino Nicolau Correia do Nascimento. Meu pai era casado com outra mulher, nunca viveu com a gente. Duas famílias. Com a primeira, ele teve onze filhos e, com minha mãe, sete. Registrou todos dele. Mas ele era lá e lô, quando uma paria lá, outra embuchava cá. Ele às vezes vinha ver a gente. Ou a gente ia lá e ele dava macaxeira, inhame, batata, amendoim, o que ele plantava dava à gente. Minha mãe era uma mãe amiga, amada, um amor de mãe. Quando ela se separou mesmo do meu pai e a gente deixou de receber ajuda dele, ela veio então pra casa dessa família que tava precisando de uma pessoa para trabalhar. Ela disse que não podia deixar os filhos sozinhos, então mandaram trazer a gente. A gente passou então a morar nessa casa.
São poucas as lembranças que cultiva dessa época. Lia não gosta muito de lembrar, ou não lembra mesmo, por isso não se demora nas memórias, quando perguntada. Não sabe nem muito bem quantos irmãos nasceram antes dela. Apenas que veio ao mundo nesta primeira casa, na praia do Sossego, no dia 12 de janeiro de 1944. É provável que o pai não estivesse presente, como não esteve em muitas outras ocasiões.
A família dependeu por muitos anos da boa vontade do seu Severino, agricultor de subsistência. Quando ele faltava na obrigação, Dona Matilde ia até o mangue, mas comida não deixava faltar na mesa da família. Voltava de lá com o cesto cheio de ostras, mariscos e caranguejos que ela mesma pescava, com a ajuda das crianças. Preparava caldos, ensopados e pirões, a base da alimentação das crianças e também da mãe que, talvez por isso, tinha sempre os peitos cheios de leite, que Lia soube aproveitar bem até os sete anos de idade.
Eu mamei até os sete anos. Era leite viu, neguinha! Misericórdia. Ela gostava de um cachimbo, ela fumava um cachimbo. Ela gostava de tomar uma cana, tomava dois dedinhos de cana. Ela pegava a esteira, botava no chão. — Traz meu tição de fogo ai Lia. Eu dizia: — já vou mãe! Doida que ela deitasse para eu ir mamar debaixo da teta dela para puxar. O povo dizia: — Matilde, essa menina vai te matar! — Que matar que nada, ela não come nada, eu vou fazer o que? Eu vou jogar o leite fora? Não pode. Eu dava o tição de fogo, ela se sentava, ali, dava as fumaçadas dela, quando ela pegava no sono eu dizia: — É agora! Quando ela vinha tomar continência do tempo, já estava os peitos tudo seco. A gente não tinha um prato para comer, a gente não tinha um copo para tomar água, nada. Se dormisse, ela fazia aquelas camas de vara. Aqueles sacos de açúcar a gente lavava direitinho, era lençol. Até roupa ela fazia para a gente vestir. Porque não tinha dinheiro para comprar roupa para vestir.
Lia tinha por volta dos dez anos de idade quando sua mãe, já cansada de ter que sozinha dar conta de todos os filhos — seu Severino faltava cada vez mais com suas obrigações —, foi chamada para trabalhar na casa do seu Santino, em Jaguaribe, e mudou-se pra lá com toda prole. Lia apegou-se tanto à família do patrão da mãe que passou a chamar seu Santino como as filhas legítimas do homem: painho. O patrão retribuía a consideração. Cobrava que a menina fosse à escola e que estivesse presente nas cerimônias e orações que promovia na pequena capela particular, construída nos fundos da residência. As filhas do Seu Santino pareciam também não apontar as diferenças entre elas e Lia e seus irmãos. A consideravam, como até hoje, sua irmã. O carisma da menina conquistou a família e, algum tempo depois, ela passou a morar somente nesta casa e era tratada, por Zeza e Socorro, netas do Seu Santino, como se uma delas fosse. Não sentia diferença por ser negra ou filha da empregada da casa.
A gente comia tudo junto, da mesma comida que minha mãe preparava para casa toda. A gente sentava na mesa e não tinha essa de só comer depois que os ricos comessem. Lá não tinha essas besteiras, tanto que até hoje quando encontro Zeza e Socorro elas me chamam de minha irmãzinha. Elas têm um orgulho danado de mim.
A casa dos Santino — onde Dona Matilde trabalhou até o fim dos seus dias, sem se aposentar, pois nunca contribuiu com a previdência — foi a primeira escola de Lia. Além dos afazeres domésticos e culinários (que depois lhe renderiam o ofício de merendeira em duas escolas públicas da ilha), Lia sentiu-se estimulada pelo pouco de manifestação cultural que recebeu das festas de rua e da escola que só frequentou até o primeiro ano do primário.
