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Biografia: Só fale de mim se eu permitir

Há um mês, instalou-se no país a dicussão sobre o direito dos artistas de não serem expostos em narrativas não autorizadas, em oposição à opinião de que suas vidas são um bem público

TEXTO Luciana Veras

01 de Novembro de 2013

Imagem Karina Freitas

Em 10 de janeiro de 2002, no primeiro mês do último ano da segunda gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, inscreveu-se na história do Brasil a lei de número 10.406, que instituía o Código Civil Brasileiro. Em sua Parte Geral, o instrumento normativo que regula a vida de todos os cidadãos nascidos em solo pátrio abre com o Livro I – Das pessoas com o Título I – Das pessoas naturais. No Capítulo I – Da personalidade e da capacidade, estão os mais célebres dos 2.046 artigos que entraram em vigor em janeiro de 2003, já no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, após o período de vacatio legis, o hiato que decorre entre a promulgação e a concreta efetivação. Ei-los, os artigos 20 e 21, na proa de um debate que se iniciou em outubro e instalou-se entre compositores, produtores, cineastas, jornalistas, escritores e advogados como uma discussão intensa, contraditória e nacionalizada.

Diz o artigo 20: “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”. Seu parágrafo único: “Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes”. O artigo 21 exprime que “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.

Em novembro de 2011, o Sindicato Nacional dos Editores de Livros criou a Associação Nacional dos Editores de Livro (Anel) para submeter uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ao Supremo Tribunal Federal (STF) com o objetivo de derrubar o artigo 20. A ADI 4815 foi autuada no STF em 5 de julho de 2012 e distribuída, no dia seguinte, para a ministra Carmen Lúcia. Na petição, assinada pelo advogado carioca Gustavo Binenbojm, a Anel sustenta seu pleito enfatizando que os artigos em questão “em sua amplitude semântica, não se coadunam com a sistemática constitucional da liberdade de expressão e do direito à informação”.

Vai além: “As pessoas cuja trajetória pessoal, profissional, artística, esportiva ou política, haja tomado dimensão pública, gozam de uma esfera de privacidade e intimidade naturalmente mais estreita. Sua história de vida passa a confundir-se com a história coletiva, na medida da sua inserção em eventos de interesse público”. A argumentação sacramenta, ainda, que “exigir a prévia autorização do biografado (ou de seus familiares, em caso de pessoa falecida) importa consagrar uma verdadeira censura privada à liberdade de expressão dos autores, historiadores e artistas em geral, e ao direito à informação de todos os cidadãos”.


Biógrafa de Luiz Gonzaga e Baden Powell, Dominique Dreyfus revela a omissão de fatos. Foto: Divulgação

Uma audiência pública no STF sobre o assunto das “biografias não autorizadas” está marcada para os dias 21 e 22 deste mês. É possível, também, que a Câmara Federal vote o Projeto de Lei 383/2011, de autoria do deputado Newton Lima (PT/SP), que, na verdade, retomou noções apresentadas – porém nunca votadas – em legislaturas anteriores, ao propor uma alteração no mesmo artigo 20, com o intuito de “garantir a divulgação de imagens e informações biográficas sobre pessoas de notoriedade pública, cuja trajetória pessoal tenha dimensão pública ou cuja vida esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade”.

Independentemente das datas em que o PL 383/2011 e a ADI 4815 sejam apreciados nas respectivas instâncias, a celeuma se disseminou nos círculos artísticos, políticos e midiáticos. De um lado, o grupo Procure Saber que, tão logo raiou outubro, assumiu uma postura contrária à ADI e que, presidida pela empresária e produtora Paula Lavigne, tem em suas fileiras artistas do quilate de Roberto Carlos, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Erasmo Carlos, Djavan, entre outros. Eles se definem como “um grupo de autores, artistas e pessoas ligadas à música dedicado a estudar e informar os interessados e a população em geral sobre regras, leis e funcionamento da indústria da música no Brasil”. “Estamos no meio de um conflito entre gigantes, dois direitos fundamentais da Constituição: o da liberdade de informação e o direito à privacidade”, comentou Paula Lavigne, em programa exibido em um canal pago em 16 de outubro (procurada pela Continente, a Procure Saber não retornou as solicitações de entrevista).

Chico Buarque defendeu o direito à privacidade, tomando como exemplo o autor de O divã, que, do alto do seu reinado, tirou de circulação Roberto Carlos em detalhes, biografia lançada por Paulo César de Araújo em 2006, pela editora Planeta, 22 mil exemplares vendidos antes do recolhimento a mando da 20ª Vara do Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo. O compositor de Apesar de você, cuja carreira sofreu, em diversos momentos, a devassa da censura, enredou-se em constrangimento ao afirmar não ter sido entrevistado por Araújo, que logo divulgou foto e vídeo feitos durante encontro dos dois, em 1992. Dias depois, entrevistado por um jornal em Paris, Chico admitiu: “Posso ter me precipitado, mas eu acho e continuo achando que o cidadão tem o direito de não querer ser biografado. (..) O que a gente pretendia era deixar as coisas como estão, no sentido de se poder preservar a privacidade de qualquer cidadão. Repito: posso ter me enganado. Eu julgava que eu estava tendo uma posição sensata”.

