Entrevista

“O que vivemos é a razão de ser desse sistema de produção”

Em entrevista à Continente, historiador argentino Leandro Morgenfeld fala sobre a grave crise econômica que afeta tanto o seu país quanto o Brasil, e é reflexo do capitalismo

TEXTO Débora Nascimento

17 de Outubro de 2018

Historiador argentino é autor do livro 'Vecinos en conflicto', sobre a relação entre seu país e os EUA

Historiador argentino é autor do livro 'Vecinos en conflicto', sobre a relação entre seu país e os EUA

Foto Divulgação

A Argentina vive hoje uma grave crise econômica: aumento do dólar (variando entre 36 e 40 pesos), inflação, desemprego, pobreza e até saques em supermercado – em setembro, um deles culminou com a morte de um adolescente de 13 anos, por policiais. Isso acontece em meio ao governo de Mauricio Macri, bem-recebido pelo mercado financeiro. Nos últimos meses, as moedas de quase todos os países emergentes perderam valor em relação ao dólar, por conta ao aumento das taxas de juros nos Estados Unidos. Mas o peso argentino é a que tem o pior desempenho – o Brasil está em terceiro. A Argentina recorreu ao Fundo Monetário Internacional para pedir ajuda financeira em meio à crise: US$ 50 bilhões, o que significa mais dívida. O histórico de auxílio vem desde os anos 1950 e gera, como condição, medidas de austeridade impopulares. Em entrevista à Continente, o historiador argentino Leandro Morgenfeld, professor da Universidade de Buenos Aires, fala sobre a situação econômica e política dos dois países da América Latina.

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CONTINENTE No Brasil, as informações sobre a atual crise na Argentina são muito superficiais. Por exemplo, só um blog brasileiro noticiou que houve saques em supermercados de Mendoza e Comodoro Rivadavia. Como está, de fato, a situação socioeconômica na Argentina?
LEANDRO MORGENFELD A Argentina está diante de uma situação socioeconômica muito complicada, teve este ano mais de 100% de desvalorização da moeda. Temos uma inflação que todos os analistas indicam que será acima dos 40% este ano, a projeção do dólar para o fim de ano está em 38 pesos, o dobro, mesmo faltando um quadrimestre, e o pressuposto previa um crescimento de 3 a 5% do PIB, e estamos diante de uma queda de 2 a 2,5 pontos, segundo o próprio governo. Esta semana, consultorias privadas disseram que estamos em uma situação de recessão, com uma enorme inflação, há um processo de estagflação, uma deteriora todos os indicadores sociais. Há um aumento de desemprego, que vai chegar a dois dígitos, há um aumento da pobreza, calculam 35% de pobreza até o fim de ano. Portanto, como vem reconhecendo o governo, o ano que vem não vai crescer também, como se fosse uma grande recessão. Portanto estão se deteriorando os indicadores econômicos e sociais, e está sendo mantido um tarifaço nos serviços públicos, um aumento muito forte nas contas de luz, de gás, de água. E isso repercute com muita força nos setores mais negligenciados. Então veremos um aumento nas tensões sociais, com a possibilidade de saques. Em setembro, tivemos uma situação confusa em um supermercado na região do Chaco: a morte, através da repressão policial, de um menino de 13 anos. Esta é a situação, principalmente na província de Buenos Aires, uma situação social bastante explosiva.

CONTINENTE Em entrevista para a Folha de S. Paulo, em 2001, na ocasião do lançamento do filme O Pântano, a cineasta Lucrecia Martel afirmou "É vergonhosa a relação que a Argentina tem com os EUA". Você poderia nos explicar e resumir como é essa relação que você já escreveu no livro Vecinos en Conflicto?
LEANDRO MORGENFELD Em relação ao vínculo entre Argentina e Estados Unidos, durante os 12 anos de governos dos Kirchner, esse vínculo foi oscilante, com alguns pontos de entendimento, mas também muitos pontos de tensão, sobretudo pela pressão dos fundos buitres (um fundo de capital de risco). Desde que Macri assumiu, mudou radicalmente a política exterior, e a Argentina voltou a como esteve durante os anos 1990, com a presidência de Menem. Uma relação de alinhamento com os Estados Unidos, tendo a volta do que se chamava de “relações carnais” com os Estados Unidos, só que tentando fugir um pouco mais as formas que a Argentina alinhou a sua política exterior à agenda econômica, política, militar e ideológica dos Estados Unidos. Macri cultivou uma relação muito próxima com Obama e está tentando fazer o mesmo com Trump, apesar de ter apoiado Hillary Clinton na campanha eleitoral. Macri visitou, foi o primeiro mandatário da região, depois do Peru, a visitar Trump na Casa Branca em abril de 2017, e agora espera ser o primeiro presidente da região a receber Trump. Havia sido previsto, e acabaram de confirmar esta semana, que ele vai chegar a Buenos Aires no dia 30 de novembro ou primeiro de dezembro, para a cúpula presidencial do G-20. Porém, a Argentina recebeu o mesmo distrato, comercialmente falando, que outros países, ou seja, o aprofundamento do protecionismo dos Estados Unidos, que eliminou, no ano passado, a possibilidade da Argentina exportar biodiesel, que era o principal produto de exportação para os Estados Unidos, e isso gerou um déficit argentino na balança comercial com os EUA de mais de 3 bilhões de dólares, no ano passado, correspondentes a quase 40% do déficit comercial total da Argentina. No ano de 2017, a Argentina teve o pior déficit comercial de sua história. A abertura comercial do governo de Macri, que deixa que entrem exportações de outros países na Argentina, em um contexto no qual os países estão cada vez mais fechando suas fronteiras, seu comércio e sua economia, faz com que a Argentina tenha um fortíssimo déficit comercial que é uma questão que explica as carências que temos na Argentina.