Pescador mesmo só tive um irmão. Eu ia pra maré pegar siri só por folia mesmo. Ou ficava vendo os pescadores trabalharem. Eles me chamavam Lia Maria, Maria Lia. Era assim. Ou então cantando alto dentro de casa, enquanto cuidava das obrigações, que era para quem passasse me ouvisse cantar.
QUEM DEU A CIRANDA DE LIA?
A consagração de uma cirandeira por uma canção, e vice-versa
Eu estava na beira da praia
Ouvindo as pancadas
Das águas do mar
Essa ciranda quem me deu foi Lia
Que mora na Ilha
De Itamaracá
(Quem me deu foi Lia, de Antônio Baracho)
Maria Madalena não lembra de saber o que era ciranda na época de sua infância e juventude. Conta que simplesmente não havia a brincadeira na ilha até que ela mesma (quando já nacionalmente conhecida por Lia de Itamaracá) começasse a promover as rodas, no bar de Dona Creuza, o Sargaço, onde também preparava os pratos do cardápio. Mas isso foi muito tempo depois de quando Lia começou a sonhar em ser uma artista. Muitas ondas levaram e trouxeram seus amigos pescadores, até que Maria Madalena virasse Lia de Itamaracá, a cirandeira mais famosa do Brasil e do mundo todo. Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal de Pernambuco, Patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco. Uma lenda, um mito que até os dias atuais intriga os mais incrédulos. “Lia existe mesmo?”. “Tá viva?”. Eram as perguntas que passaria a ouvir, e ainda ouve (um pouco menos, é verdade), até hoje.
O fato é que, pelo menos uns dez anos antes de saber da existência de Lia de Itamaracá, o Brasil inteiro cantou uma canção que estourou em todas as rádios do país, cujo refrão dizia assim “essa ciranda quem me deu foi Lia, que mora na Ilha de Itamaracá”. Foi o primeiro registro fonográfico de uma ciranda, em 1967, na voz da cantora pernambucana Teca Calazans, que havia recebido um convite da gravadora pernambucana Rozenblit e pôde finalmente realizar o sonho de gravar seu primeiro disco. No compacto simples, entraram, de um lado, Aquela rosa (de Geraldo Azevedo e Carlos Fernando) e, do outro, o medley Cirandas, que foi creditado como “adaptações” de canções do gênero colhidas em pesquisas feitas pela própria Teca.
Nas gravações posteriores, originadas da mesma música, os registros foram variados. Ciranda de Lia; Essa ciranda quem me deu foi Lia; ou Quem me deu foi Lia são a mesma canção, gravada pela primeira vez por Teca Calazans, cujos quatro únicos versos cruzaram as fronteiras do país. É interessante notar que, nesse primeiro registro, na voz de Teca, a letra cantada apresenta uma pequena variação. Ela a gravou assim: “Estava na beira da praia / ouvindo as pancadas das ondas do mar / essa ciranda quem me deu foi Lia / que mora na areia de Itamaracá”. Cantava “areia”, em vez de “ilha”. Em todos os registros posteriores, o verso cantado passou a ser: “que mora na ilha de Itamaracá”.
A gravadora não acreditava muito nas cirandas, no sentido comercial, pois apostava mais no sucesso da música dos já famosos Geraldo e Carlos Fernando. Talvez os executivos não tivessem a percepção das ruas, do gosto do povo, uma vez que Teca havia experimentado essas cirandas em shows, desde uns dois anos antes, como na apresentação de enorme sucesso que fez numa faculdade de Olinda. E mais além: as cirandas, na qualidade de manifestação, já atraíam um grande número de pessoas em rodas que estavam acontecendo nas periferias do Grande Recife, onde Teca afirma ter recolhido a canção. É este o termo, “colhida”, que pesquisadores do folclore utilizam ao registrarem canções ou manifestações que são transmitidas de forma oral sem que se saiba o dono, quem criou, quem cantou pela primeira vez.
Teca — assim como dezenas de outros artistas, intelectuais e educadores — fazia parte da juventude do Movimento de Cultura Popular (MCP), criado em 1960. De influência francesa (movimento Peuple et Culture – Povo e Cultura), seu propósito era conscientizar politicamente as massas — por meio do que eles chamavam de alfabetização e educação de base — e preparar o povo para uma postura de participação mais efetiva na vida política do país. Para isso, se estruturava em alguns eixos e, entre eles, aliás o mais atuante, estava o Departamento de Formação e Cultura.
