Lançamento

O som e a Sopa

Leia trecho do livro 'Soparia: de boteco a palco de todos os sons', de José Teles, lançado este mês pela Cepe Editora

TEXTO José Teles

04 de Outubro de 2023

Roger de Renor na Soparia

Roger de Renor na Soparia

Foto Acervo pessoal/Cortesia

Pina, o polo da boêmia

O que se passou a chamar de Polo Pina — um trecho entre o início da Avenida Herculano Bandeira e o início da Avenida Boa Viagem, estendendo-se ao Oceania, o popular Azulzinho, na entrada da Brasília Teimosa — era frequentado por boêmios há décadas. Quase em frente à Soparia, por exemplo, estava o restaurante Pra Vocês (fundado em 1938), especializados em frutos do mar, com predominância de peixes, como a maioria dos estabelecimentos daquela área: o Maxime, a Peixada do Lula, o citado Azulzinho, que ainda era meio cabaré, meio boteco (havia um movimentado baixo meretrício na Brasília Teimosa até os anos 1970). Ali, a pièce de résistance do cardápio era a revigorante sopa de cabeça de peixe, o conforto dos boêmios, capaz de levantar freguês em coma alcoólico. Uma espécie de pronto-socorro de plantão. O estabelecimento funcionava a noite inteira. A profusão de peixarias se dava porque o Pina foi colônia de pescadores até parte dos anos 1970; quando as casas foram vendidas, definiu-se a Avenida Domingos Ferreira, que se tornou importante via ligando o Pina a Boa Viagem, com consequente valorização da área e a construção acelerada de edifícios.

Mas nem só de peixe viviam os estabelecimentos do Pina. Até os anos de 1980, havia requisitados restaurantes de feijoada, referência obrigatória no roteiro gastronômico da cidade, sendo a do Jaime uma das mais conhecidas. O autor deste livro viu uma vez o poeta João Cabral de Melo Neto deliciando-se com a feijoada do Nadinho, outra bem conhecida no local, com as necessárias “lapadas” de cachaça.

ARREDORES

A grande quantidade de grupos levou ao surgimento de espaços para abrigá-los e o reaproveitamento de outros já existentes, a exemplo do Clube Atlântico e do Mercado Eufrásio Barbosa, ambos em Olinda. A Galeria Joana d’Arc, onde funcionou durante anos um dos mais conceituados colégios da Zona Sul, fundado em 1931, e que fechou as portas no final dos anos de 1980, testemunhou alguns momentos importantes daquela cena dos anos de 1990. Liliana Pinheiro, cujos pais fundaram a escola, teve o bom senso, e a cultura agradece, de preservar o local, transformando-o em uma galeria, com 20 lojas. Surgiram butiques, lojinhas transadas e, logo depois, bares.

O primeiro deles, o Satchmo, de Roque da Silva, um baiano, também apresentador da Rádio Rock, de muita importância para a cena musical que se expandia em progressão geométrica. Chico Science foi frequentador assíduo do local. No happy hour, o Satchmo (apelido do seminal jazzman Louis Armstrong) tocava jazz, MPB e novos nomes do pop rock nacional. Foi no Satchmo que Lenine lançou o CD Olho de peixe (em parceria com Marcos Suzano). Ali também se promoviam festas descoladas com DJs. A turma do mangue fez muita discotecagem no bar. Chico Science, claro, foi um deles. E mais de uma vez.

Em 1992, rolou na galeria um show histórico, o citado Mangue Feliz, com Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, na véspera do Natal daquele ano. Essa frequência dos mangueboys atraiu seu público, àquela altura já numeroso, e Joana d’Arc tornou-se uma espécie de padroeira involuntária do manguebeat. O Satchmo logo seria sucedido pelo Pin Up, de Claudina Lima e Roque da Silva. “A proposta é criar um espaço para jam session, DJs convidados, shows com bandas, performances e oficinas artísticas”, explicaram os proprietários, que alertavam que o Pin Up não tocaria baticum eletrônico — house ou electronic body music (EBM): “Isto é para outras freguesias”, diziam Roque e Claudina, citando locais onde se encontraria música eletrônica: “Coluna Café, Misty, Overpoint e Balacuda”. O Pin Up seria sucedido pelo Boato, esta uma boate assumida.

Registro da comemoração de cinco anos de funcionamento da Soparia.
Foto: Acervo Roger de Renor

Mais bares iriam surgir no local. Um deles era o Boratcho, de Valdélio Carvalho, tatuador oficial do manguebeat, como ficou conhecido naquela época. Começou a aprender a arte da tatuagem quando ainda morava em Garanhuns, sua cidade natal. Aperfeiçoou o ofício quando veio para o Recife, até que abriu um estúdio no Arte Viva — na Avenida Conselheiro Aguiar, no bairro de Boa Viagem —, uma academia de dança que se tornou o primeiro e principal espaço para as bandas que foram surgindo na cidade no final dos anos 1980 e início dos 1990. O espaço era dirigido por Lourdes Rossiter, chamada carinhosamente de “A Bruxa do Rock”, porque, naquela época, já era coroa, sobretudo para os músicos que tocavam no salão do Arte Viva, boa parte adolescentes.

Esses grupos musicais reforçariam as hostes do manguebeat, como Mendigos da Corte e Orla Orbe (banda que tinha Chico Science, que ainda era conhecido como Francisco França, no vocal). Esses projetos tinham influências do BRock e de alguns grupos gringos da época, e predominava o pop. Valdélio conheceu os músicos e, mais tarde, passou a tatuá-los: “Lembro que uma noite foi tocar lá a Cruor. A Turma da Lama compareceu e derramou uma substância tóxica pelo salão. O pessoal teve que tirar os instrumentos para que se lavasse o espaço”. A Turma da Lama a que ele se refere era uma espécie de “Turma da Zona Norte”, do gibi de Bolinha (personagem de quadrinhos muito popular até os anos de 1970, hoje esquecido), que aterrorizava, neste caso, a Zona Sul. Grosso modo, foi a versão pernambucana dos skinheads ingleses.

Quando o manguebeat já ganhava as páginas dos jornais, se solidificava, os músicos se tornaram clientes de Valdélio: “Tatuei muita gente daquela turma. Fred Zero Quatro, Bactéria, que quis uma tattoo de Bart Simpson, de quem era fã. Tatuei Otto, com uns tambores nas costas. Quando ele lançou o disco Samba pra burro, colocou meu nome na dedicatória, como o tatuador oficial do manguebeat. Tatuei todo mundo, músicos, roadies, o amigo do amigo do músico. Fiz todas as tatuagens de Roger. Era legal essas de Roger, porque ele vinha com desenhos feitos pela Lia Letícia.”

