Entrevista

Wagner Moura e Seu Jorge falam sobre 'Marighella'

O diretor e o ator que faz o personagem-título comentam a produção do longa que desengaveta história recente (e comumente distorcida) do Brasil em torno da ditadura militar

TEXTO Luciana Veras

25 de Novembro de 2021

O ator-protagonista Seu Jorge e o diretor, Wagner Moura

O ator-protagonista Seu Jorge e o diretor, Wagner Moura

Foto Ariela Bueno/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Marighella.

Sem dúvidas, uma das palavras mais faladas no Brasil neste penúltimo mês do ano, ao lado de “precatórios”, “STF”, “centrão”, "prévias do PSDB", "Torres Gêmeas", "dose de reforço" e do nome da saudosa cantora Marília Mendonça.

Esse verbete crucial para entender nosso país no descerrar das cortinas de 2021 se deve menos a uma súbita tomada de consciência da importância de lembrar nossa História recente – as décadas de ditadura, a violenta repressão que o regime militar impôs a quem dele ousava discordar – e mais à estreia, ainda que bem tardia, da cinebiografia de Carlos Marighella dirigida por Wagner Moura. Sim, é verdade: dois anos e nove meses depois da estreia mundial em uma exibição hors concours na 69ª Berlinale, Marighella (Brasil, 2019) entrou em cartaz no dia 4 de novembro e se tornou o filme brasileiro mais visto durante a pandemia da Covid-19.

Inspirado em Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo (2012), biografia escrita por Mário Magalhães e publicada pela Companhia das Letras há quase 10 anos, o longa-metragem arrecadou R$ 1,98 milhão e vendeu quase 100 mil ingressos entre as pré-estreias que começaram no feriado de 2/11 e o domingo, 7/11. Ficou em quarto lugar entre as obras mais vistas em seu primeiro fim de semana de exibição, atrás de Eternos, Venom – Tempo de carnificina e A família Addams 2 – Pé na estrada. No feriadão da Proclamação da República, foram outros 75 mil ingressos comercializados. Dados divulgados pelo jornal O Globo, na última terça (23), apontam que o filme já bateu 268 mil espectadores e atingiu uma arrecadação total de R$ 5,2 milhões.

Ou seja, a narrativa ancorada em um dos maiores líderes da guerrilha de esquerda, cabeça da Ação Libertadora Nacional (ALN), assassinado em 1969 e ainda hoje caracterizado pela extrema-direita, que atualmente governa o Brasil, como “terrorista”, prova-se capaz de, e eficaz em, levar pessoas ao cinema, mesmo nestes tempos em que ainda estamos a nos desenferrujar para participar de atividades coletivas como a partilha das emoções em uma sala de exibição. Por que será?

“Porque a resistência é importante na história do mundo. Os cidadãos têm o direito, na verdade, a obrigação de resistir a ditaduras e a um estado violento, um estado que não respeita sua população”, responde Wagner Moura, ator consagrado que se arvorou à direção com este projeto, produzido pela O2 Filmes em parceria com a Globo Filmes, com orçamento de R$ 10 milhões e distribuição da Paris Filmes e da Downtown Filmes.

“A narrativa do filme é que tínhamos uma ditadura, que não era boa, que era dura e desrespeitava os direitos dos brasileiros, e existiam pessoas que decidiram fazer algo sobre isso, mesmo que arriscando suas vidas. Você pode discutir se a luta armada foi boa ou ruim, mas eu meio que não me importo, sabe? Porque o que Marighella e as outras pessoas fizeram foi resistir, foi achar um jeito de fazer algo. E em situações assim tem gente que se esconde e gente que mostra as caras, e eu realmente tenho muito respeito por gente que vai pra cima”, emenda o diretor.

Seu Jorge, o cantor/ator que encarna o papel-título, corrobora: "Tudo sobre Marighella tem a ver com a resistência. Ele fala sobre isso. É um cara que não aceita um 'não'. Que, quando toma uma decisão, não volta atrás. Não temos muito sobre ele nos nossos livros escolares de História, então talvez esse filme ajude as pessoas a saber um pouco mais sobre a ditadura, a investigar mais sobre Carlos Marighella".

Essas colocações, tanto as de Wagner como as de Seu Jorge, foram dadas, numa mesa redonda com a imprensa, em fevereiro de 2019, horas antes da primeira sessão oficial de Marighella, o filme que encerrava aquela edição da Berlinale – Festival Internacional de Cinema de Berlim. Ainda ali, já apareciam algumas questões que posteriormente seriam exploradas à exaustão pelos detratores da obra – como a cor da pele do prócer da ALN. "Marighella não era branco. Seu pai era italiano e sua avó materna era uma escrava que veio do Sudão", enfatizava o diretor.

