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Marighella revive em Berlim

Lançamento internacional do filme do ator Wagner Moura, que estreia como diretor, mostra como a história do político, escritor e guerrilheiro Carlos Marighella tem paralelos com o contexto atual

TEXTO LUCIANA VERAS, DE BERLIM*

15 de Fevereiro de 2019

O ator Seu Jorge, que assume o protagonista, teve preparação com Fátima Toledo, de 'Cidade de Deus'

O ator Seu Jorge, que assume o protagonista, teve preparação com Fátima Toledo, de 'Cidade de Deus'

Foto Ariela Bueno/Divulgação

Cinquenta anos depois de ser assassinado com dezenas de tiros, Carlos Marighella reviveu em Berlim. A 69ª Berlinale acolheu a estreia mundial do primeiro longa-metragem dirigido pelo ator Wagner Moura, escolhido pelo festival para ser exibido fora de competição na mostra principal. Na tarde de quinta (14) e na manhã desta sexta (15), Marighella, com o ator e cantor Seu Jorge na pele do personagem-título, foi aplaudido nas duas sessões para a imprensa. Muitos jornalistas enxergaram na cinebiografia do escritor, político, artífice do Partido Comunista do Brasil e da guerrilha contra a ditadura militar, diversos paralelos com o momento atual do país.

Wagner Moura, reverenciado em Berlim pelo papel de capitão Nascimento de Tropa de elite, de José Padilha, que saiu daqui com Urso de Ouro em 2008, iniciou a entrevista coletiva afirmando que seu filme não era “um ato de resposta ao governo de Jair Bolsonaro”: “Passei cinco anos com o projeto, filmamos ainda durante o governo Temer e não fazíamos ideia do que poderia acontecer”. Mas também foi enfático: “Estamos vivendo uma situação terrível no Brasil. O atual presidente é homofóbico, racista, não respeita as populações indígenas”.

Baiano como Marighella, ele revelou que, tão logo saiu Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo, a biografia escrita por Mário Magalhães publicada em 2012, a neta do guerrilheiro, Maria, lhe procurou com uma exortação: “A gente tem que filmar isso aqui”. “Nasci em 1976, no meio da ditadura, mas embora seja um assunto muito próximo a mim, pois sempre admirei histórias de resistência contra regimes e estados autoritários, cresci numa geração bem diferente daquela que o filme retrata. Uma geração que talvez tenha começado a se interessar por esse assunto depois de ver Anos rebeldes”, comentou o diretor, aludindo ao seriado produzido pela Rede Globo, em 1992.


Seu Jorge e o diretor Wagner Moura. Foto: O2 Filmes/Divulgação

Uma vez resolvido que ia, de fato, estrear na direção com um projeto ousado, ele assentou algumas decisões. “Não me considero um diretor, sou um ator que dirigiu um filme e, desde o início, uma coisa era bastante clara: esse era um filme que teria que funcionar como uma ficção, mesmo que uma ficção ancorada em um extenso trabalhado de pesquisa. Mas não seria um documentário. Os personagens seriam amálgamas daquelas figuras históricas todas, sabe? Não queria que ninguém da ALN (Ação Libertadora Nacional) olhasse para o filme e dissesse: ‘Olha, aquele sou eu’. Mário foi muito disponível, que sempre nos ajudou quando foi preciso, mas o roteiro é de Felipe Braga com colaboração minha e nossa ideia era contar uma história sobre personagens complexos. Não queria criar o ‘caras legais versus os caras ruins’. O filme não reforça estereótipos. Tenho certeza de que vai ser muito criticado pela direita, mas também espero crítica por parte de pessoas de esquerda”, afirmou Wagner Moura.

A narrativa se concentra nos últimos cinco anos da vida de Mariguella, justamente entre o início do golpe militar e 1969, primeiro ano pós-AI-5, quando a repressão passou a ser mais sangrenta. Wagner toma como referência o cinema dos irmãos belga Luc e Jean-Pierre Dardenne para justificar a câmera epidérmica, quase colada na pele dos personagens, e feérica, correndo atrás do guerrilheiro em ações como assalto a banco ou roubo de armas em um trem – a fotografia é de Adrian Teijido: “As pessoas até riem quando digo isso, mas é verdade, a maior referência era os irmãos Dardenne. Queria fazer um filme de ação com aquele tipo de linguagem e contar aquela história de resistência usando todas as ferramentas cinematográficas disponíveis. O primeiro corte tinha mais de 4h”.