Lia de Itamaracá em apresentação no festival No Ar Coquetel Molotov (2019).
Foto: André Zahar/Divulgação
Paulo Freire chegou a dirigir a divisão de pesquisa do MCP. O pintor Abelardo da Hora comandava o setor de artes plásticas e artesanato. Teca Calazans fazia parte do departamento de Rádio, mais precisamente da supervisão das escolas radiofônicas. Foi desse lugar que a cantora e pesquisadora — já sabendo da existência das cirandas no município de Abreu e Lima — registrou várias canções, com seu próprio gravador, numa noite em que contou com a participação de diversos cirandeiros. Ela acredita que tenha sido no ano de 1965.
Não era uma festa, era um brinquedo que eles faziam sempre. Na fita gravada, os cantores puxavam as cirandas, eram homens, mas tinham também mulheres cantando, todo mundo cantava e rodava de mãos dadas. Foi depois do golpe militar, 1965, 1966, antes de eu gravar o disco. Eu já pensava em fazer uma seleção dessas cirandas para cantar. Cantei pela primeira vez num festival de Bossa Nova no Recife, numa faculdade na Boa Vista. Não lembro o nome… Fafire? Foi um sucesso! E quando apareceu o convite da Rozenblit, selo Mocambo, para gravar o disco foi o sonho. Gravei essa mesma seleção que tinha colhido em Abreu e Lima, e também a música de Geraldinho Azevedo. Você pode notar que a ciranda não era a vedete. É o lado B do 45 rotações. A Rozenblit estava apostando na música de Geraldinho Azevedo.
De Paris, onde mora desde 1969, Teca conta que ainda guarda a fita com a gravação de Quem me deu foi Lia daquela noite com os cirandeiros em Abreu e Lima. Já o disco que ela gravou poucos depois, para a gravadora Rozenblit, pode ser facilmente encontrado no Youtube.
Entre os milhares de ouvintes que se deliciaram ao som daquele embalo gostoso, que convidava para uma roda em que todos podiam entrar e dançar de mãos dadas, estava Maria Madalena, a Lia (ainda não de Itamaracá).
Lia não tinha rádio em casa, mas os seus conhecidos davam gritos de alerta ao ouvirem a canção que se espalhava rapidamente nas ondas radiofônicas: “Lia, corre que a tua música está tocando”. Ela ia conferir, mas quando chegava perto, a música tinha acabado. Outro dia, e de novo, “Lia, tua música tá passando”. Lá corria Lia outra vez para perto do rádio, sem nunca conseguir ouvir que música era aquela que o povo tanto dizia que era dela. Até que uma vez alcançou a transmissão e pôde conferir: sim, era sua música tocando no rádio!
A história contada por Lia, presente em dezenas de entrevistas que deu ao longo dos anos, com algumas variações, é a de que Teca Calazans teria ido veranear em Itamaracá, no início dos anos 1960, e se hospedou próxima à casa onde ela morava e trabalhava, a casa do Seu Santino. Certo dia, Teca teria ouvido Lia cantar no quintal e se admirou com aquela voz. Chamou Lia e foram então para a beira do mar. Lá, encostadas numa jangada, compuseram juntas Quem me deu foi Lia. Teca, segundo Lia, levou um gravador, um violão, e registrou tudo o que a cirandeira cantou. Depois, foi embora e não se viram mais. Alguns anos mais tarde, Lia recebia o recado do povo de sua casa e da vizinhança: “Lia, corre aqui que tua música está tocando no rádio…”. Conta que foi assim a ocasião na qual soube que a canção composta e registrada na beira da praia por Teca Calazans havia sido gravada e se tornado sucesso em todo o país.
Entre a gravação de Teca, em 1967, e a “descoberta” de Lia de Itamaracá por todo o Brasil, através da mídia, dez anos se passaram. Pois foi só em 1977, quando gravou seu primeiro disco — Lia de Itamaracá, a Rainha da Ciranda —, que a artista deixou de ser apenas a personagem de uma música de sucesso nacional. O povo ficou sabendo, com o disco, que existia uma Lia de verdade. Uma cirandeira que, mais do que ter inspirado a canção, teria sido sua verdadeira compositora. Assim afirmava, e afirma até hoje, Lia de Itamaracá.