A Continente estava lá e acompanhou este momento histórico, retratado na cobertura que fizemos à época e resgatado em texto que integra a edição impressa deste mês. Aqui, trazemos uma compilação da conversa com o cineasta e o ator principal desta obra de arte obrigatória para se pensar o Brasil de 1964, 1969, 2018 e 2021.


Berlinale 2019. Foto: Luciana Veras

A ADAPTAÇÃO

WAGNER MOURA 
Em 2012, logo quando Mário Magalhães lançou a biografia, eu li. Sempre fui fascinado não apenas por Marighella, mas por histórias de resistência no Brasil. Tenho um fascínio enorme pelos Malês, uma rebelião preta na Bahia, meu estado natal, por Canudos e outras outras manifestações populares de fúria e ira contra o Estado ou contra ditaduras ou regimes antidemocráticos, e principalmente pelo período da ditadura militar. Por ter acontecido entre 1964 e 1985, e como eu nasci em 1976, vim ao mundo no meio da ditadura. Mas minha geração, não sei por que, era muito diferente da que lutou contra a ditadura. Cresci em uma geração alienada. Então, o livro estava lá, eu já tinha esse fascínio sobre o personagem e achava e sentia que era hora de fazer algo diferente do que apenas atuar. Durante o processo, Mário Magalhães sempre foi muito doce e aberto. Ele vinha ao set no Rio quando estávamos filmando, quando eu algumas vezes tinha alguma dúvida, mandava um e-mail e ele respondia imediatamente. Mas ele não estava envolvido na escrita do roteiro. O roteiro foi escrito por Felipe Braga, com a minha ajuda. O filme se passa entre 1964 e 1969 e essa decisão de ambientar nesse período veio mais por uma questão cinematográfica, mais até do que meu fascínio por rebeliões. Marighella foi deputado, escritor, um membro do Partido Comunista… Mas, cinematograficamente, a luta armada tem mais apelo. E como eu cresci com a referência de seriados como Anos rebeldes, queria que meu filme tivesse apelo também. Não posso dizer que é um filme popular, mas adoraria que fosse. 

NO SET

SEU JORGE Eu tive apenas um mês para me preparar. Foram 10 dias com Fátima Toledo e mais 20 dias com Wagner e com a equipe. Foi muito duro para pegar no embalo, porque antes eu estava rodando um filme em Nova York e o Fernando Meirelles me falou e me perguntou se eu conhecia Carlos Marighella. Respondi que não conhecia muito sobre ele. Aliás, minha geração não cresceu sabendo sobre a ditadura, porque não se falava sobre isso. Cresci sem essa informação, sem as pessoas falarem sobre isso. A primeira vez que ouvi falar sobre Carlos Marighella foi na canção de Caetano. Depois, na música de Mano Brown. Foi aí que fui vendo que Marighella representava resistência para o Brasil.

WAGNER MOURA
Rodamos em 2017, sob o governo Michel Temer. E uma coisa que sempre ficou muito clara para mim é que esse filme tinha que funcionar como um longa de ficção. Porque já existiam muitos documentários e filmes sobre Marighella. Para que o filme funcionasse como uma obra ficcional, tivemos que inventar situações que não existiram, moldar personagens que não existiram… A maioria dos personagens é um amálgama de outras pessoas. Eu não quero que nenhum ex-membro da ALN vá lá e diga: "Sou eu". No filme, temos 10 pessoas que, na vida real, eram mais de cem, então tomamos algumas liberdades. Mas a verdade, a alma do filme, é muito baseada no que estudamos do livro do Mário. Levamos muito a sério não apenas a leitura da biografia, mas trouxemos ex-guerrilheiros para o set para conversar com o elenco, por exemplo. Acredito em processos e esse foi o nosso processo… De 2012, quando o livro saiu, até 2017, quando filmamos, nossos sentimentos já estavam ancorados, bem-assentados, em tudo o que tínhamos estudado.

UM ATOR COMO DIRETOR

SEU JORGE
Wagner é um dos melhores atores do Brasil. Aliás, tem sido desde que ele começou a atuar. E posso dizer que me sinto um ator melhor depois de ter feito esse filme. Porque ele, sendo um excelente ator, com todas as habilidades, foi dirigir com aquela intensidade. Quando ele dizia "corta", era bem assim "CORTA!" (risos). E logo depois ele vinha dizer: "Eu amo vocês". Foi bem intenso.

