CONTINENTE E o interesse pela escrita?
SOCORRO ACIOLI Aí, o interesse pela escrita é um outro ponto. Mas pela leitura e a relação com os livros, não tem nada de muito especial. Tem só uma coisa que eu acho engraçada. A minha avó era bordadeira, teve pouquíssimo estudo, e ela só teve dois livros a vida inteira. Um era a Bíblia e o outro era um livro da Rachel de Queiroz, que eu não sei quem arranjou para ela, como é que ela conseguiu esse livro, que era O Brasileiro Perplexo, um livro de crônicas, que ela usava para guardar dinheiro. Ela organizava o dinheiro todo dos pagamentos com os capítulos das crônicas. Só eu sabia disso. Ninguém da família sabia que esse livro era o cofre dela. Aí, uma vez, houve um assalto lá em casa. A gente morava no primeiro andar, ela vendia bordado, vendia roupa e tudo. A gente morava no primeiro andar, era super fácil de subir. O cara era conhecido da pessoa que trabalhava lá em casa, ele subiu na hora que a gente estava almoçando, tudo combinado. Só que a moça não sabia do negócio do livro. Aí a gente ouviu o barulho da porta, ouviu o cara fugir, quando a gente foi para o quarto e olhei para ela, a gente pensou, a primeira coisa: “o livro!”. Ele tinha levado tudo o que não tinha valor e deixou o livro lá, cheio de dinheiro. E eu tenho esse livro até hoje, e quando eu conheci a Rachel de Queiroz, eu pedi para ela autografar, morta de vergonha, porque era só o resto, o livro estava todo desfeito.
CONTINENTE Não havia livros, mas tinha a história oral?
SOCORRO ACIOLI Tinha, principalmente da vovó, que era do Rio Grande do Norte, tinha demais. As histórias dela, as histórias do entorno dela, foram uma influência muito importante. O livro que ganhou o Jabuti, Ela Tem Olhos de Céu, foi todo uma história que a vovó me contava de coisas que aconteciam no Sertão, que acontece com qualquer pessoa que é do Sertão, que é atenta a essa relação do corpo com a natureza. Então, ela dizia que, se o irmão dela espirrasse, ia chover. E tinha uma menina perto da casa dela que era muito chorona, e quando ela chorava, começava a cair um temporal. E das histórias dela, a melhor é a que ela contou a vida inteira. Todo domingo ela bebia e contava a mesma coisa, que era o desgosto que ela tinha, porque o pai dela não deixou ela seguir o bando do Lampião. Quando Lampião pediu para trocar um casal de idosos por uma mulher que veio a ser a Maria Bonita, ela queria ir, com 13 anos, mas o pai dela disse que não. Ela disse que ia sim, que aquele era o destino dela. Aí o pai se escondeu numa fazenda, numa plantação de melancia, por três dias. Não era para o Lampião não pegar a família, era para a minha avó não fugir com o bando do Lampião. Isso de ouvir as histórias foi muito importante. E ser criada por uma avó. Ser criada por um idoso é muito marcante na vida, principalmente se você presta atenção a esse idoso, que era o meu caso. Eu cuidava muito dela, prestava muita atenção e era muito companheira. As coisas que ela tinha para contar, só contava para mim. Então, ela tinha esse repertório, que talvez tenha aflorado porque eu prestava atenção às coisas que ela contava. Ela não tinha contado para a minha mãe, para os meus tios, ela contou só para mim. E só contava, beba, no domingo, escondida. Com oito, nove anos de idade, eu que ia comprar cerveja pra ela. Aí ela contava as coisas para mim. Então, isso foi muito importante. Aprender a escutar é, até hoje, muito importante para tudo que eu faço. E gostar de ouvir a história de idoso, principalmente idoso meio doido, é um prazer até hoje.
CONTINENTE Vocês moravam onde, nessa época?
