CONTINENTE Nos anos 1950 e 1960, o acesso aos psicodélicos acabou por ampliar a consciência coletiva. Você acha que agora a retomada dos psicodélicos tem mais a ver com uma maneira de lidar com esse trauma coletivo, com essa dificuldade de dar sentido às coisas? Como se o estado alterado de consciência fizesse mais sentido do que a realidade concreta e material?
BRUNO TORTURRA Se eu tivesse que dizer uma lição importante dos psicodélicos, de tantas possíveis, é que o estado ordinário de consciência, o estado ordinário não alterado, ele é alucinatório. É uma abstração, ele é arbitrário e construído por uma neurotransmissão que constrói um sistema holográfico, aqui, na nossa frente. A realidade é essencialmente a restrição, ao mínimo, de tudo que está acontecendo no mundo objetivo, para você fazer um sentido narrativo que se encerra numa palavra, numa frase, numa percepção. A realidade não é um conceito aceitável para quem altera o suficiente a cabeça. Você não toma psicodélico para alucinar, você toma psicodélico para perceber que você está sempre meio que alucinando. E isso, supostamente, pode ou não trazer algum tipo de lucidez depois. Mas, sobre o que você falou, acho que tem muito a ver com trauma e tem muito a ver com os anos 1960, sim. Os anos 1960 são uma década muito decisiva e têm muitas similaridades com o que a gente está passando hoje em dia. Uma, eu acho que tem a ver com uma coisa muito parecida, é que o modelo de realidade vigente até meados dos anos 1960 começou a ficar muito instável. Ele desestabilizou, e desestabilizou por muitos motivos. Por motivos estruturais, econômicos e geopolíticos, exatamente como os nossos hoje; mas também desestabilizou por um motivo tecnológico.
Nos anos 1960, foi a democratização radical de televisores, de cor para o televisor, de uma globalização de uma cultura pop que não estava muito bem estabilizada e que se consolidou através do cinema e da música, da difusão de ideias radicais através da criação de imprensa e de discursos muito alternativos, da tecnologia gráfica e têxtil, que foi capaz de produzir roupas e outras coisas que iam quebrar isso, mas, principalmente, da promessa dos anos 1950 que já não se cumpria na cabeça das pessoas. O que é que começou a aparecer nos anos 1960? O mundo monocromático, o mundo do casal estável, do pai de família, mulher em casa, dois filhos, já não estava satisfazendo a psique das pessoas. E o primeiro sintoma, com o qual você poderia saber que os anos 1960 seriam uma década muito radical, foi parecido com o começo do século XX, quando a psicanálise aparece. Começa a aparecer uma psicologia diferente e sintomas diferentes. O fim dos anos 1950 é marcado por muita ansiedade feminina, episódios psicóticos, episódios depressivos específicos daquela época, o uso indiscriminado de Valium, de calmantes.
O mundo da Segunda Guerra Mundial começou a produzir um tipo de polarização que botou um medo no mundo que não existia antes, que é o da extinção humana. E o que é que acontece: no meio disso tudo, já era uma crise psíquica, já era uma crise cultural e já havia instrumentos técnicos capazes de produzir um novo imaginário, mais perto da cultura dos anos 1960. A guitarra elétrica, por exemplo, já existia nos anos 1950, mas só nos anos 1960 ela se populariza. Os amplificadores crescem, a guitarra distorcida passa a ser possível e a gravação de estúdio aprende a captar aquilo. O rock não era nem possível antes disso. Começam a aparecer condições que tocam em instintos humanos. Junto com isso, aparecem as drogas psicodélicas, que já estavam sendo usadas em contextos clínicos. E ela explode culturalmente em poucas regiões do mundo. Não é que todo mundo usou LSD, é que um número suficiente de pessoas, sobretudo os produtores culturais, que estavam traduzindo o mundo na música, na literatura, nas artes, tomaram. E essa experiência de se distanciar do mundo monocromático, ver a sua mente aberta a possibilidades elásticas de estética, de sexualidade, do seu próprio corpo físico, de espiritualidade, quando você volta, o mundo fica louco, e você não. Essa tradução cultural fez com que o mundo ficasse mais psicodélico sem que as pessoas precisassem tomar.
O que o Jimi Hendrix fez, na verdade, na genialidade incrível dele e nos psicodélicos que ele tomou, foi levar a experiência psicodélica para quem nem tomou ácido. “Olha aqui, olha essa expressão, olha o Vietnã na minha música. Olha a libertação sexual, olha a minha roupa. Olha um homem negro superstar, com vários brancos aos pés dele, vendo uma guitarra, um símbolo fálico, tocando num festival para quatrocentas mil pessoas, mulheres nuas na frente dos pais.” Isso provocou um efeito colossal no mundo. Político e reativo também. Os anos 1960 acabam em 1969, com a eleição do Richard Nixon, com a escalada do Vietnã, com golpes na América Latina inteira. Exatamente porque esse mundo possível que se aproximava, o status quo falou: aqui não.