CONTINENTE Entre 2001 e 2018, houve algum período de uma melhora na economia e na vida dos argentinos?
LEANDRO MORGENFELD Entre 2001 e 2018, sim, houve uma melhora na economia, depois de anos muito críticos, 2001, 2002, 2003, uma melhora na economia, acompanhando, se observamos bem, um processo que se deu em vários países da América Latina, porque se seguiram, nos primeiros 10 ou 12 anos do século XXI, um processo de boom das commodities, ou seja, um forte aumento do preço e da demanda de matérias-primas. A China se transformou, como para muitos outros países, no segundo maior parceiro comercial da Argentina depois do Brasil, e isso resultou em vários anos de constante crescimento econômico e uma política econômica levemente redistributiva, que aliviou tensões, e em que se via um esquema um pouco mais progressivo nessa época, que permitiu que melhorassem todos os indicadores sociais. O desastre de 2001, em que vamos ter uma pobreza acima de 50%, e níveis de miséria espantosos, a Argentina teve um processo de recuperação econômica e teve, durante um tempo uma situação econômica muito melhor. Isto começou a se reverter por volta de 2014, por cerca de um ano, quando começou a repercutir, nos países da América Latina, a crise internacional. A partir de 2014, mas sobretudo a partir de 2016, quando ocorreu a mudança da política econômica com o governo de Macri, começamos a ver uma deterioração nos indicadores sociais e nos indicadores da economia em geral. Teremos um PIB per capita em 2018 inferior ao de 2015, quando Macri assumiu.

CONTINENTE No Brasil temos a impressão de que os argentinos são um povo mais consciente politicamente que o brasileiro. É isso mesmo? A que se deve isso? Educação? Informação?
LEANDRO MORGENFELD Quanto à consciência política, efetivamente, há uma tradição histórica de uma luta política, uma manifestação política muito precoce na Argentina, um movimento sindical, uma classe trabalhadora que começa a se unir a partir do fim do século XIX, tem suas primeiras grandes organizações ao princípio do século XX. Isso foi usado nos anos 1930 durante o Peronismo, e esta grande tradição na Argentina firma, até processos, do ponto de vista social, combativos e muito importantes. Inclusive nos anos 1990, nos anos do pós-ditadura, das privatizações durante o menenismo, já resistiram às tentativas de privatização daquela ocasião. E isto estamos vendo agora, também. Bastou que Macri ganhasse as eleições, e ganhado também apoio nas eleições legislativas do ano passado, já tentou um processo de reforma previdenciária similar ao que aconteceu no Brasil. Apesar de não ter sido tão drástica quanto a brasileira, e de ter ganho as eleições por uma ampla margem em outubro de 2017, a reforma de dezembro encontrou uma rebelião social. O mesmo está ocorrendo agora com o tema da educação, vimos durante cinco semanas um conflito com os professores universitários. Eles mobilizaram em todo o país mais de 600 mil pessoas. No dia 13 de setembro, houve outra enorme mobilização de toda a educação, em uma forte reação de todos os setores vinculados ao público, com a saúde, a educação, com os direitos dos trabalhadores, que frearam, por exemplo, a tentativa de estabelecer também uma reforma trabalhista, que pretendia copiar o modelo brasileiro. Sem o êxito da reforma trabalhista, foi enfraquecida também a proposta de reforma previdenciária, que tomou formas bem menos drásticas do que pretendia o governo, e houve uma grande mobilização visando rechaçar essa política econômica do governo, e o acordo com o FMI.