SOCORRO ACIOLI Sempre morei em Fortaleza. Morei, depois de adulta, em Salvador, por um ano. Mas sempre fui de Fortaleza. Sou a primeira geração da família nascida em Fortaleza. Elas não. Minhas tias, minha mãe, todo mundo vinha de cidades pequenas. A família dela era do Rio Grande do Norte e eu ia muito com ela para lá. E lá, juntava aquele bando de gente contando histórias. Elas nasceram em um sítio lá, chamado Sabe Muito, que era um entreposto de escravizados entre o Ceará e o Rio Grande do Norte, de uma família de portugueses, os Fernandes Pimenta. Eles recebiam escravizados para revender, distribuir, aquela miséria toda. E elas nasceram lá. Eu já tentei pesquisar a origem, não consegui muita coisa. Mas tudo indica que minha bisavó era de uma família de escravizados, acho que neta, pelo o que eu consegui descobrir. E ela foi a primeira geração que era livre desde pequena. E essas todas são partes da minha formação.
CONTINENTE E esse começo da relação com a literatura?
SOCORRO ACIOLI Eu era muito tímida, asmática, muito fechada; ler e escrever foi muito natural desde pequena. Mas isso não indica nenhuma genialidade ou nenhuma inclinação, porque toda criança, minimamente saudável, cria. Ou ela desenha, ou ela inventa histórias, ou ela escreve as histórias que inventa, ou ela inventa naturalmente, brincando. Em toda criança minimamente saudável, psicologicamente saudável, emocionalmente saudável, isso é o normal. Então eu gosto de dizer isso, porque, às vezes, destacam esse negócio, pois um livro meu foi publicado quando eu tinha oito anos, e atribui-se a isso, às vezes, um destino, uma sina, um talento, mas não tem nada a ver. O fato de eu, hoje, viver de literatura, trabalhar com literatura, tem a ver com um grande esforço de formação e de trabalho que veio depois. O fato de eu ter escrito um livro quando eu era pequena, não significa nada, eu poderia ser médica. Inclusive foi uma coisa que eu pensei em ser. Digo isso, porque eu milito muito pela profissionalização do escritor e para tirar do trabalho do escritor essa romantização.
CONTINENTE Como ocorreu a publicação desse primeiro livro?
SOCORRO ACIOLI Foi um acaso, foi uma coisa que o diretor do meu colégio incentivou. Aí tinha um cineasta, Rosemberg Cariry, que quis publicar o livro. Disseram que se eu vendesse X exemplares, dava para eu comprar a minha bicicleta de cestinha. Eu consegui vender, comprei a bicicleta. Achei que estava tudo resolvido na minha vida, que era assim que funcionava o negócio. Eu escrevia, o livro saía, eu vendia, recebia o dinheiro e comprava o que quisesse. Era a bicicleta, agora é pagar meu apartamento. Só vai mudando de objeto. Mas, se não tivesse acontecido, depois, todo o percurso que me levou a uma profissionalização, o fato de eu ser uma criança que escrevia não significaria nada. Significaria o que é normal, eu era uma criança criativa, como é a maioria das crianças, ou as que têm essa possibilidade.
CONTINENTE E, em algum momento, você optou por fazer o curso de Jornalismo, não é isso?