WAGNER MOURA Para mim, foi um caminho natural. Sempre fui um ator interessado em saber o que as pessoas faziam no set, como alguém que trabalhava melhor como ator porque eu sabia o que cada pessoa estava fazendo ali. Então, acho que dirigir veio desse interesse que eu sempre tive em tudo aquilo que estava além de atuar. Em determinado ponto, sendo um ator que vinha trabalhando muito desde os 15 anos de idade, senti o desejo de fazer algo diferente. Algo a mais. Não sabia se eu seria capaz de dirigir e só soube que eu deveria fazer algo por qual eu fosse tão apaixonado como sou por atuar. E isso veio com Marighella. Mas, hoje, depois de ter filmado, de ter visto a atuação de todas aquelas atrizes e atores… A atuação foi a melhor. No final das cenas, eu queria beijá-los. Todos eles. Senti uma coisa que nunca tinha sentido, um sentimento de gratidão. Pois eles se entregaram com tanta paixão. E vou contar: depois de Marighella, eu fui interpretar Sérgio Vieira de Mello em Sérgio, filme que produzi nos Estados Unidos, e fiquei em crise porque nunca achei que seria capaz de atingir o que eles tinham conseguido.

PERSONAGENS COMPLEXOS

WAGNER MOURA
Vivemos uma situação tão forte no processo de filmagem, no set, que os atores pediram para botar o nome deles nos personagens. Então você tem Humberto, Bella, Jorge… Eles queriam assinar o que aqueles personagens estavam dizendo. Foi importante demais isso para o aspecto artístico. Porque os personagens são todos complexos. O personagem de Bruno Gagliasso, Lúcio, é um exemplo disso. Tive até que cortar algumas das cenas, pois o primeiro corte tinha 4h. E eu não preciso defender Marighella. Ele é complexo. E ponto. Mesmo que eu pessoalmente me identifique mais com os guerrilheiros, tenho certeza de que vai ter gente que vai dizer que Lúcio é até legal, porque tem uma cena em que ele diz: "Não estou fazendo isso por você, mas pelo meu país". E acho que os personagens são complexificados, como era Escobar em Narcos, ou mesmo o protagonista de Sérgio. Acho também que a comparação com o capitão Nascimento de Tropa de Elite é bem apropriada,  porque ele é um personagem que realmente acreditava que estava fazendo a coisa certa. Eu não acho isso, mas ele acreditava. Conheci vários caras do Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro) e eram pessoas legais, mas que realmente achavam que matar gente da favela era fazer a coisa certa pelo país. Acredito, então, que não se trata de alguém ser bom ou mau, pois tem coisas que Marighella fez na vida, e faz no filme, que podem ser consideradas ruins. 

SEU JORGE Quando Beatriz Segall interpretou Odete Roitman, em Vale Tudo, ela sofreu muito. Estamos preparados para qualquer reação por tudo que atuamos. Até porque precisamos falar disso tudo, de Mariguella, da tortura que ele sofreu, da repressão. OK, no Brasil as pessoas votaram para eleger o atual presidente. Queriam essa mudança porque estavam cansadas do sistema antigo. Mas precisamos saber o que, de fato, aconteceu no período da ditadura. E não era tudo tão simples, era muito mais complicado. Marighella não é um cara que você define como "bom" ou "mau", mas ele era um cara que não recuava uma vez que a decisão fosse tomada. Quando se começa alguma coisa, vai terminar. Caras como ele eram assim. Me sinto assim também, mas decido pela paz e pelo diálogo.


Seu Jorge e a atriz Adriana Esteves, que interpreta a companheira de Marighella. Foto: Divulgação

LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA

WAGNER MOURA
Vocês podem não acreditar, mas minha principal referência foram os irmãos Dardenne. Imagina se Jean-Pierre e Luc Dardenne pudessem dirigir um filme de ação? Em um primeiro momento, pensei em não ter música no filme, mas meu editor disse que a gente devia ter. Até porque eram 2h40 de projeção… E lá fomos. A abertura com a música de Chico Science e Nação Zumbi (Monólogo ao pé de ouvido, do álbum de 1994) apenas pareceu certa… Com tudo que Chico dizia ali naquela letra. Eu não sou um cara que vi muitos filmes, minha cultura cinematográfica não era tão vasta, então, para mim, foi muito importante trazer todas essas pessoas juntas, ouvir o que elas pensavam, o que elas queriam para o filme. E filtrar. Não me lembro agora de quem sugeriu usar essa música, mas foi ótimo. Eu disse: "Vamos botar sim". Foi tudo colaborativo. E arriscado. Me lembro de que pedi a Adrian Teijido, o diretor de fotografia, para fazer coisas que ele nunca tinha feito antes. Nos arriscamos mesmo. 