Lavigne, porta-voz do grupo, posicionou-se a favor de remuneração para os biografados e de pagamento de royalties para herdeiros, da mesma maneira que Djavan, em nota oficial, postulou que “editores e biógrafos ganham fortunas enquanto aos biografados resta o ônus do sofrimento e da indignação”. “Corremos o risco de estimular o aparecimento de biografias sensacionalistas, em um país em que a reparação pelo dano moral é ridícula”, disse a empresária. Sua motivação, no entanto, escancarou-se em outra declaração: “Se alguém quiser escrever uma biografia e publicá-la na internet sem cobrar, tudo bem. O problema é lucrar com isso”. Do mesmo modo que seu ex-marido e parceiro profissional Caetano Veloso, em 5 de outubro, publicou no seu perfil no Twitter @caetanoveloso: “Querem fazer biografias sem autorização? Ok! Mas paguem ao biografado”.


Autor de Getúlio, Lira Neto defende que a polêmica transcende
biografias. Foto: Renato Parada/Divulgação

A frase foi apagada horas depois. Mas o jornalista e escritor cearense Lira Neto, biógrafo de José de Alencar, Padre Cícero, Maysa e, mais recentemente, de Getúlio Vargas, viu e replicou. “O que está em jogo não é um simples cabo de guerra entre biógrafos e celebridades, é mais sério e profundo. Isso transcende a questão das biografias e diz respeito aos historiadores, jornalistas, sociólogos. Pelo que está exposto, qualquer narrativa tem que ser autorizada pelo protagonista da história, o que nos legaria uma História única, oficial, contada com o aval do personagem principal. Isso é absolutamente inadmissível, surreal e vexatório dentro de uma perspectiva internacional”, expõe à Continente.

PECUNIÁRIO
Lira Neto conta que não teve problema algum para pesquisar e redigir os três volumes de Getúlio, que a Companhia das Letras vem publicando desde 2012 (o último tomo sairá em agosto de 2014). “Sequer me preocupei em procurar a família dele pra pedir permissão, pois considero que a sua história não é propriedade privada de ninguém. Acontece que, depois do primeiro livro, a sua neta, Celina Vargas, escreveu nas redes sociais que estava gostando muito do primeiro volume. Motivado por isso, entrei em contato. Ela me recebeu de forma carinhosa, me forneceu documentos novos que não estavam incorporados ao acervo dele e me disse de forma sincera que tinha medo do segundo livro, mas que, como uma cientista social, compreendia que a biografia teria obrigação de tocar em assuntos que, para ela como neta, não seriam saborosos”, acrescenta.

O seu questionamento sobre a posição adotada pelos membros do Procure Saber – artistas não podem ser biografados, mas políticos e outras figuras públicas, sim – é incisivo: “Não há sentido em artistas acharem que estão em um patamar superior, além dos mortais. Se essas pessoas têm a exata noção do que estão propondo, e se forem além do propósito pecuniário e financeiro, precisam saber que vão inviabilizar o conhecimento histórico. O Brasil seria um caso sui generis de uma democracia que vai proibir a própria narrativa da sua história”, vislumbra Lira Neto.

O cineasta carioca Sílvio Tendler concorda e vai além. “É um absurdo que, pra fazer uma biografia, tenha que pedir autorização. É muito grave na literatura, no cinema, na história. Chico Buarque defende isso, mas já imaginou se o pai dele precisasse de autorização para contar a história do Brasil? E se Gilberto Freyre precisasse de autorização também?”, indaga o diretor de Glauber, o labirinto do Brasil (2003), Jango (1984), O mundo mágico dos Trapalhões (1981) e Os anos JK (1980). Tendler lembra à Continente que a solução idealizada pelo Procure Saber “só contempla os ricos”. “Tudo isso termina em acordos econômicos. O subtexto é dinheiro. Quero ver se vão querer proibir um filme sobre um operário ou grande artista que tenha significado na arte, mas não tenha expressão. O que estão tentando fazer é um crime contra a arte e a cultura. A censura é o inferno”, vaticina.

Em todos os seus documentários biográficos, o único imbróglio enfrentado foi com a família de Glauber Rocha (1939-1981), que adiou por 19 anos o aval para que o filme fosse finalizado. “Mas tive um problema ao contrário com a viúva de Milton Santos. Pelas leis absolutamente idiotas, precisava de uma autorização da família para a Biblioteca Nacional. A viúva achava que não precisava me autorizar nada, porque o filme pertencia a mim. A família tem plena consciência de que a biografia é livre. E me vem um artista que faz tudo pra alcançar a fama e, quando chega aos píncaros da glória, resolve não querer ser biografado... Brincadeira”, ironiza.