No final da década de 1990, Valdélio afastou-se da tatuagem e resolveu abrir um bar mexicano, o já citado Boratcho, que durou 12 anos: “O local era pequeno para shows, mas havia sempre um DJ. Renato L foi o DJ do Boratcho por cinco anos. Ele e mais um convidado, então todo mundo passou por lá, mas já foi depois da Soparia, quando Roger ainda mantinha o Pina de Copacabana, na Rua da Moeda. O nome vinha do espanhol para bêbado, borracho, só que com um t”, conta Valdélio.

No final de 2000, o autor deste livro lançou a primeira obra nacional que tinha entre os temas o manguebeat e outras cenas musicais pernambucanas, Do frevo ao manguebeat, publicado pela Editora 34, de São Paulo. Foi nessa noite que Silvério Pessoa fez a sua estreia solo, também o primeiro show do disco Bate o mancá — O povo dos canaviais, um repertório formado por forrós e cocos gravados por Jacinto Silva, alagoano de Palmeira dos Índios, uma lenda do forró que morava há anos em Caruaru, tirado do ostracismo pelo produtor Zé da Flauta e, em seguida, pelas regravações de Silvério Pessoa.

Algo que até então não contei publicamente: o livro integrava uma soberba coleção de histórias e biografias da MPB, parceria da Editora 34 com o grupo Pão de Açúcar, coordenada pelo jornalista carioca Tárik de Souza. A editora sugeriu Alceu Valença para o show do lançamento. Só que Alceu era alvo constante de alfinetadas por uma parte do pessoal do manguebeat. Como a turma do manguebeat compareceria em peso ao lançamento, poderia rolar uma saia-justa entre eles e Alceu. Sugeri que contatassem Silvério Pessoa, que estava badalado depois de sua saída do Cascabulho. Ele fez um show de alta octanagem naquela noite concorrida.

A Galeria Joana d’Arc foi uma dádiva para a efervescência cultural que fermentava no Recife na década de 1990 e perdura até os dias atuais. Ali, o hoje incensado cinema pernambucano começou a se movimentar. Lírio Ferreira, Paulo Caldas, Cláudio Assis e outros tinham um escritório numa sala do segundo pavimento da galeria. Ali foi lucubrado o filme Baile perfumado. Pela mesma época, no bairro da Madalena, na avenida Real da Torre, foi aberta uma casa noturna, a citada Balacuda, pensada como uma espécie de danceteria, com amplo espaço, e que seria mais um palco para a nova música da cidade.

O jornalista, DJ e ex-secretário de Cultura do Recife Renato Lins, ou Renato L, um dos fundadores do movimento mangue, relata: “Tenho uma memória muito nebulosa desse período, naqueles moldes de que se você lembra é porque não viveu. Tenho uma vaga lembrança de ter sido um dos últimos a sair da Soparia, no último dia de funcionamento do bar. Me lembro de me despedir do espaço”. Sua atuação no mangue aconteceu mais nos bastidores. Foi o Ministro da Informação do Manguebeat. O título pomposo era uma tiração de onda, espelhada na International Zulu Nation liderada por Afrika Bambaata, cujo Ministry of Information era TC Izlam.


Acervo Roger de Renor

Renato L foi um dos DJs mais atuantes dos anos 1990, discotecando em dezenas de festas, apresentando a muita gente a nova música eletrônica daquela década. Já entrando nos anos 2000, foi DJ residente no Boratcho. Participou de outras ações do mangueboys, uma delas a badalada festa natalina que ficou na memória dos que compareceram àquela noitada na galeria: “Em 1992, fizemos a festa de Natal Mangue Feliz na Galeria Joana D’Arc. Deu umas 300, 400 pessoas. Entre elas, formadores de opinião da cidade. Consideramos um sucesso. Foi toda feita às nossas custas, sendo eu mesmo o bilheteiro. No ano seguinte, aconteceu a primeira Mangue Tour, quando seguimos para o eixo do Sudeste”.

Renato L era presença constante no périplo compreendido entre a Galeria e a Soparia: “Aquele espaço do Pina era muito frequentado por nós, com eventuais paradas no Kibe Lanches, com suas festas LGBTQIA+. Hilton Lacerda foi quem trouxe a subcultura gay do Recife para o pessoal do manguebeat. Lembro que eu e Marcelo Coutinho fomos jurados de um concurso chamado Garoto Explosão”.

O citado Kibe Lanches estabelecera-se ali, na esquina das avenidas Herculano Bandeira e Conselheiro Aguiar, vizinho do Teatro Barreto Júnior, muito antes da eclosão do manguebeat. Foi considerado o melhor ponto de comida árabe da cidade. Com fachada careta, convencional, nos fundos da lanchonete funcionava um salão, com luz negra, globo no teto, meio trash, mas um dos poucos ambientes gays da Zona Sul.

Renato L teoriza sobre o que atraiu os mangueboys e manguegirls para aquela área do Pina: “Por uns seis ou sete anos, fiz no Boratcho a festa Sem Noção, que acontecia de novembro até uma semana antes do Carnaval, sempre às quintas-feiras, no quintal da Galeria Joana D’Arc. A discotecagem era eclética, um reflexo da produção de Pernambuco naquele momento, e misturava Mestre Ambrósio com Fatboy Slim, Fela Kuti e as outras bandas de Pernambuco, como Dona Margarida Pereira, Faces do Subúrbio, Otto. As festas e os DJs sempre foram muito importantes para o manguebeat. As primeiras iniciativas do grupo que formaria o movimento foram festas, e não shows. Houve uma influência muito grande da cena inglesa, das raves, desse aspecto dançante, um certo otimismo. O grunge passou batido pelo manguebeat. A cultura das festas foi muito mais importante.”

Seu point foi a galeria, cujo agito começou antes da Soparia: “A Galeria Joana D’Arc é um ponto de circulação desse momento. Existia um eixo: Espinheiro, Pina e Boa Viagem, pelo qual as pessoas circulavam e se morria na Soparia. Era uma geografia sentimental da cidade. Os rótulos mangueboys e manguegirls surgiram no Panquecas de Boa Viagem, porque as garçonetes chamavam a mim e a Chico de mangueboys, e começamos a responder para elas chamando de manguegirls”, continua Renato, mapeando os bares onde tudo acontecia.

“A Soparia foi o espaço etílico-cultural mais importante do Recife nos anos 1990. Eu achava a decoração kitsch muito bacana e criava toda uma atmosfera para os shows. Quando Roger fechou a Soparia e abriu o Pina de Copacabana, plantou uma espécie de retomada do Carnaval da cidade a partir do Bairro do Recife, especialmente com a confluência do Rec-Beat com o Pina de Copacabana. Ele meio que criou o polo daquele trecho da Rua da Moeda, que a gente chamava Berlim Oriental. O Adilia’s ficava na fronteira da Berlim Oriental com a Ocidental, e as primeiras festas do manguebeat aconteceram em um Bairro do Recife decadente, nos bordéis.”

