Marighella
Depois de vários adiamentos, enfim, a estreia no circuito comercial da cinebiografia do militante da Ação Libertadora Nacional
TEXTO Luciana Veras
03 de Novembro de 2021
Cinebiografia traz Seu Jorge como o personagem-título
Imagem Ariela Bueno/Divulgação
[conteúdo na íntegra | ed. 251 | novembro de 2021]
“Sempre fui fascinado pela história de Marighella, mas mais ainda pelas histórias de resistência do Brasil. Pelos Malês, uma rebelião negra no meu estado natal, a Bahia, por Canudos, pelas demonstrações populares de ira contra o Estado, contra regimes autoritários ou contra ditaduras. Especialmente, claro, pela resistência contra a ditadura que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Como nasci em 1976, no meio da ditadura, sempre me interessei por toda forma de resistência”, afirmava Wagner Moura na manhã de 15 de fevereiro de 2019, horas antes da sessão oficial de seu primeiro longa-metragem como diretor na 69ª Berlinale – seu Marighella, a cinebiografia de um resistente, talvez o maior inimigo do regime militar que durou duas décadas no país, seria exibido hors concours na Berlinale Palast, a maior sala do Festival Internacional de Cinema de Berlim.
Àquela altura, Wagner exultava por estar apresentando pela primeira vez o mergulho nos últimos cinco anos da vida de Carlos Mariguella, líder da Ação Libertadora Nacional – ALN, nascido na Bahia, em 1911, e assassinado com dezenas de tiros em São Paulo, em 1969. “O que quero com esse filme não é glorificar Carlos Marighella nem fazer apologia da luta armada, mas mostrar que a ditadura era má, horrível, que matou, perseguiu e fez desaparecer muitas pessoas”, comentou na entrevista coletiva em que estava diante de jornalistas do mundo inteiro – a maior parte bastante curiosa para indagar sobre o Brasil naquelas primeiras semanas de governo Jair Bolsonaro. “É a democracia que nos garante liberdade de expressão, é nela que posso fazer esse filme”, vaticinava o diretor.
O que nem Wagner, muito menos seu Jorge, intérprete de Marighella, nem os atores Humberto Carrão e Bruno Gagliasso – tampouco as produtoras Andrea Barata Ribeiro e Bel Berlinck, da O2 Filmes, companhia que assina o filme ao lado da Globo Filmes e da Maria da Fé como coprodutoras – poderiam imaginar é que a estreia seria postergada. Muito pelo contrário: havia o ânimo de catalisar o estrondo provocado por aquela estreia mundial. “Nem que tenhamos que montar um lançamento alternativo. Queremos aproveitar a repercussão de Berlim”, responderia Bel Berlinck a uma pergunta da Continente. No entanto, somente agora, dois anos e nove meses depois de Berlim, Marighella entra em cartaz no Brasil na primeira semana deste novembro de 2021. A noção de resistência, afinal, há de também coadunar com a ideia de adaptabilidade.
Primeiro, houve o anúncio da estreia em 20 de novembro de 2019, do Dia Nacional da Consciência Negra. Em seguida, após circular por festivais em Hong Kong, Sydney, Havana, Cairo e Santiago, cravou-se a data de 14 de maio de 2020. Com a pandemia, contudo, qualquer previsão se espatifou e o longa caiu no limbo. Após circular em arquivos piratas, alimentar discussões nas redes sociais, cindir opiniões e fomentar um debate sobre censura ou excesso de cautela por parte das distribuidoras Paris Filmes e Downtown Filmes, eis o ansiado lançamento comercial. O escritor Mário Magalhães, autor da biografia-matriz do filme, resumiu bem em postagem publicada no seu perfil no Twitter em 5 de outubro:
“2003 a 2012: apurei e escrevi a biografia “Marighella” (@cialetras).
2014: cedi ao Wagner Moura e à @o2filmes os direitos de adaptação.
2017 e 2018: filmagem.
2019: première no Festival de Berlim.
2021: depois de muiiiiiiita luta, Marighella será lançado no Brasil em 4/11.”
Filme de estreia do ator Wagner Moura (esq.) na direção foi exibido pela primeira vez na Berlinale de 2019. Foto: Luciana Veras
Partindo do material escrito por Magalhães, Wagner enveredou pela ficção. “Esse era um filme que teria que funcionar como uma ficção, mesmo que uma ficção ancorada em um extenso trabalho de pesquisa. Mas não seria um documentário. Os personagens seriam amálgamas daquelas figuras históricas todas, sabe? Não queria que ninguém da ALN (Ação Libertadora Nacional) olhasse para o filme e dissesse: ‘Olha, aquele sou eu’. Mário foi muito disponível, sempre nos ajudou quando foi preciso, mas o roteiro é de Felipe Braga com colaboração minha e nossa ideia era contar uma história sobre personagens complexos. Não queria criar o ‘caras legais versus os caras ruins’. O filme não reforça estereótipos. Tenho certeza de que vai ser muito criticado pela direita, mas também espero crítica por parte de pessoas de esquerda”, situou, ainda em Berlim.
Para Seu Jorge, Carlos Marighella era um “homem poderoso, consistente, de ação”, em contraste com sua personalidade de “homem da paz e da música”. “Ele era esse mito que aparecia nas canções de Caetano Veloso e Mano Brown, mas que eu não conhecia, nem que parecia comigo. Então para interpretá-lo, precisei da ajuda de Fátima Toledo, com quem já tinha trabalhado em Cidade de Deus”, disse o ator. Fátima Toledo fez a preparação do elenco, que traz ainda Adriana Esteves como Clara, companheira do guerrilheiro, Herson Capri, como Jorge Salles, e Luiz Carlos Vasconcelos, como Branco. Adrian Teijido responde pela fotografia, inspirada na cinematografia dos cineastas belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, e Antônio Pinto (Central do Brasil, Cidade de Deus) assina a trilha sonora.
Marighella é uma obra de arte fundamental aos tempos de hoje, tanto por mirar a ditadura – esse fantasma que segue vivo a nos assombrar (e povoar o imaginário de milhares de brasileiros que pedem sua volta) – como por espelhar as incertezas atuais. Como filme, é passível de despertar reações contraditórias. Se, por um lado, aposta e convence no pulso de uma narrativa de ação, por outro, exagera na composição de alguns personagens – em especial o Lúcio de Bruno Gagliasso, calcado na figura de Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Departamento de Ordem Política e Social/DOPS de São Paulo que caçou Marighella como a um animal.
Porém, entre a Alemanha de 2019 e o Brasil de 2021, ecoa a pergunta: se este primeiro filme de Wagner Moura como diretor fosse uma cinebiografia de Carlos Alberto Brilhante Ustra demoraria tanto para estrear?
LUCIANA VERAS, crítica de cinema e repórter especial da Continente.