Autor de várias cinebiografias, Silvio Tendler diz que “a censura
é o inferno”. Foto: Gabi Nehring/Divulgação

Já o cineasta moçambicano Ruy Guerra, há muito radicado no Brasil, alerta para o “aproveitamento sensacionalista” da controvérsia e para a tentativa de desqualificação do caráter dos artistas que são contra a mudança no Código Civil. “Minha indignação é ao uso que está sendo feito de um debate sério e importante. Acusam de censores pessoas idôneas, artistas que merecem todo o respeito. É inaceitável, é uma atitude ignóbil. Há um debate mais profundo a ser feito, e não há nada resolvido no plano jurídico. No entanto, a mídia, vestal que nunca pode ser criticada, não reconhece a pluralidade de comportamentos. Que liberdade de expressão é essa que esses artistas, que têm filhos, famílias, uma ligação com a sociedade, não podem se expor sem ser acusados de praticar um atentado a essa mesma liberdade de expressão?”, questiona.

CONFESSOR
Há quem examine a polêmica por outro viés. “Uma pessoa pública, uma vez que ela assume esse posto, não pode recusar que sua história seja contada. Mas a censura que o biógrafo deve ter é a ética. O biógrafo é, muitas vezes, psicanalista e confessor. Cabe a ele ter a delicadeza de entender que está lidando com intimidade, com confiança”, situa a biógrafa francesa e doutora em Letras Dominique Dreyfus, autora de duas biografias sobre ícones do cancioneiro popular brasileiro (Vida de viajante – a saga de Luiz Gonzaga, de 1996, e O violão vadio de Baden Powell, de 1999). Não houve intrigas entre ela e os biografados.

“Contei com o apoio, a ajuda e a colaboração dos dois. Não tive nenhuma restrição para falar do alcoolismo do Baden ou da paternidade de Gonzaguinha. Baden me perguntava se eu estava contando dos porres dele. Gonzaga me abriu a vida, o coração. Como o que me interessava contar era tudo aquilo que na história dos dois interferia em suas músicas, teve coisa que ficou de fora. E nem que me torturem eu vou contar”, ilustra.


Charge de Miguel, no Jornal do Commercio, refletiu o debate nacional.
Imagem: Reprodução

Para o jurista, advogado e escritor pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho, autor de Fernando Pessoa, uma quase autobiografia (30 viagens a Lisboa para sua confecção e 50 mil exemplares vendidos pela Record desde 2011), “não há um argumento digno para impedir biografias”. “Há que se pensar na dimensão pública do biografado e no interesse da coletividade. Mas há o direito de liberdade de expressão e a responsabilidade do exercício do direito de falar. E também não há argumento digno que impeça a indignação contra alguém que foi irresponsável ao publicar erros. A indenização tem que ser proporcional ao dano. E essa mesma indenização não se constitui censura. Essa é uma afirmação indecente”, contextualiza.

Os direitos à privacidade e de liberdade de expressão, tão evocados ao longo do mês de outubro por biógrafos, biografados, advogados e artistas, estão garantidos pela Constituição promulgada em 1988. O parágrafo X do artigo 5 reza que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Mas, talvez inspirados pelo parágrafo anterior – “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” –, Roberto Carlos, Gilberto Gil e Erasmo Carlos gravaram um vídeo sob a chancela do Procure Saber em que se dispõem a “afastar toda e qualquer hipótese de censura prévia”, mas exigindo garantias contra “ataques, insultos e aproveitadores”. Disponibilizado na internet em 29 de outubro, sinalizou um abrandamento da tese que eles construíram ao longo do mês. “Nunca quisemos exercer qualquer censura, ao contrário: o exercício do direito à intimidade é um fortalecimento do direito coletivo”, pronunciou Gil. “Não negamos que essa vontade em dado momento nos tenha levado a assumir uma posição mais radical”, reconheceu Roberto Carlos, que citou a necessidade de “conciliar o direito constitucional à privacidade com o direito fundamental à informação”.

Refutando qualquer elo com a censura, os três artistas, peças-chave na historiografia da cultura nacional desde a década de 1960, adotaram uma tática para aplacar críticas e aparar arestas. “Não somos censores. Nós estamos onde sempre estivemos, pregando a liberdade”, apregoou o Rei, o mesmo cuja biografia se encontra banida há seis anos. As reações foram variadas: houve quem elogiasse a recuada ou quem classificasse o vídeo como uma tentativa de rebater os argumentos de quem atribuiu ao Procure Saber motivações monetárias. Transformações à vista? O certo é que a contenda, seja no Legislativo, no Judiciário, na surdina das negociações de venda de direitos ou na mídia, apenas principia. 

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