Os bordéis foram muitos no Recife, desde décadas anteriores. Nos anos de 1960, uma das piores afrontas para o recifense era dizer que ele tinha mãe na Rua da Guia. Ali se localizavam os puteiros mais degradados do Bairro do Recife. Artistas, dizem, são atraídos pelo lado barra pesada. O pintor francês Toulouse-Lautrec vivia na zona do Rive Droite, em Paris, e fez escola. Nos anos de 1960 e 1970, poetas e escritores eram frequentadores da zona do baixo meretrício recifense. Ali se declamavam poemas, faziam-se exposições. Talvez seja por isso que a geração recifense (e das cidades adjacentes) escolheu a Soparia como o point preferido: o bar de Roger de Renor era uma zona. Como diria William Shakespeare: “Loucura, mas tem um certo método”.

E isso comprovam frequentadores do bar. A hoje publicitária Gina Figueiredo costumava aparecer na turma da Soparia. Dançava na Oficina Mecânica. Pergunto se lhe aconteceu alguma coisa diferente, curiosa, na Sopa. Ela puxa pela memória e diz que não. Mas, de repente, conta que uma noite estava em casa e foi arrastada pelas amigas para a “zona” de Roger. Não deu tempo nem de trocar de roupa. Foi de camisola. Normal. O que me lembra um episódio acontecido no Maconhão, uma espécie de Soparia olindense dos anos de 1970 e 1980, porém sem ebulição musical semelhante. Uma noite, um estudante de jornalismo, de longa cabeleira, despiu-se e saiu entre as mesas até a praia. Nudez que provocou um ou outro comentário. Normal.

“Fui com uma amiga numa terça-feira pra Soparia. Não tinha quase ninguém. Estava por lá um cara vendendo ácido muito barato. Compramos um bocado. Quando bateu o efeito, a gente começou a sorrir. O sorriso não parou a noite toda. Voltamos pra casa de ônibus, rindo. Não consegui dizer boa noite ao porteiro. Chegamos na minha casa rindo. Fomos para o meu quarto. Meu pai bateu na porta várias vezes. Não abrimos, colocando a mão na minha boca e na da minha amiga pra ele não ouvir. Não dormimos. Passamos o dia rindo.” O relato é de uma frequentadora, que não ousou dizer seu nome.

Um casal, que também não ousou dizer os nomes, costumava ver os shows, tomar umas e várias outras, depois seguiam para a praia, ali perto, para namorar. Tiravam as roupas, banhavam-se depois nas águas do mar do Pina e voltavam para a Sopa. Bons tempos. Mas nesta terceira década do século XXI seria uma temeridade.

Rebeca Duarte, mais tarde professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), entrava nos 20 anos quando passou a frequentar a Soparia: “Como era lisa, ficava por lá até o dia amanhecer, quando os ônibus voltavam a circular normalmente”. O horário prolongado de funcionamento do bar levava frequentadores e até músicos a se adaptarem, conforme comenta Helder Vasconcelos, da Mestre Ambrósio: “A gente começava a tocar 1h, 1h30 da manhã. Eu dormia em casa, acordava meia-noite, meia-noite e meia, pra ir pra Soparia, que tinha este papel de ponto de encontro. No auge da minha juventude — hoje, aos 52 anos, já posso falar assim —, não tinha uma noite que eu não fosse na Soparia. Às vezes ficava dez minutos, passava para dar um oi. Eu morava em Candeias. Se viesse fazer uma coisa para o lado de cá, na cidade, passava por lá. A gente encontrava os amigos, sempre tinha alguma banda, às vezes não era a que você estava querendo ouvir naquele dia, mas curtia. Encontrava uma molecada que tava começando, feito a gente. Tinha a Má Companhia toda terça, e Lula vivia aparecendo, a fina flor do rock and roll. A Soparia era tudo ao mesmo tempo agora. A gente estava lá no palco, e Chico aparecia e dava uma canja com a gente. Fez isso várias vezes. Os grupos vinham aqui, faziam show pra uma multidão e depois iam à Soparia e davam uma canja. Um lugar que se parece um pouco é o Bar Central, a Rua Mamede Simões, mas junte com isso toda cena musical da época. A Mestre Ambrósio ficou dois anos tocando toda semana. Depois do primeiro disco, passamos a fazer muita coisa aqui, o que era possível se fazer na época. Participamos daquele Abril Pro Rock de 1996, que teve como atrações principais Mestre Ambrósio, Mundo Livre, Chico e Gilberto Gil. Logo a gente se mudou para São Paulo”.

Roger com o amigo Walmir Chagas. Foto: Acervo Roger de Renor

A Soparia era hegemônica entre a Joana d’Arc e o início da Herculano Bandeira, mas a concorrência era forte, como já se destacou. Numa matéria publicada no JC, em 22 de dezembro de 1994, informava-se que Mestre Ambrósio apresentaria na Sopa um show montado para ser transmitido pela MTV, mas que acabou não sendo gravado — um projeto do VJ Gastão, chamado Gastão Descobrindo o Brasil. A Radiola de CDs estava reforçada, inclusive com a recente versão de Todos estão surdos, de Roberto e Erasmo, que a Chico Science & Nação Zumbi gravou para o álbum Rei, com participação de Siba e sua rabeca. Ali perto, no La Dolce Vita, as irmãs Lorena e Dani Mastroianni discotecariam com imagens de filmes de Fellini. Recomendava-se o uso de óculos escuros durante o evento.

Ao lado da Soparia, a Oficina Mecânica, de Christian, sempre estava com uma atração, geralmente bandas menos badaladas, algumas iniciantes, com gente muito jovem. Os precinhos ali eram mais camaradas. Para os mais abonados, começara a funcionar o restaurante Humberto’s. Mais distante, no Clube Intermunicipal de Prazeres, haveria uma noite de rock pesado, com Última Tribo, Ranzerox, Cactos ao Léu e a Devotos do Ódio. No Francis Drinks, bandas de death metal. A Veneza Americana fervia. Como fervia a Marim dos Caetés, onde funcionou, na Rua do Sol, o pub Poco Loco.

