Reportagem

Ecos do colapso

Dez anos depois, a crise econômica mundial ainda reverbera em vários países, como o Brasil, acendendo discussões acerca do modo de vida capitalista

TEXTO Débora Nascimento
ILUSTRAÇÔES Maurício Planel

01 de Outubro de 2018

Para o filósofo e linguista Noam Chomsky, a desigualdade hoje é mais grave que na Grande Depressão, quando havia uma sensação de esperança.

Para o filósofo e linguista Noam Chomsky, a desigualdade hoje é mais grave que na Grande Depressão, quando havia uma sensação de esperança.

Ilustração Mauricio Planel

[conteúdo exclusivo para assinantes | ed. 214 | outubro de 2018] 

Mr. Potter – Tem pressionado para receber as hipotecas?
Mr. Bailey – Tempos ruins. Muitos estão sem emprego.
Mr. Potter – Execute-as.
Mr. Bailey – Não posso. Eles têm crianças.
Mr. Potter – Não são minhas.
Mr. Bailey – Mas são de alguém, senhor.
Mr. Potter – Você dirige um negócio ou uma entidade filantrópica? Não com meu dinheiro!

O diálogo acima é testemunhado pelo filho de Mr. Bailey, George, protagonista do clássico A felicidade não se compra. Ao se tornar adulto, George, interpretado pelo ator James Stewart, passa a assumir, com a morte do pai, o cargo do patriarca na empresa de empréstimos e continua a batalha com o ganancioso Mr. Potter. Esse mundialmente adorado filme dirigido por Frank Capra foi lançado em 1946, um ano após o final da Segunda Guerra, na qual Capra testemunhou e documentou os horrores que devastaram a Europa. Na volta dessa marcante experiência e influenciado pelo Neorrealismo, que expunha as mazelas sociais da Itália, ele dirige uma história que ia na contramão das amenas temáticas hollywoodianas. Através do longa, o cineasta revelou um pouco do que o glamoroso cinema norte-americano escondia: a pobreza, o desemprego, a falta de moradia das classes mais baixas e periféricas do país, reflexos da Grande Depressão.

George Bailey não poderia ser nada mais do que um personagem de ficção. Afinal, ele é um homem que administra uma instituição financeira e se compadece com as carências dos mais necessitados. Na vida real, alguém com esse perfil ou seria um raro exemplar no setor financeiro ou simplesmente não existiria. Foi o que comprovou a crise econômica, deflagrada há 10 anos nos Estados Unidos, deixando um rastro de destruição no mundo, perceptível até hoje em diversos países. Ao contrário de George Bailey, que pretendia administrar de forma responsável o dinheiro dos clientes, para que não se tornassem sem-teto, ocorreu exatamente o inverso em Wall Street.

Uma brincadeira absolutamente irresponsável com as finanças alheias, como se fosse uma gigantesca e intrincada Las Vegas Financeira, afetou a vida de boa parte dos habitantes da Terra. Só nos Estados Unidos, a hecatombe deixou milhões sem casa, sem emprego, sem aposentadoria, inclusive os baby boomers (nascidos no pós-guerra, agora na faixa etária dos 60, 70 anos) e expulsou milhões da classe média. Atualmente, cerca de 52 milhões de americanos recebem algum tipo de benefício alimentar e o desemprego atinge oficialmente 6,4 milhões; esses números contabilizam apenas os que procuraram emprego nos últimos 30 dias. Há ainda os desalentados, termo que se refere aos que desistiram de ir em busca de uma vaga de trabalho. Para exemplificar os efeitos hoje, na mesma Los Angeles onde foi filmado A felicidade não se compra, há 58 mil moradores de rua.

O colapso econômico destruiu de vez o american dream, o sonho americano, conceito social popularizado durante a Grande Depressão pelo historiador James Truslow Adams em sua Epopeia da América, e que foi posto em prática a partir daquele 1946, no pós-guerra.

“Meu pai, um operário da linha de montagem da General Motors, comprou e pagou nossa casa antes que eu terminasse o jardim de infância. Trocávamos de carro a cada três anos. Íamos a Nova York todo verão. Estudávamos em escolas católicas, vivíamos bem. Se isso era o capitalismo, eu adorava… assim como o resto do mundo. Durante esses anos, muitos ficaram ricos e tiveram de pagar a taxa máxima de imposto, de 90%. 90%? Sim. Mas ainda viviam como Bogie e Bacall (o casal Humphrey Bogart e Lauren Bacall). E o que nós, como país, fizemos com todo esse dinheiro? Construímos represas, pontes, rodovias interestaduais, escolas, hospitais. Até enviamos o homem à Lua. As coisas pareciam estar no rumo certo. Papai tinha um emprego seguro e mamãe podia trabalhar se quisesse, mas ela não precisava. Famílias de classe média só precisavam de uma fonte de renda para sobreviver. Nosso sindicato tinha assistência médica e dentária grátis. Os filhos iam à universidade sem precisar de empréstimo. Papai tinha quatro semanas de férias remuneradas todo verão. A maioria das pessoas tinha poupança e pouca dívida. E a pensão de papai estava guardada onde ninguém podia tocá-la. Estaria aguardando sua aposentadoria. Tínhamos tudo isso porque nossos principais concorrentes industriais tinham sido reduzidos a escombros. Assim estavam a indústria automotiva alemã e japonesa. Acho que é fácil dizer que se é o número um, quando não se tem concorrência. Sim, claro que nem tudo era perfeito. Nós nos incomodávamos em suportar um pouco disto e um pouco daquilo, contanto que fôssemos da classe média. E podíamos contar que nossos filhos se sairiam melhor do que nós. Parecia um bom pacto para nós, o capitalismo. Ninguém havia se saído tão bem. E então, quando estávamos no meio desse grande caso de amor com o capitalismo…”, relatou o diretor Michael Moore, um típico exemplar baby boomer, no documentário Capitalismo, uma história de amor (2009), lançado um ano após o tsunami financeiro.

Segundo a historiadora Elaine Tyler May, o boom da Guerra Fria projetou para o mundo uma “visão de riqueza da classe média” e “os benefícios do sistema capitalista americano” em detrimento da vida dos soviéticos. Havia “a crença de que o capitalismo de livre mercado beneficiaria a todos, proporcionando a boa vida a uma classe média em constante expansão”. Ou seja, o ideal de bem-estar e igualdade estaria no capitalismo e não no comunismo. Essa política, que beneficiou menos os negros, “motivou os americanos brancos da classe trabalhadora e da classe média a agirem de acordo com as regras”. Afinal, havia uma confiança nas instituições e na figura do presidente. Embora a tragédia econômica de 2008 não seja a primeira e nem provavelmente a última crise gerada pelo sistema capitalista, ela conseguiu abalar essa credibilidade depositada pelo povo e também a imagem dos EUA como superpotência mundial.

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