Pelos relatos da própria Lia — das vezes em que fui até a Ilha entrevistá-la para este livro — não existia ciranda na ilha até meados dos anos 1970. Foi quando ela começou a frequentar os festivais promovidos pela Prefeitura do Recife, manifestações que foram o primeiro e o principal fomento à ciranda no estado, para aprender como se fazia. O movimento todo começou alguns anos antes, no bar de Dona Duda, na praia do Janga, litoral norte de Pernambuco. O local, reduto dos maiores cirandeiros do estado, recebeu em 1970 o primeiro festival, que só depois passou a ser feito no Pátio. Lia admite que foi lá onde aprendeu a cantar, ou seja, por volta de 1973 ou 1974. Na sua infância, afirma, só ouvia e cantava músicas de pastoril. Em Itamaracá a ciranda só chegou com a própria Lia, em 1974, quando começou a cantar no Bar Sargaço, espaço artístico em que, depois de Dona Duda, já no final da década de 1970 até meados dos anos 1980, se transformou no reduto mais concorrido do gênero, em Pernambuco.
João da Guabiraba e Neris eram os cantores que cantavam no Pátio de São Pedro. Eu não ia pra dançar, eu ia para aprender com eles, (saber) como era o andamento, estudava. Encaixar na cabeça como era. Nessa casa que eu era criada, meu pai de criação ia pagar um professor de música, mas não deu tempo. Ele faleceu e não deu tempo. Mesmo assim, as melodias eu ia ouvindo e aprendendo. Aqui na ilha não tinha cirandeiro. E eu botei na cabeça que era ciranda que eu ia cantar, era ciranda que eu queria. Foi um dom que Deus me deu.
Teca conta que ficou furiosa quando soube da história contada por Lia de que a tal ciranda havia sido feita em parceria com a cirandeira, numa tarde em Itamaracá, e depois registrada sem os devidos créditos.
Nunca passei tempos ou fui veranear na ilha de Itamaracá! Eu só conheci a ilha depois que voltei da França, em 1980. E eu nunca falei com Lia. Em princípio, no folclore, as músicas não têm dono, são uma criação do povo. O dono é aquele que organiza, puxa o canto e cede o lugar para a brincadeira. Se outros participantes do brinquedo querem puxar um verso, eles são livres, cantam e todo mundo segue. Mas, sobre essas cirandas de Abreu e Lima, depois disso tudo, se essa música tiver uma autoria é do Baracho. A ciranda é um folclore recente. A primeira pessoa que falou sobre a ciranda em Pernambuco foi o Padre Jayme Diniz, nos anos 1950.
Baracho, a quem Teca se refere, é Antônio Baracho, considerado por todos, e mesmo por Lia, como o grande mestre da ciranda do estado. A própria Lia, no primeiro disco de 1977, aceitou dar a Baracho os créditos de Quem me deu foi Lia. Por outro lado, contrariando uma certa dedução cronológica dos fatos, continuava a afirmar que esteve com Teca naquela praia, lá pelos primeiros anos da década de 1960, solfejando as frases da canção famosa, que foram aproveitadas pela compositora.
Minha filha, essa música é uma polêmica muito grande. Tão dizendo que a música não é de Lia, que é de Baracho, mas ele gravou primeiro, registrou. Eu cantarolei a música para Teca Calazans, mas ficou em domínio público, eu não tinha experiência para nada naquela época. Registraram e gravaram. Ninguém recebeu direitos autorais. Eu não recebi, Baracho não recebeu. Teca Calazans diz que também não recebeu nada.
Lia cantando ciranda debaixo do Palhoção (Centro Cultural Estrela de Lia), em Itamaracá.
Foto: Léo Caldas/Divulgação
De certa forma, a cirandeira ajustou parte das contas dessa “polêmica” ao convidar, alguns anos depois, Severina Baracho, ou Dona Biu, e Dulce Baracho, filhas de Antônio Baracho, para que viessem integrar seu conjunto. As “Filhas de Baracho”, que fazem apresentações independentes sempre que são convidadas (geralmente em festas juninas realizadas pelo Governo e Prefeitura), participam dos shows de Lia, viajam nas turnês e participam das gravações. No palco, Lia muitas vezes faz uma pausa e dá espaço para que as herdeiras de Baracho mostrem seu repertório, praticamente montado com base nas canções do pai.
As três artistas desenvolveram tanto amizade e cumplicidade quanto respeito mútuos. Sabem o desafio que é ser mulher, negra, pobre, e ainda assim querer viver da arte que produz. Somaram as forças. Contra diversas probabilidades, deu muito certo. Vê-las juntas no palco é a prova de que preferiram passar uma borracha na grande polêmica. Longe de constar como história mal esclarecida, tudo se constitui como um marco da criação da artista Lia de Itamaracá e de como sua imagem passou a fazer parte da memória afetiva do povo, que se enxerga na cultura mais tradicional.