“Fui ao Recife para apresentar o festival Abril Pro Rock. Tudo o que sabia é que se tratava de um festival com bandas que iam do maracatu até o hard rock cantado em inglês. No dia anterior fui a um bar underground chamado Poco Loco. Foi aí que o queixo caiu pela primeira vez. No palco, Dreadful Boys mandando de Sex Pistols para baixo. O público acompanhava num redemoinho ensandecido, repleto de pogo dance e stage diving. Traduzindo, todos se empurravam amigavelmente e saltavam do palco para os braços do público. Apesar dos problemas técnicos, a energia rolou solta. Na sequência foi a vez da Eddie, que faz um garage rock com personalidade.” O relato é do citado Gastão, então badaladíssimo Brasil afora como um dos VJs mais populares da MTV (falamos de 1994).

Uma notinha na coluna Rec-Beat corrobora as observações de Gastão sobre o Poco Loco:

Armação Ilimitada — Uma superjam rola neste sábado no intrépido Poco Loco, em Olinda, em frente ao Fortim do Queijo. Depois do show da banda alagoana Living in the Shit, alguns dos seus integrantes e amigos da Eddie, Jorge du Peixe, da Nação Zumbi, e quem mais souber tocar sobem no palco, rasgando seda. A Colomy Hermanos que mostrará covers e fará músicas inéditas.

O Poco Loco surgiu no clima de ebulição que pairava sobre a Região Metropolitana, sobretudo Recife, Jaboatão e Olinda. Logo se transformaria em uma espécie de CBGB olindense, já que a programação do pub enfatizava bandas de rock (nas suas diversas nuances, quase sempre “som zoeira”). Na véspera das eleições gerais de 1994, os jornais noticiavam uma noite de protesto no Poco Loco. Não protesto político partidário, mas contra a ameaça de censura ao desenho, para adultos, Beavis and Butt-Head, exibido pela MTV, que foi obrigada a tirá-lo da programação: “Puxando o coro dos descontentes estão Frank Jr., Andaluza e Dona Margarida Pereira e Os Fulanos [...] Mas por acaso você já ouviu falar de Dona Margarida Pereira e Os Fulanos? Nem eu. Sabe-se apenas que é mais uma banda que surge com nome engraçadinho, uma moda que parece ter pegado”. A Dona Margarida Pereira e Os Fulanos estava começando e tinha na formação Salvador [que depois se tornaria DJ residente do UK Pub e seguiria em carreira solo] e Chiquinho Fernandes, nos vocais; Marcelo Gomão e Bosco, nas guitarras; Buggy, no baixo; Leo nos samplers; e Mr. Jam, na bateria. A DMP e os Fulanos deixou como herança o disco Música pra pular brasileira. A Andaluza era a veterana da trinca, já existia há anos, um trio cujo baterista, Adelson Bala, logo estaria nas baquetas da Querosene Jacaré.

Hoje em carreira solo, Rogerman era um dos membros da Eddie e tem o Poco Loco como referência entre os bares pelos quais o grupo transitou naqueles primeiros anos da década de 1990: “Na verdade, tive a primeira experiência como DJ no Clã Destino, na Rua do Sol, um local que depois virou o Poco Loco, o CBGB dos anos 1990 em Pernambuco. Tinha uma característica de um pubzinho underground, por trás do Fortim do Queijo. Lembro de uma vez que as pessoas tiraram as telhas pra entrar. Tinha umas 300 pessoas dentro, outro tanto, ou mais, do lado de fora. Algum indivíduo teve a ideia bisonha de destelhar ali, e entrou uma turma. Colocaram um segurança, mas as pessoas já haviam entrado”.

Evandro Sena, o dono do Iraq, um bar do novo milênio e que tem o espírito dos anos de 1990, um local com atitude, tocou algumas vezes no Poco Loco, do qual foi também frequentador: “O Poco Loco teve três donos. Os fundadores foi um casal, Kurt, que era suíço, e Mônica. Depois foi Patinho — Anderson Lucena. Por último, mudou de administração e de nome. A nova proprietária se arrependeu e voltou ao nome de Poco Loco, depois Anderson pegou o bar de novo, e logo acabou”.

“Um dos primeiros shows que fiz logo que vim para o Recife foi no Poco Loco, com a Eddie. Um rock com um astral mais surfista, que era a pegada dos meninos na época. Me lembrava muito Pixies essa onda rock and roll do pessoal”, testemunha Stela Campos.

O Poco Loco faz parte das memórias afetivas de Missionário José, ex-Dreadful Boys e atualmente na Mombojó: “A gente chegou a tocar no espaço do Poco Loco antes da casa ter esse nome. Entre o Clã Destino e o Poco Loco, também se chamou Famas & Cronópios durante um tempo, e nosso primeiro show ali foi nessa encarnação. Tocar lá era uma mistura de emoções, porque tinha todo um glamour de tocar no que era — pra nossa geração — o palco mais importante de Olinda, tocar em casa pra nossa galera. Mas também sempre tinha uma tensão em relação a saber se ia rolar briga, e quantas brigas seriam, e o quanto elas iam influenciar na noite, rolando ou não. Parece estranho falar disso assim, mas era verdade. Muitos anos depois chegamos a conversar com o já saudoso Ajax [vocalista da banda Os Cachorros, falecido em 2022] sobre essa simbiose entre as bandas e as galeras que iam para o show brigar. Acho que pegamos o restinho daquelas brigas lendárias entre a galera da lama e a galera de Olinda”.

O músico pondera ainda que se apresentar no Baixo Pina era diferente. “Tocar na Soparia já era uma outra onda. Era tocar num lugar superconsagrado, tinha uma responsa maior, até porque a gente sabia que ia encontrar outro público. Mas a Sopa tinha um lance muito legal de tocar na parte aberta pra rua, tinha mais esse elemento de pegar as pessoas que iam passando e se interessavam em saber o que estava rolando. E em ambos os lugares havia muito essa dimensão de interação, de tentar ganhar o público. O único problema da Soparia em relação ao Poco Loco é que lá não tinha mezanino, e não dava pra dar um stage diving insano feito Felipe [Vieira, integrante da Dreadful Boys] deu uma vez.”


A formação de uma das noites do chorinho no bar: Charuto (surdo), Nestor (cavaquinho), Bozó (violão), Lula (pandeiro) e Beto (bandolim). Foto: Acervo Roger de Renor

ESTAGNAÇÃO

Era como se o Recife tivesse se cansado do ostracismo. A cidade que, até parte dos anos de 1960, foi a terceira capital do país entrou num marasmo cultural nos anos 1970, quando o império de comunicação dos Pessoa de Queiroz entrou em parafuso. O mesmo acontecia com a gravadora Rozenblit, que levou o frevo a todo o país, com uma azeitada rede de divulgadores. Artistas locais conseguiam tocar a carreira sem emigrar para o Rio ou São Paulo pela exposição que recebiam da TV Jornal do Commercio e da TV Radio Clube de Pernambuco. No final dos anos 1960, Luis Jansen, um cantor de iê-iê-iê pernambucano, comandava um programa de larga audiência nas jovens tardes de domingo do Recife, o Dimensão jovem, que incensava os cantores, cantoras e bandas da cidade, nos moldes do Jovem guarda da TV Record.