CONTINENTE A propósito, no Brasil, a opinião pública costuma ser manipulada pela grande mídia nacional. Na Argentina, há isso também? Os argentinos costumam ser manipulados pela comunicação?
LEANDRO MORGENFELD Sim, na Argentina ocorre também a manipulação da opinião pública. Assim como vocês têm a Rede Globo, na Argentina há a rede multimídia do Clarín, que possui não apenas o jornal mais lido no país, como um canal de televisão líder de audiência, tem a rádio mais ouvida do país e controla todas as operadoras de TV por assinatura, assim como também provedoras de internet e muitos outros negócios. O Grupo Clarin, junto a outros menores, mas sobretudo o Clarín, tem um poder de fogo enorme, que é condicionado a todos os governos. Da última ditadura militar até agora, tem negociado com todos, e tem conseguido o que quer, pois tende a criticar os governos que não cedem às suas exigências. Ocorreu no governo anterior que havia uma boa relação com Nestor Kirchner, e a partir da posse de Cristina Kirchner, o grupo Clarín passou a fazer uma oposição sistemática. Foram fundamentais para o triunfo de Macri, são aliados muito importantes, mas à medida que o governo começa a cambalear e não tem mais forças para conseguir o que querem, começam a inflar outros candidatos, buscando favores dados para obter suporte de mídia. Então, nós realmente temos uma estrutura de poder de mídia bastante semelhante à do Brasil, com bastante manipulação por parte dos meios de comunicação.

CONTINENTE Há uma teoria de que o crescimento da extrema direita na Europa se deve à crise econômica. Você concorda com isso? Como a economia afeta a política de um país? No Brasil, o candidato mais cotado nas pesquisas para presidente da República, Jair Bolsonaro, é da extrema direita. Corremos o risco de uma onda conservadora na América Latina?
LEANDRO MORGENFELD Efetivamente, a crise econômica, a situação de novas perspectivas, não apenas na Europa, mas também nos Estados Unidos, tem levado à emergência de alguns líderes de extrema direita, como se pode ver também no Brasil, com o caso de Bolsonaro. No caso da Argentina, há alguns exponentes, mas são menores. Por sorte não se tem discutido uma saída à direita para a atual crise econômica, temos um governo de direita, porém uma direita com características singulares, digamos, uma direita que está a favor do liberalismo econômico e cuja parcela mais desagradável se encontra na repressão aos direitos civis, aos direitos individuais. São parte da coalizão governante mas não são postas em primeiro plano. Não creio que na Argentina hajam condições para que surja um personagem ao estilo do Trump, ou Bolsonaro. Não creio que, na oposição ao governo Macri haja uma opção de oposição mais à direita.

CONTINENTE Por que é tão difícil as pessoas entenderem que essa crise é a crise do capitalismo, do neoliberalismo?
LEANDRO MORGENFELD Me parece que há todo um trabalho por parte do discurso dominante, da ideologia dominante, para cuidar de encerrar a discussão sobre o capitalismo. Para o neoliberal, a crise aparece sempre como produto de situações particulares, ou produto da corrupção, sem contextualizar que essa corrupção é própria do sistema capitalista e é típica dos sistemas políticos de todos os países latino-americanos há muitas décadas. E que isso é um elemento de chantagem e manipulação porque a maioria dos partidos políticos, quase todos aqueles no governo, participam desse esquema corrupto e isso permite aos poderes os chantagearem e extorquirem, caso ajam contra seus interesses. Parece-me que o grande desafio para os setores anticapitalistas, para os setores de esquerda, é explicar que o capitalismo é um sistema que sistematicamente tem suas crises, que sistematicamente, por sua própria lógica, tendem à exploração dos bens comuns da Terra, dos recursos naturais, até destruir o planeta em que vivemos, e que o motivo de sua existência é a produção de mais-valia graças à exploração do homem pelo homem. Só que, quanto mais produzem, geram uma distribuição mais desigual da renda, a nível global, e não só nacional, em que os que mais têm concentram cada vez mais riqueza, e os que menos têm, os mais negligenciados, têm cada vez menos. Explicar que, em todo caso, o neoliberalismo, pelo menos como eu o entendo, é uma face (do capitalismo), dos anos 1970 para cá, que nada mais nada menos é do que uma grande ofensiva do capital sobre o trabalho. Depois de cada crise, há uma grande ofensiva contra os direitos que conseguiram os trabalhadores e as classes populares, sobretudo nos países da Europa, mas também nos países da nossa região. Por isso, na perspectiva histórica, esta ofensiva vai contra tudo o que tem a ver com o público e com o comum. A saúde pública, a educação pública, a intervenção do estado por meio de qualquer política de regulação. É a tentativa do capitalismo em continuar a se desenvolver, apesar da evidente deterioração das condições de vida da maior parte da população. Por isso, acho muito importante que os meios de comunicação, e nós que somos críticos da atual condição, ponhamos a ênfase dessa discussão nas políticas neoliberais e nos sinais de um capitalismo que está em crise, e que o que estamos vivendo não é nada extraordinário, é apenas a razão de ser desse sistema de produção.

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