Hoje em dia é muito diferente. Hoje em dia tem uma complexidade maior, porque os psicodélicos não estão voltando enquanto instrumentos revolucionários. Estão voltando como instrumentos do mainstream, perigosamente bem-aceitos, por conta da crise psiquiátrica, na qual os nossos fármacos, nossos remédios, não estão dando mais conta. E essa realidade também não está oferecendo futuro. A realidade, o modelo desenhado, não está respondendo mais economicamente. A minha geração – já tenho 44 anos – não consegue ter uma casa própria. A gente não consegue, é muito caro. E está todo mundo em depressão. Tem uma névoa no futuro. E o que os psicodélicos estão oferecendo hoje, em doses menores – acho estranho, mas é melhor do que não – é um ganho de perspectiva em cima dessa realidade. Um modo diferente de ver a ansiedade não como uma doença, mas como o produto de um ponto de vista. O que acho que os psicodélicos conseguem oferecer, e a cultura precisa oferecer e eu não acho que está oferecendo, e a grande diferença que vejo de hoje para os anos 1960, é que os artistas não estão dando respostas a altura do nosso desafio. Nossa cultura ainda é extremamente materialista, narcísica, autorreferencial. Mas a bola está quicando, porque é um momento em que a realidade não faz sentido, mas ela continua aqui.
O Phillip K. Dick, que é um autor de que gosto muito, escritor de ficção científica, para mim, matou a charada. Ele dizia que, no futuro, as pessoas não saberiam o que era verdade. Que era isso que definiria o século XXI, a incapacidade de descobrir o que é que é real. Depois ele morreu paranoico, cheio de problemas, mas ele dizia que a realidade é aquela coisa que, quando você para de acreditar nela, ela ainda está lá. Acho que estamos vivendo esse mundo. Paramos de acreditar nessa realidade, mas ela está aqui. E esse novo mundo, esse que precisa vir, precisa de catalisadores. Acho que os psicodélicos sempre foram catalisadores disso, não só nos anos 1960, ao longo da história humana inteira. Sempre que tem uma nova tradição mística, alguém achou um cogumelo diferente, preparou um chá estranho. Toda essa linguagem xamânica, que está sendo recuperada em várias tradições, a recuperação dos povos originários como donos de algum tipo de saber que a gente sabe que precisa ser recuperado, sem saber o que é que é, também tem a ver com essa noção de que a realidade é uma construção da subjetividade. Você só vai mudar o mundo em cumplicidade com uma mudança subjetiva. Se não é isso daí mesmo, é Farofa da Gkay, não vai ter jeito.
CONTINENTE Quando entrei na faculdade de Jornalismo, na UFPE, em 2011, só se falava do programa CQC. Informação e entretenimento, misturar humor com jornalismo. E vimos que isso deu muito errado também, trouxe muitos problemas. Mas, no Greg News, essa mistura parece funcionar, do humor, do cuidado com a subjetividade da audiência, mas também de um rigor com a informação e a apuração, que faz inclusive com que o Greg News seja a fonte para que o público tenha acesso a muitas informações em primeira mão. Queria que você contasse como é que está sendo essa experiência e como você vê a importância de projetos como esse.
BRUNO TORTURRA Humor e política sempre andam juntos, é uma necessidade. É muito saudável que a política seja coberta com a comédia presente. A diferença pro CQC, que acho que às vezes exageram um pouco na crítica ao CQC, mas a principal crítica que tenho era o seguinte: eles tiravam sarro, mas não levavam a sério a política. Eles não tratavam a política como algo sério. Para você rir da política, você tem que, antes, saber que você está lidando com uma coisa muito séria e que é muito consequente. O riso da política precisa vir com um senso de responsabilidade dobrado, porque se você só ridiculariza, você está ridicularizando não os políticos, mas a política e a formação frágil que a gente tem de democracia. Nesse sentido, acho que o humor brasileiro muitas vezes pecou nesse lugar, de tratar a política como algo ridículo, e não como algo que não pode ser tratado com reverência. São coisas diferentes.