No começo da década de 1970, a programação das emissoras de TV do Sudeste — Rio de Janeiro e São Paulo — passou a ser transmitida via satélite simultaneamente para as afiliadas nos estados. Isso resultou na redução de espaço para produções locais. O pequeno espaço reservado à programação das emissoras nos estados ia ao ar em horários de pouca audiência, fora da faixa nobre. Aos artistas locais restou ir embora ou se apresentar pelos clubes da periferia e no interior. Até a eclosão do manguebeat, os artistas pernambucanos de alcance nacional foram: Quinteto Violado, Banda de Pau e Corda, Alceu Valença e Geraldo Azevedo — todos surgidos nos primeiros anos da década de 1970.

Fazer música popular em Pernambuco virou heroísmo. Os espaços eram exíguos; som de qualidade, difícil. Ser artista passou a ser viração. Lembro-me que, por volta de 1984, encontrei um segurança de uma companhia de transporte de valores que parecia com um músico que eu conhecia. Era Ibanez, cantor e guitarrista da banda Cães Mortos, uma das primeiras da cena rock pernambucana com disco lançado por uma gravadora do Sudeste, a RGE/Fermata, mas que foi totalmente ignorado pelas rádios da cidade. A salvação dos músicos do Grande Recife vinha de eventos públicos, promovidos pelas prefeituras ou pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), mas sem continuidade, feito o Vamos Abraçar o Sol, posto de lado depois de algumas edições.

Muita gente abandonou a música como profissão nos anos de 1980 por ausência de perspectiva. Em 1984, por exemplo, a Fundarpe (em parceria com o banco Itaú) promoveu o I Festival de MPB, realizado no pátio do Mosteiro de São Bento. A quase totalidade dos 25 autores que concorreram não figuram na cena que seria desenvolvida na década de 1990. Apenas Marco Polo e integrantes do Trio Romançal (Antúlio Madureira, Antero Madureira e Walmir Chagas) continuam em cena atualmente.

Realmente outros tempos. O Carnaval do Recife e de Olinda foram abertos oficialmente, em 1986, com um show de Alceu Valença, mas não em locais hoje consagrados para realização da folia, como o Marco Zero (ainda Praça Barão do Rio Branco) ou a Praça do Arsenal. A festa aconteceu no pavilhão do Centro de Convenções, intitulada Trem da Estação da Luz. Além de Alceu Valença e banda, teve uma orquestra de frevo regida pelo maestro Duda.

Em 1990, quando o caldeirão de guaiamuns com cérebros começava a esquentar, instrumentistas, autores e intérpretes que atravessaram os anos de 1980 aos trancos e barrancos reuniram-se no I Encontro de Músicos Pernambucanos, em 4 de abril daquele ano, organizado pelo compositor e cantor Ívano, um dos primeiros regueiros pernambucanos:

O evento quer promover os artistas pernambucanos, no sentido de maior divulgação de sua obra, oferecendo espaço, apoio e condições para que isso seja possível. E, ao mesmo tempo, conscientizar e criar harmonia entre público e músicos, para o valor do artista pernambucano que agora passa por uma fase de resgate, união e fortalecimento (JC, edição de 3 de abril).

Entre os que participaram do encontro estavam Marco Polo, Zé (hoje Zeh) Rocha e Lula Queiroga, três nomes que mantiveram relações harmônicas com os mangueboys.

Ívano também teria destaque na música pernambucana naquela década, com um hiato para atuar em novelas da TV Manchete. Na sua fala, ele desenha o círculo vicioso da música de sua geração. O público não tinha interesse por sua música. O apetite dos pernambucanos em relação à música popular feita por pernambucanos era mínimo. Embora já mostrasse sinais de exaustão, o chamado BRock, o rock nacional dos anos 1980, ainda imperava nas paradas. Os grupos eram formados por músicos vindos da classe média alta, tinham acesso a equipamentos de primeira classe. Estavam pari passu com os contemporâneos gringos, eram contratados de multinacionais do disco e predominavam nas FMs desde 1982. Os artistas locais perdiam feio diante da suntuosidade das bandas e intérpretes do BRock.

A turma que entrava em cena encontrou outro panorama. Inclusive na troca de guarda de uma nova geração de gestores que passou a comandar os órgãos culturais municipais e estadual. O citado I Encontro de Músicos Pernambucanos prestou uma homenagem ao ex-presidente da Fundarpe Roberto Pereira, um conservador que, se escutou a música daquele pessoal, o fez casualmente, em algum evento que pedia sua participação. O próprio Ariano Suassuna, secretário de Cultura quando o manguebeat decolava, preferia tratar Chico Science traduzindo-lhe o segundo nome para o português, mas não criou obstáculos para que a Fundarpe bancasse a primeira turnê internacional do cantor com a Nação Zumbi — embora continuasse contra guitarras elétricas, bossa nova, e radicalmente a favor da música brasileira sem condimentos estrangeiros. Aliás, às vésperas da segunda turnê europeia da CSNZ, Ariano compareceu ao Circo Maluco Beleza para cumprimentar os músicos. Deve ter sido seu primeiro e único show de rock. Era até engraçado o contraste do visual da plateia do festival com o do secretário de Cultura, vestido de calça e camisa de linho claros.

IMPRENSA E FAMOSOS

A cena musical dos anos de 1990 teve a imprensa engajada em divulgá-la. Adquirido pelo grupo João Carlos Paes Mendonça, o Jornal do Commercio reergueu-se a partir de 1987. O editor-geral Ivanildo Sampaio recebeu carta branca e injetou sangue novo na redação. Jornalistas antenados mudaram a cara do Caderno C, dedicado à cultura, o que levou o Diario de Pernambuco a também investir no Viver, seu caderno cultural. As páginas do JC e do DP abriram-se para o manguebeat. A TV Jornal produziu um programa, O canto do mar, apresentado por Marcelo Pereira e depois por Edna Nunes, por onde passaram muitos nomes do movimento, que ganhou, na mesma emissora, um especial, dirigido por Tandra Burgos. Por fim, mas não menos importante, tivemos a Soparia e o festival Abril Pro Rock, que formaram uma parceria não declarada. O APR começava não oficialmente na semana prévia ao já citado projeto Abrindo o Gás. Músicos que vinham para o festival chegavam antes e passavam pela Sopa para dar uma canja.