SEU JORGE Muitas pessoas sempre me perguntam sobre Cidade de Deus, e sobre como foi trabalhar com Fernando Meirelles e tal, e eu gosto de lembrar que, naquele filme, a gente tinha Kátia Lund no set. Que era diretora também e se ocupava de nós, os atores. Fernando, que adorava fotografia, estava preocupado com a galinha. "Siga a galinha", ele dizia (risos). No set de Mariguella, tínhamos um diretor que estava preocupado com a linguagem, com a câmera, mas com a intensidade da atuação ali.

DISPUTA DE NARRATIVAS

SEU JORGE
Vivemos uma enrascada no Brasil. Quando somos crianças, aprendemos que os negros vieram nos navios negreiros porque queriam. É muito duro. Deixamos passar muitos erros. A História do Brasil foi escrita assim. Sobre Marighella mesmo, não temos informações nos livros. Tem gente que dizia que não via nada durante a ditadura, que não tinha violência nas ruas, mas as pessoas sabiam que tinha tortura. Acho que o filme pode nos ajudar nessa investigação. Tenho esperança que as próximas gerações vão crescer sabendo mais do país em que nasceram.

WAGNER MOURA Hoje, tudo é sobre narrativas. Se temos um ministro do Supremo Tribunal Federal que diz que o que aconteceu em 1964 não foi um golpe de estado, mas um "movimento", é um problema. Se formos estudar a ascensão de todos os governos fascistas, todos começam com a mudança semântica. É sobre as palavras e o que as palavras significam. Esse filme está aqui para dizer que a ditadura foi horrível, foi má, que não foi legal, muito menos leve. Então o filme vai ser abraçado por pessoas que defendem essa narrativa, mas vai ser odiado por pessoas que querem mudar a narrativa. Acho que fizemos um filme fiel à verdade de 1964. E foi por isso, também, que quis incluir uma cena de tortura. Temos uma apenas. Eu tinha muito medo de cair nos clichês dos filmes sobre a ditadura, que aparece um cara sussurrando "me diga onde ele está", enquanto bate em outro cara ensanguentado. Tinha sempre essa preocupação e só tem uma cena no filme. E está lá porque realmente aconteceu. Era verdade que se torturava no Brasil. Não dava para evitar. Então fizemos a cena, com três, quatro minutos, rodada em um plano-sequência, como muitas do filme, pois não queríamos evitar a náusea. Eu queria que as pessoas se sentissem desconfortáveis, porque a tortura era oficialmente aceita como um método de interrogação no Brasil durante a ditadura militar. E isso não é uma questão de narrativa. Marighella faz parte de uma batalha de comunicação porque é sobre um homem que lidava com ideias. E se você lidar com ideias, e com as coisas nas quais acredita, está fodido. É só ver a avalanche de fake news nas últimas eleições. O candidato que dizia que existia uma mamadeira de piroca ganhou. Isso é o Brasil.

PARA ALÉM DO CINEMA

SEU JORGE
Tem uma forte onda conservadora no mundo e isso está crescendo. Muitas mentiras, os políticos estão sendo eleitos em cima de mentiras. Temos que lutar pela democracia. No Brasil, a maioria das pessoas escolheu esse governo democraticamente. No voto. Agora temos isso, daqui a pouco teremos uma chance para mudar. Assim como já mudamos muita coisa. Antes, era normal ser racista, homofóbico, fazer piada de tudo… Isso era normal. Hoje não é mais. Não acredito em guerra, eu acredito em democracia. E tenho certeza de que a luta é por ela.

WAGNER MOURA Bolsonaro era uma piada quando nós estávamos filmando Marighella. Ninguém acreditava nele, todo mundo achava que era era um lunático. Talvez tenha sido esse nosso problema. Mas não quero que o filme se transforme em uma resposta específica a um governo. Não é uma resposta a Bolsonaro. Mas é abertamente contra tudo que Bolsonaro representa. Isso é claro. Porque ele representa um movimento que é contra a arte, a cultura, o pensamento crítico… Ele representa o fascismo. E o filme é contra o fascismo.

LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.

Publicidade

veja também

“O que eu ouvia é que isso não era uma profissão” [parte 2]

“O que eu ouvia é que isso não era uma profissão” [parte 1]

“Arte demanda um completo sacrifício”