O Greg News surgiu com uma dificuldade colocada. Acho que faz falta termos mais programas como o Greg News. Tem pouco, na verdade. A gente teve a sorte de a HBO ser um canal muito aberto para esse tipo de experiência, porque já tinha o exemplo do John Oliver, de programas americanos que foram muito bem-sucedidos e que a gente sentia que o Brasil era o terreno perfeito para isso. Antes de vender para a HBO, eu, o Greg (Duvivier) e a Alessandra (Orofino), a gente fez um piloto do próprio bolso. Usamos o Estúdio Fluxo de redação, conseguimos um teatro emprestado, gastamos dinheiro do bolso e fizemos um piloto sobre o Michel Temer dois meses antes do golpe, do impeachment. E o Greg é o comediante ideal para fazer isso, porque ele é um cara muito engraçado, talentoso, escreve muito bem, mas também é uma pessoa politizada, que leva política a sério. A gente fez esse piloto e explodiu. E, para você ver: o programa tem a idade da erosão democrática brasileira. Então, a gente começou com esse piloto, negociou com a HBO, eles apostaram em uma temporada. Deu supercerto, porque a gente cobriu a distopia brasileira semanalmente. E é bem isso que você colocou: a gente tem um rigor jornalístico muito sério. Porque o que a gente sente é que não é que a gente precisa ridicularizar o ambiente político, a gente precisa explicar coisas em um contexto. E é muito difícil explicar coisas, especialmente coisas tão dolorosas, por meia hora, estando sério. O riso é usado para digerir coisas que seriam muito repulsivas de serem digeridas só na descrição. E também é um salvo-conduto para a gente experimentar a linguagem. O fato de ele ser um humorista e não um jornalista nos autoriza de, junto com a informação muito bem-apurada, fazer coisas que a Globonews nunca ia poder fazer. Que é dar opinião mesmo, dar opinião sobre coisas que o jornalista não pode fazer ao preço de perder a sua credibilidade.
Para o Greg, a credibilidade só aumenta, porque ele é humorista, ele tem compromisso com a piada. Então, toda vez que estou muito jornalista, o Greg me para e diz que, se a gente fizer assim, vai ser muito difícil para o humor. “É verdade, então volta.” É um balé do peso com a leveza do humor com a informação, mas a gente tem mais jornalista na equipe do que humorista. A gente tem mais checagem na equipe do que roteiro. E tem outra coisa que a gente sente falta, que talvez ache que é o que o programa mais tem de original, que não é a piada. É que a gente desenvolve uma tese. Que é uma coisa que não tem muito, que não é exatamente uma coluna, uma opinião, mas uma hipótese. “E se a gente ler isso por essa chave? Isso pode ser um jeito interessante de pensar a respeito desse assunto”.
Tem sido uma experiência ótima. Da pandemia pra cá tem sido muito desafiador por dois motivos. Um motivo editoral, que a gente teve que continuar a produzir um programa com mortes e mortes e mortes diárias. Com traumas, a distância, sendo produzidos nas nossas próprias vidas. O que era uma redação, uma produção coletiva, se pulverizou em Zoom. A gente escrevia no Google docs, não era mais numa sala, a gente não gravava junto, não tinha resposta do público. Foi muito desafiador achar graça no meio de um ambiente de morte. Então, esse ano foi muito bom ter voltado pro estúdio, ter voltado essas coisas todas e vamos ver neste ano.
CONTINENTE A vitória eleitoral foi muito importante e precisa ser defendida, já que o novo governo está sob ataque. Como é que a gente faz, então, para dar a sustentação que o governo Lula precisa ao mesmo tempo em que o pressionamos para que ele faça o que precisa ser feito?
BRUNO TORTURRA É uma pergunta difícil, porque não é no caso a caso que você vai responder. Mas a gente sabe que existem casos diferentes. Que é um governo de frente ampla, que vai ter que decepcionar quem se considera de esquerda de muitas formas, mas tem muitas formas com as quais isso pode acontecer. Existem frustrações e frustrações. O que acho que a gente não descobriu, enquanto campo, porque a gente não se entende nem como campo, é quais são as coisas inegociáveis e quais são as derrotas que a gente está disposto a ter. A gente não sabe, cada um tem uma resposta diferente para essa pergunta. E o problema é que a esquerda organizada disputa poder também, coisa que o cidadão não faz. Chega uma hora em que os aliados se tornam adversários, porque todo mundo quer o mesmo ministério, a mesma pasta, o mesmo orçamento, todo mundo de olho em 2026, já.