Ressalte-se que o público era até bem-comportado. Não havia divisão entre palco e plateia, vários músicos que se apresentavam ali, por volta de 1995, já eram conhecidos nacionalmente, tinham legião de fãs. Depois, com muita gente viajandona, nem precisava ser famoso, bastava tocar clássicos do rock para agitar a plateia, o que a Má Companhia fazia com extrema competência. Por sua vez, músicos famosos que tocaram na Soparia chegavam de surpresa, não havia prévio aviso, portanto não atraíam os admiradores ao local.

Lula Côrtes, espécie de guru da cena e presença sempre ilustre no bar, ao lado do jornalista Marcos Toledo e de Roger. Foto: Acervo Roger de Renor

Foi o caso de Herbert Vianna e Barone, de Os Paralamas do Sucesso, um grupo que passou pelo teste do tempo e continuava firme e forte na década de 1990. Herbert se apresentou com a Das Bandas da Paraíba. Kennedy Costa, guitarrista da banda, relembra o encontro na Soparia com o conterrâneo: “Tivemos um encontro com o Herbert Vianna em João Pessoa; não abrimos o show dos Paralamas no Forrock, por motivos políticos na época, mas nos deixaram visitar a banda no camarim. Nesta conversa, entregamos o nosso CD, e ele nos perguntou onde íamos tocar. Respondemos que teríamos show no próximo fim de semana no Recife, na Soparia, e então ele nos falou que coincidentemente também estaria no Recife para encontrar parentes de sua mulher, a inglesa Lucy Needham. Em uma conversa entre nós do Das Bandas da Paraíba, surgiu a ideia de, se ele fosse mesmo, chamá-lo ao palco para dividirmos um número. Qual seria? Discutimos que, se ele aceitasse, tocaríamos de improviso Manguetown do Chico, cover que os Paralamas já vinham fazendo na época. O cara não só foi prestigiar como aceitou o nosso convite pra dividir um número no palco. Quando terminamos a apresentação, ele ainda se encontrava na Soparia. Herbert nos falou naquela noite que haveria uma possibilidade de irmos ao Rio de Janeiro. Uns dias depois, o Zé Fortes [empresário dos Paralamas] nos convidou para tocar no Rio Centro. Convite aceito, show maravilhoso, e a história que poucos sabem: o Zé sugeriu que a gente fosse morar no Rio, disse que iria nos recomendar à gravadora Paradoxx. Voltamos entusiasmados para a Casa Pascoal Carlos Magno, que ficava em Santa Tereza, onde estávamos hospedados, para uma reunião. Nessa reunião, a banda acabou”.

Marcos Toledo passou a frequentar a Soparia quando começou a estudar jornalismo (depois cobriria vários eventos do bar para o Jornal do Commercio) e guarda lembranças daquela época. “Uma vez eu estava lá, com uma galera, quando comentei com Eduardo [Albuquerque Melo], da minha turma, sobre um cara que se parecia muito com Fagner. Eduardo disse: ‘Mas é Fagner’. Os artistas vinham fazer show no Recife, depois passava, na Sopa.”

Na época, divulgador da gravadora Sony Music, Marcos Rosati relembra o encontro de Emílio Santiago com o ator cômico Jeison Wallace, cujo personagem Cinderela já era bastante popular em Pernambuco: “O encontro aconteceu na Soparia, onde eu estava com Sidnei Oliveira [representante da gravadora Som Livre], sua esposa, Marta, e Emílio Santiago. Eu já me encontrava lá quando o casal, acompanhado por Emílio, chegou por volta da 1h da manhã. Ele havia feito uma apresentação no Náutico e voltaria para o Rio logo cedo, precisava estar no aeroporto às 5h30. Então os dois resolveram fazer hora na Sopa antes do embarque. Aliás, na Soparia o bom era chegar no começo da madruga. Na época, rolava uma peça teatral no Valdemar de Oliveira, Cinderela, a história que sua mãe não contou, com a Jeison Wallace e sua trupe, que começava exatamente meia-noite e acabava tipo 1h30. Umas 2h30, eles chegaram na Sopa, alguns ainda com os figurinos usados na peça. Claro que chamou logo a atenção de Emílio, que ficou doido pra conhecer a rapaziada. Eu o levei até eles e os apresentei. Como na época ainda não existia o tal do celular pra fotografias, conversamos um pouco e voltamos para a mesa. Depois disso, Jeison passou a me chamar de empresário de Emílio Santiago”.

A Soparia, feito o que se diz de uma partida de futebol, era uma caixinha de surpresa. Nunca se sabia o que poderia rolar naquele palco acanhado, quase no mesmo nível do piso do salão em que a clientela dançava entre as mesas. Numa noite de 1996, de repente, a Nação Zumbi, quase com a formação completa, serviu uma senhora canja aos fregueses:

Nessa última segunda-feira, a Soparia armou uma bela surpresa para os seus clientes. Quem subiu no palco e deu aquela canja para o público foram os integrantes da Nação Zumbi. Pupillo, Lúcio Maia, Dengue, Toca e Jorge du Peixe levaram um som até 2h30 da madrugada. Entre outras músicas tocaram Manguetown com um arranjo bem diferente do que é ouvido em Afrocibederlia. O flautista Cesar Michiles e o rabequista Tiago [Andrade, Zé Cafofinho] também participaram da jam session (Coluna Rec-Beat, de Marcelo Pereira, mas com o texto da interina, Clarice Hoffmann).

Numa dessas noites, o autor deste livro estava com duas colegas, Clarissa e Benares, numa mesa na parte externa da Sopa, quando Chico Science participou de uma jam. Quando terminou, Chico foi até a nossa mesa, nos cumprimentou, e perguntou o que tínhamos achado do show. Benares, que já entornara umas e várias outras cervas, foi quem respondeu ao mangueboy-mor: “Chico, você esteve imperceptível”. Science perdeu a graça e saiu de fininho. Ela queria dizer “irrepreensível”. Acontece.

DOIS PASSES E UM REAL

A freguesia foi atração à parte na Soparia. A badalação em torno do bar tornava seu público o mais eclético que se possa imaginar. Não apenas nas preferências de moda, comportamento e saldo bancário. Também em faixas etárias. Claro, jovens entre 20 e 40 anos predominavam no bar, mas também coroas de cabelos brancos, como o habitué Lula Côrtes, que aparecia por lá quando menos se esperava. Não raro servia a canja, com a Má Companhia, depois das 2h, e só parava quando o dia se ajeitava para nascer.