ELENCO
Luiz Carlos Vasconcelos, Adriana Esteves, Humberto Carrão e Bruno Gagliasso estão no elenco. Gagliasso vive o inspetor Lúcio, que Wagner criou a partir da figura do delegado Sérgio Fleury, homem forte do Dops de São Paulo que se encarregou da caça a Marighella. “Sempre existe a escória da história e o meu personagem é a escória da história brasileira. Mas ele acreditava naquilo”, pontuou Bruno. Ele protagoniza uma extensa cena de tortura, em que os métodos para lidar com os “subversivos”, como espancamentos e choques elétricos, são explicitados.

Wagner Moura argumenta: “Sabemos que aquilo acontecia nos porões, então o filme tinha que lidar com aquela extrema violência. Não queria fazer uma cena clichê, eu queria uma cena forte mesmo, que as pessoas se sentissem mal quando vissem”. Carrão, que vive um guerrilheiro chamado Humberto (segundo o diretor, os próprios atores e atrizes pediram que seus personagens tivessem seus nomes), atentou para o culto aos torturadores e à tortura que ainda existe: “No Brasil que pratica um genocídio da população negra e periférica, no país que, em 2010, estendeu a anistia aos torturadores, nós sabemos que a tortura nunca acabou”.

Enquanto todos tiveram dois meses de preparação com Fátima Toledo, Seu Jorge chegou ao projeto quando faltava apenas um mês para iniciar as filmagens. “Nasci em 1970, um ano depois da morte de Marighella, e cresci sem nunca ter ouvido falar dele. A primeira vez em que ouvi foi através das canções de Caetano e de Mano Brown. Ele era um homem poderoso, consistente, um homem de ação. Eu sou um homem da paz, da música, então para interpretá-lo eu precisei da ajuda de Fátima, com quem já tinha trabalhado em Cidade de Deus”, situou o ator.

RESISTÊNCIA
Tanto ele como Wagner possuem uma noção acurada do alto teor de combustão política que Marighella é capaz de despertar no Brasil. À Continente, respondendo uma pergunta sobre a tendência da reescrita da História como forma de apagar e silenciar quem se opõe a regimes fascistas, Seu Jorge sentenciou: “As pessoas hoje dizem que não houve escravidão no Brasil, que os negros eram donos dos navios negreiros. Elas decidiram por uma mudança no Brasil, o voto precisa ser respeitado, a democracia precisa ser conservada, mas é preciso resistir”.

O diretor alerta para “as mudanças semânticas” e põe seu filme na batalha das narrativas: “Quando um ministro do Supremo Tribunal afirma que o golpe de estado de 1964 não foi um ‘golpe’, e sim um movimento, percebemos que já está em curso essas mudanças semânticas que acompanham todos os regimes fascistas. Se formos estudar todos os governos fascistas, vamos ver que tudo começou assim. O que quero com esse filme não é glorificar Carlos Marighella nem fazer apologia da luta armada, mas mostrar que a ditadura era má, horrível, que matou, perseguiu e fez desaparecer muitas pessoas”.


Coletiva de imprensa do filme em Berlim, nesta sexta (15). Foto: Luciana Veras

Uma produção da O2 Filmes em parceria com a Globo Filmes, Marighella não tem previsão de estrear no Brasil. Mais cedo, em conversa com os jornalistas, Wagner Moura expressava desalento com a decisão da Paris Filmes, a distribuidora, de esperar uma hora “mais tranquila” no turbulento estado de coisas no país, para lançar nos cinemas. No entanto, na coletiva, as produtoras Andrea Barata Ribeiro e Bel Berlinck asseguraram que não vão demorar para colocar o filme em cartaz. “Nem que tenhamos que montar um lançamento alternativo. Queremos aproveitar a repercussão de Berlim”, comentou Andrea. “E além do circuito comercial, também queremos levar o filme para acampamentos do MST, salas alternativas, cineclubes e para o interior”, completou Bel.

À vontade entre o inglês e o português na hora de responder jornalistas do mundo inteiro, e consciente da importância simbólica do seu primeiro filme, Wagner Moura exaltou a democracia – “é ela que nos garante liberdade de expressão, é nela que posso fazer esse filme” – e a capacidade de resistir. “A resistência é importante. Todo cidadão tem o direito e a obrigação de resistir a um Estado violento.” Questionado pela Continente se tinha algum plano para mostrar o filme ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Wagner respondeu: “Não tinha pensado nisso ainda, mas ia adorar mostrar para ele”.

LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica da Continente.

* A jornalista viajou a Berlim por meio de uma parceria entre a Continente e o Centro Cultural Brasil-Alemanha – CCBA.

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