Então, não sei responder como é que a gente faz isso de maneira objetiva. Acho que tem algumas coisas. Uma delas é que o que a internet e esses novos discursos produziram é exatamente uma coisa que havia um monopólio antes, um monopólio da organização humana. Que eram de instituições e organizações grandes, partidos, sindicatos, igrejas. Em 2013, em junho, a gente deu uma demonstração louca e explosiva de que existem potencialidades gigantescas de organização e mobilização que não passam por mediações clássicas. A gente explorou-as de maneira adolescente, era uma nova tecnologia. Teve o Occupy Wall Street, a Primavera Árabe, tudo isso teve muita exuberância e pouca organização. Não sobrou um legado organizativo disso. O que acho que a gente tem que produzir por fora do governo, por fora dos partidos, por fora do debate na rede social, é pensar quais novas formas de coletividade a gente é capaz de produzir para mostrar duas coisas: força vinda de fora, que pressione o governo a fazer coisas por receio. Mas o mais interessante é provar, para os atores políticos, que existe capital político, que existe voto, que existe uma estrada de potencial eleitoral, de formulação e execução de políticas públicas, fora das organizações que os amarram. Porque com toda a frustração que eu tenho em relação aos políticos, e conheço vários, toda vez que me aproximo deles, sinto duas coisas: sinto muita frustração, mas também admiração. Porque, olha que sacrifício que é, olha que desgraça que é essa vida. E acho que boa parte deles, pelo menos daqueles em que a gente acredita, vota e quer eles lá, prefeririam ter um ambiente mais livre para agir em prol do bem comum, mas eles se sentem muito mais restritos por outros atores que estão organizados.
Vou lhe dar um exemplo, um cara que eu acho muito interessante. Odeio-o, mas acho interessante. É o (João) Dória. Achou que ia ser presidente e não conseguiu. Ele não é um empresário. O que é que ele faz? Ele é um organizador de rico. Ele faz jantares, combina, liga, passa na casa do cara, faz um grupo, monta uma marca, faz uma revista, publica uma revista aqui e depois faz outra, marca um evento. Ele perdeu desse jeito, é um cadáver político, mas termina a eleição e ele fecha um hotel em Nova York e leva o STF inteiro pra lá. Empresários pensando o Brasil do futuro… O que é que a gente está fazendo? Onde é que a sociedade brasileira está se organizando e dando uma resposta a esse tipo de coisa, forçando que o STF venha escutar o que a gente tem a falar no Recife? Em Altamira, onde Belo Monte foi construída? O que é que a gente tem pra oferecer, em termos de organização? Ele tem dinheiro, mas a gente tem volume de gente. A gente tem os assentados do Brasil, os sem-terra, a gente tem jornalista e artista pra caralho, gente talentosa demais, comunicador, as feministas do Brasil, movimento LGBT, movimento negro. Tudo isso precisa se libertar da disputa que os partidos estão propondo e se organizar. Acho que, sem isso, a gente não tem muito como cumprir o que você está perguntando nem como resistir aos avanços neoliberais em cima do governo Lula.
Porque, na hora em que ele olhar que a resposta da esquerda, vai ser trending topics e a da direita vai ser a manipulação do dólar, ele vai ficar com a direita. Na hora em que ele vir que a resposta da esquerda, vai ser o quê? Não sei dizer o quê. Produção de discurso público, shows, manifestação de rua, lobby real, ameaça de que não vai ter campanha ou de que vai produzir outro candidato para enfrentar o PT em algum lugar, aí os caras respondem. Vão ligar para o cara rico e dizer que não vai dar. Porque, se eles fizerem isso, o pessoal me mata. E a gente tem prova disso. A gente vê o que aconteceu no Brasil. Com todo o retrocesso, todo o Bolsonaro, toda a homofobia do Brasil, o que o movimento LGBT conseguiu produzir no Brasil em 10 anos é inacreditável. De avanço de pauta, de aceitabilidade, de expressão. Um candidato a presidência da república, se ele for homofóbico, tem que ser o Bolsonaro, ele não pode mais ser alguém de centro. O Eduardo Leite, candidato de direita, é gay assumido. Isso seria impossível 10 anos atrás. E isso vem de uma organização parapartidária, ela vem de fora. Vem de produzir as maiores paradas gays do mundo, vem de produzir discurso, vem de produzir cultura, vem de fazer novela, de fazer filme, de sair do armário. De um monte de coisa que é profundamente política, muito organizada, e não é eleitoral. Por aí acho que tem algum jogo. Se não, a gente vai ficar brincando de eleição de quatro em quatro anos. E aí fica bem perigoso, porque na próxima a gente não vai ter nem o Lula. Imagina a gente sem o Lula para disputar uma eleição? Se fosse qualquer outro, a gente tinha perdido. Seja o Ciro, a Tebet, o Haddad, o Alckmin. Perdia mesmo. Justamente porque o Lula e o Bolsonaro mexem com coisas que são mais profundas que espectro ideológico. Representam um pulso, representam paixões. E é isso que a gente precisa operar muito bem nos próximos anos, senão estamos lascados. Não é porque o bolsonarismo não acabou. É que o ódio do Brasil a si mesmo é real. É grande e é muito antigo, também.
ANTONIO LIRA, jornalista, músico, pesquisador, mestre em Comunicação e doutorando do PPGCOM/UFPE.