Numa época em que pais e mães permitem que filhas adolescentes só saiam para lugares certos e sabidos, muita gente abaixo dos 18 anos curtia a Soparia. Joanah Flor, cantora olindense, conta que ia para a Sopa com 16 anos, com uma amiga da mesma idade, já nos últimos anos do bar: “A gente pegava o PE-15 na ida e na volta. Às vezes eu ia para o Cais de Santa Rita pra pegar o bacurau. Encontrava pessoas que moravam onde eu morava e trabalhavam vendendo comida ali por perto. Era uma época bem mais tranquila, nunca me aconteceu nada. Claro, eu tinha medo, mulher sempre está correndo perigo. Mas voltava pra casa sem problemas. Com assalto nem me preocupava. Levava na bolsa dois passes e um real. Como eu ainda não bebia, o real dava pra comprar duas Coca-Colas, uma pra mim e outra pra minha amiga. Foi um lugar massa, onde se reunia todo mundo. Era esse lugar de encontro, mas também de aprendizado. O movimento manguebeat foi muito importante para mim. A Soparia era parte disso. Mesmo com a morte de Chico, dava-se continuidade, foi o período em que conheci todo mundo que até hoje está por aí fazendo histórias. Tinha os meninos da Via Sat, a gente era bem amigos, Cascabulho, Má Companhia, que era sagrada. Ortinho, que um dia vomitou no meu sapato. Ele veio me cumprimentar quando me viu. Me deu um abraço, mas se sentiu mal e vomitou na minha botinha, que eu adorava, de camurça”.

Aos 15 anos, a futura jornalista de cultura Geisa Agrício acompanhava com avidez a cena musical dos anos de 1990 sem que a mãe soubesse. Frequentava a Soparia acompanhando a irmã [quatro anos mais velha] e as amigas: “Eu era rata do mangue. Seguia Chico Science, Dona Margarida e Os Fulanos, Devotos. Eu queria ver o som, acompanhar todas as bandas, ficar perto. Show em qualquer fiofó do mundo que Chico fosse se apresentar, eu estava lá. Vi Chico várias vezes na Soparia, mas não se apresentando. Vi shows em outros cantos. Eu nem bebia, ia pra fazer parte, pra estar por perto. Às vezes mamãe deixava a gente sair pra voltar de táxi. A gente não pegava táxi, usava o dinheiro pra o que fosse sair, comprar ingressos de shows. A gente voltava de bacurau, às vezes pegava carona. Morava na Várzea, mas o ônibus só ia até a Caxangá, o que dava umas quatro quadras pra casa. A gente descia e ia andando, duas meninas sozinhas, tarde da noite. Que era loucura era, hoje é totalmente inviável. Doideira”. Era uma fauna peculiar a que circulava no “Baixo Pina”.


Alguns detalhes do ambiente que impressionou o crítico do New York Times por conta de seus elementos “kitsch e trash”. Foto: Acervo Roger de Renor

O DISTINTO PÚBLICO

Por mais estigmatizada e reprimida que seja, a cannabis sativa faz parte da cultura do Nordeste. Até os anos de 1960, era mais consumida pela periferia, nos bairros mais pobres. Com a liberdade de costumes da geração Woodstock, seu uso se estendeu a jovens da classe média, e segue assim até os tempos atuais (claro, nem todo jovem consome a erva, que continua sendo demonizada).

A maconha foi o aditivo mais consumido nas imediações da Soparia. Mas não se fumava no interior do bar. Naquele tempo, um baseado poderia levar o fumante a uma encrenca séria com a polícia. Roger procurava evitar o consumo de drogas ilegais na Soparia, mas não podia, claro, impedir que traficantes frequentassem o bar. Essa era uma das questões que incomodava Roger. O trecho inicial da Rua Capitão Rebelinho, que começava diante do bar, tornou-se um fumódromo. Se uma viatura policial entrasse na quadra onde ficava a Soparia, alguém avisava à turma do fumacê, que se dispersava. Mas a maioria dos frequentadores se limitava à cerveja ou a doses de destilados. E a freguesia não poderia ser mais eclética.

Quem, por exemplo, frequentou a Soparia foi a jornalista Mirella Martins, titular há anos da coluna Social 1, do Jornal do Commercio. Moradora da Avenida Boa Viagem, ela dava umas escapadas para ir ao bar sem a mãe saber: “Eu ia muito à Soparia, escondida de mainha. Lembra uma banda Margarida de Inverno? Namorei com o baterista, queria ser groupie. Ia lá na segunda, era uma oportunidade de ser inserida no core do mundo artístico, de ver gente legal, pra frente do seu tempo. Gente que trazia coisas novas, oportunidade de você se conectar com esse mundo que, vivendo na minha bolha, não teria a oportunidade, era um portal de expansão cultural artística, e também como partícipe da sociedade”.

Assim como Mirella, muita gente veio de mundos paralelos da sociedade para o universo da Sopa, que subvertia o próprio conceito de bar. Um garçom, por exemplo, não deve ir além do papel que lhe é dado naquele roteiro, o de atender ao pedido do freguês, trazer a conta, naquele tempo quase sempre paga diretamente no caixa. Porém, na Sopa, os garçons não seguiam todas as regras. Ortinho relembra como ele e os colegas procediam: “Todo mundo da Soparia era doidão, os garçons também. A gente era liso, então tinha um cantinho do freezer em que a gente guardava as cervejas que eram esquecidas nas mesas. Chegava gente muito doida, pedia duas cervejas e ia embora sem beber. A gente pegava, guardava no freezer, ia bebendo e trabalhando. Quando era aí pelas 5h da manhã, os garçons se confundiam com os clientes. A gente já tava dançando, não atendia a mais ninguém, o pessoal reclamava, e assim a gente ia levando a vida. A Soparia era isso aí. A gente recebia uma grana muito pouca. Se o garçom bebesse, ele pagava, então a gente fazia isso para que, no final do mês, quando fosse receber, não tivesse o desconto da birita”, justifica Ortinho.

(Eu, o escriba deste livro, comprovei esta quebra de regras mais de uma vez, tanto na hora de fazer pedidos quanto na hora de fechar a conta. Passei alguns xexos na Soparia pela impossibilidade de quitar a despesa da noite. Xexo, na gíria pernambucana, é sair de um local à francesa, sem pagar a conta.)

A memória mais marcante do hoje produtor Marcos Santana, no lendário Natal protagonizado por Lula Côrtes, também envolve problemas de transação financeira. Mas o motivo não era a falta de verba. Naquela noite, como em quase todos os shows realizados na Sopa, a apresentação esteve aberta a participações. “Lá pras tantas, Lula me chamou no palco e cantamos Sou uma criança, não entendo nada e Sociedade alternativa. Eu e uns amigos ficamos numa mesa, do lado de fora, a Sopa lotada. Bebemos tanto que no final eu não consegui nem assinar o cheque. Daí pedi pra chamar Roger. Ele veio, pegou o cheque, com um risco no lugar da assinatura. Na semana seguinte, numa terça, pra variar, fui por lá pra resgatar o cheque. Paguei, recebi o cheque e acabei tomando outras, mas dessa vez paguei em grana.”