A história de Lia é como um cordão que deixa as mãos que fazem ciranda ainda mais unidas. Lia cresceu com a ciranda, e a ciranda cresceu com Lia. Juntas, formam uma manifestação que carrega informações de tempos antigos. De pisada em pisada, a cada giro da roda, Lia representa a história dos artistas populares do Brasil; mestres da oralidade, generosos (ou ingênuos) em termos de sua propriedade intelectual, detentores e transmissores do saber para as futuras gerações. Não saberíamos nada sobre Lia nem da história de seu povo simples, de sua dança ancestral, seus amores, valores e crenças, não fosse sua narrativa sobre aquela tarde em que, na beira do mar, encostada numa jangada, teria soletrado as frases de uma ciranda que reverbera até hoje em nossos ouvidos:
Eu estava na beira da praia
Ouvindo as pancadas da onda do mar...
Essa ciranda quem me deu foi Lia
Que mora na Ilha de Itamaracá...
Perguntada sobre o porquê de ter escolhido ciranda para cantar, dentre todas as manifestações existentes na época, inclusive às que conheceu desde cedo, ainda jovem na ilha, Lia não hesita em responder:
Foi Deus, minha filha, um dom que Deus me deu!
Que importa hoje que a resposta de Deus aos anseios da menina que queria ser artista tenha chegado pelas ondas do rádio, na voz de uma outra cantora? Teca Calazans, após a gravação, conta que seguiu para o Rio de Janeiro e, em 1969, mudou-se de vez para Paris, exilando-se como fizeram dezenas de artistas que deixaram o Brasil após o Golpe Militar de 1964. Mora até hoje na França. Teca afirma que só foi conhecer a ilha de Itamaracá anos depois, em 1980, quando voltou para uma breve visita ao Recife. Na época, chegou a fazer alguns shows em bares e teatros da capital. A visita de Teca ao Recife, naquele ano, foi amplamente divulgada pelos jornais. Em livros, dissertações de mestrado, artigos e reportagens, a história que se conta sobre Lia é a de que desde os 12 anos de idade ela canta ciranda. Prevalece ainda a narrativa de que houve a parceria com Teca Calazans na canção que a lançou para o mundo.
Só recorrendo mesmo ao divino para explicar como uma mulher, pobre, negra, morando numa ilha — portanto, praticamente isolada do centro onde estavam acontecendo as movimentações em torno da produção cultural e do mercado das artes, incluindo as populares — se destacaria no seio de uma tradição secular como é a ciranda, que simplesmente não existia na história de sua família nem de sua comunidade. E, quando feita, era liderada basicamente por homens.
Lia não seria Lia de Itamaracá sem a narrativa idílica da canção escrita numa tarde à beira mar, encostada numa jangada, com ondas que vinham e apagavam as letras escritas da areia. Sim, essa história pode simplesmente ter nascido junto com o sonho e desejo enorme de ser uma cantora famosa. Pois, se a própria Lia afirma só ter aprendido ciranda quando passou a frequentar o Pátio de São Pedro, o que só pode ter ocorrido a partir 1973, quando começaram os festivais, é pouco provável, quase impossível que, antes de 1967 (quando o disco de Teca foi lançado), ela já estivesse compondo cirandas em Itamaracá.
Foi esta a narrativa, no entanto, que construiu a Lia que conhecemos e a trouxe até aqui, como uma rainha da ciranda. Talvez não existisse Lia de Itamaracá se Baracho não tivesse composto a canção e se Teca não a tivesse colhido e gravado em 1969. Por outro lado, a composição simplesmente não teria chegado até os dias de hoje, como um hino do gênero, um ícone da canção popular, não tivesse Lia a consagrado, com sua voz e sua imagem. Não é fácil ir tão longe quando se está ilhado. Lia construiu sua ponte, por onde transita soberana enquanto transporta sua história para além dos limites e fronteiras do seu território.
Capa do livro Lia de Itamaracá - Nas rodas da cultura popular.
Imagem: Reprodução
MICHELLE DE ASSUMPÇÃO, jornalista, atuou em cadernos culturais dos principais jornais pernambucanos e acompanhou o surgimento da cena Manguebeat e as movimentações do cenário artístico do Estado. É gestora pública em atividade na Comunicação da Secretaria de Cultura de Pernambuco e na Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico (Fundarpe).