Essa eclética safra de notívagos foi protagonista de uma matéria de comportamento no Caderno C, do Jornal do Commercio, assinada por Diana Moura, sob o título: “Eles amam a noite, mas se odeiam”. No texto, ela acentuava que a famosa fama de caranguejo dos pernambucanos não se extinguiu pelo surgimento dos incensados mangueboys. Dizia-se que os pernambucanos eram como os crustáceos num caçuá. Quando um deles consegue subir com dificuldade, e se aproxima da saída, outro o puxa pela pata e o impede de escapar.

A picuinha pernambucana é sempre ingrata com quem faz sucesso. Os mangueboys, por exemplo, mal ganharam fama, já contam com uma lista de desafetos em solo próprio.

No texto, as picuinhas imperam. Seguem-se críticas ao vocalista da Mundo Livre S/A, uma delas do fotógrafo Marcos Nassif, que preferia os vocais da banda como tarefa de Otto, seu então percussionista.


Imagem: Reprodução

Foi entrevistada também gente que ia à Soparia, mas que não se agradava do público nem do bar. Para a jornalista Paula Fontenelle, o melhor bar do Polo Pina era o Banana Groove. O que ela comentou sobre outros frequentadores, desaprovando o povo “cabeça”: “As pessoas são meio perdidas, sem um referencial de vida”. Por outro lado, o universitário Leonardo Simões, 18 anos, preferia o Western Saloon, um bar e boate na Avenida Beira-Mar, no estilo country. Naquela época, o sertanejo de Zezé di Camargo & Luciano e afins estava começando a fazer sucesso. O estabelecimento tinha até um touro mecânico e, segundo o estudante, o ambiente era mais elitizado: “Tanto na Soparia quanto na Oficina Mecânica, as pessoas ficam sentadas bebendo e fumando, isso não tem nada a ver com a geração saúde de hoje”. O na época estudante de jornalismo Camerino Eloy integrava a ala dos que preferiam o Panquecas (que funcionou em Boa Viagem, com um segundo no Espinheiro): “Prefiro o Panquecas porque a tribo é melhor. O Pina virou lugar da moda, onde existe uma cocotagem metida a ‘cabeça’. O pessoal vai para lá [refere-se à Soparia] com um piloto automático, para se comportar de uma maneira determinada. Eles querem ser tão diferentes que acabam se tornando insuportáveis”. O pessoal dito “cabeça”, claro, aproveita para baixar a ripa nos points da cocotagem recifense: as boates Balacuda, Doktor Froid e o citado Western Saloon.

“Na frente da Soparia existiu, durante um certo tempo, um bar chamado Banana Groove. Era de uns italianos que também tinham outro lá pelas bandas de Piedade. Tempos depois, descobriu-se que eram procurados pela Interpol, a velha máfia. Um deles morreu aqui no Recife, acidente de carro; o outro seguiu viagem para o seu país, devidamente algemado. Na Soparia, já na fase em que era frequentada até pelas burguesinhas de Boa Viagem, quem chegasse lá pelas 22h30 não encontrava mesas desocupadas, então tinha que iniciar os trabalhos etílicos no tal Banana Groove para depois bater o ponto em Roger”, conta Marcos Rosati, que foi colega de Roger na divulgação de discos e assíduo frequentador da Soparia.

“Teve um dia que uma turma animada se viu nessa situação. Estavam tomando todas no italiano, depois chegaram na Soparia. Se acomodaram em três mesas, uma delas, do lado da que eu estava. Nas primeiras cervejas que o garçom trouxe, depois de tomar um gole, alguém deu uma senhora vomitada. Foi quando Apolo, que era um frequentador assíduo da Sopa, já totalmente alcoolizado, gritou: ‘Já vi gente beber num bar e tomar a saideira no outro; agora, beber num e vomitar no outro é sacanagem’”, relembra Rosati.

O jornalista Marcos Toledo complementa o episódio contado pelo xará: “O Recife tem essa dinâmica. A Soparia surge como um espaço mais alternativo, porque foi pra lá a galera que ou não tinha espaço, no caso das bandas, ou os que não se sentiam à vontade nos lugares da moda. Quando a Soparia bombou, aí veio todas aquelas galeras, acontece sempre. O pessoal que frequenta os bares da moda vai tomar a saideira no bar que tá no hype, contribuindo pra morgar este lugar que era bacana”.

Bruno Albertim, também jornalista, na época se iniciava na profissão, e alguns anos depois se especializou em gastronomia e artes plásticas, escrevendo sobre o assunto no Jornal do Commercio e publicando livros sobre os temas. Foi frequentador constante da Soparia, mas pouco recorreu ao cardápio do bar. “Eu, na verdade, só tomei sopa uma vez na Soparia. O que acontece é que a gente chegava lá muito tarde, depois que as coisas tinham acontecido. Eu não tinha muita resistência feito minha turma, que varava a noite. A turma ficava bebendo até de manhã, quando o bar fechava. Aí todos migravam para o Bar dos Cornos, para tomar um leite maltado. O Bar dos Cornos era uma extensão da Soparia, onde também aconteciam as coisas mais inusitadas. Uma vez chegou um caminhão cheio de travestis vestidas como paquitas da Xuxa. Mas, voltando à Sopa, como eu não tinha muita resistência, uma das memórias mais recorrentes que tenho de lá é que, no meio da madrugada, acabava dormindo naquele famoso sofá vermelho. Uma vez, acordei no meio de um show dos Textículos de Mary. Também recordo quando fomos ver uma nova temporada da peça Salto alto, e o sofá vermelho estava no cenário. O pessoal dizia para mim: ‘Olha o teu sofá, vai tirar um cochilo nele’”, conta Albertim.

Bruno também guarda lembrança de outros bares do entorno que já mencionamos aqui. “Não era apenas a Soparia. Ao lado tinha a Oficina Mecânica, muita gente ia lá para dançar, tocava muito música black. Ali perto tinha a Sopa Quente, onde eu ia bastante jantar com o pessoal do jornal, era muito bom.” A Sopa Quente garantia o ecletismo dos estabelecimentos daquela área. Era a antítese da Soparia de Roger de Renor. Era um local pequeno, aconchegante, de poucas mesas, requintado. Clientes da Soparia, com a carteira mais recheada, trocavam o conforto da zona pela zona de conforto e davam um tempo na Sopa Quente.

 JOSÉ TELES, jornalista e crítico musical.

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