SOCORRO ACIOLI Nessa época do lançamento do livro, eu achei que a minha profissão estava definida, que eu tinha começado ali e era só continuar. Mas o que eu ouvia é que isso não era uma profissão, que eu tinha que ter uma profissão de verdade e escrever por diletantismo. Então, eu desisti e passei o resto da infância pensando no que eu iria fazer. Quando chegou a hora de realmente fazer vestibular, eu tateei entre a Medicina, depois comecei Psicologia, mas larguei. Depois, fui fazer Comunicação, porque Jornalismo era o curso que estaria mais perto do que eu queria, que era escrever. Era outro tipo de escrita, outra preparação para escrita, mas eu iria escrever. Então foi o que me pareceu mais razoável. Quando eu estava para terminar o curso, o Lira Neto, que já era um grande biógrafo, me chamou para fazer um dos livros da Terra Bárbara, uma coleção que ele criou nos moldes da Coleção Primeiros Passos da Ática, com biografias breves sobre personagens cearenses ou que fizeram história no Ceará. Era uma segunda-feira, ele perguntou se eu tinha interesse em fazer algo sobre alguém. Na quinta-feira anterior, eu tinha assistido e participado de uma entrevista com o Frei Betto, em Fortaleza. Quando eu lancei aquele livro, ainda criança, foi na escola da Nildes Alencar, irmã do Frei Tito de Alencar, um cearense que morreu em decorrência das torturas da ditadura. E ela mandou para o Frei Betto. Em resposta, ele enviou uma carta em que disse muita coisa, dentre elas, “Eu tenho certeza, se Deus quiser, um dia, o seu livro vai estar em todas as livrarias do país. Escrever é um dom de Deus e quem escreve alimenta o coração dos outros”. Quando ele veio a Fortaleza para fazer uma entrevista, no curso de Comunicação, entreguei uma cópia da carta para ele, que obviamente ele não lembrava. A carta foi de 1985 e a gente estava em 2001. Foi uma coincidência, porque ele falou muito sobre Frei Tito, nessa entrevista da quinta-feira. Na segunda, eu recebi esse convite do Lira Neto e respondi "Meu personagem é o Frei Tito". Foi o meu primeiro livro publicado depois de adulta. Foi um trabalho de jornalista, com entrevistas, fontes, documentos, o próprio relato de tortura do Frei Tito. Depois, fiz outro livro, na mesma coleção, sobre Rachel de Queiroz. E aí me criticaram, já que o Frei Tito morreu por causa da ditadura e a Rachel de Queiroz foi declaradamente participante da engenharia que armou o golpe. Ela é uma figura um pouco controversa na literatura. Mas recebi uma resposta de um frade dominicano, que me disse "O trabalho do jornalista e do escritor não é nem de perto o trabalho de um juiz. O trabalho de quem escreve sobre algum tema é o de contar o que aconteceu, com a obrigação de contar as coisas com o máximo de fontes possíveis, de ângulos possíveis". E aí eu achei que ia por esse caminho, que ia ser biógrafa. Fui fazer um mestrado em Literatura e o meu projeto era sobre Olga, do Fernando Morais. Eu ia pesquisar a escrita biográfica, eu achava que eu ia seguir por aí, porque eu não tinha coragem de voltar a pensar em ficção.
CONTINENTE Como você retornou à escrita literária?
SOCORRO ACIOLI Não fiz mais nenhum trabalho como jornalista depois, porque fui chamada, pela mesma editora, do jornal O Povo, para escrever para crianças. As escolas estavam pedindo livros para crianças e eu estava no mestrado, pesquisando Sociologia da Literatura, e escrevi um livro sobre a história do livro, livro como objeto. Eu estava lendo muito Monteiro Lobato. Engravidei, aí virou literatura infantil. E aí comecei a escrever livros para crianças e jovens. Então, foram 18 livros. Foi um período de 2003 até 2013, 10 anos dedicados à literatura infantojuvenil, por várias editoras. Com os governos Lula e Dilma comprando livros para bibliotecas escolares, isso me deu muita projeção. Ganhei o Jabuti em 2013 e nunca mais escrevi para criança. As pessoas acham que foi de propósito. Mas é porque, antes disso, aconteceu o capítulo da minha vida, que é o curso com García Márquez, que eu fui para lá achando que ia escrever uma história para adolescente. Na verdade, eu nunca falo disso, mas A Cabeça do Santo, eu fui pensando que ia ser um livro para adolescente, porque era esse momento que eu estava vivendo, só que não foi. A partir do curso do García Márquez, as coisas mudaram de rumo completamente.
CONTINENTE Antes de fazer essa pergunta sobre o Cabeça, eu queria voltar só um pouquinho e saber um pouco sobre essa sua relação com o Lira Neto. Como era o contato de vocês na produção desses primeiros livros e se você teve algum aprendizado com a experiência dele como biógrafo.
SOCORRO ACIOLI Continuo tendo, a gente ainda é muito amigo. Quando eu escrevi o livro, logo depois, ele saiu, foi para São Paulo. Quando ele mudou para São Paulo, eu fiquei no lugar dele, na editora. E eu fiquei lá como editora por um ano e meio. Depois, ele foi para a Companhia das Letras; em seguida, eu entrei. A gente continua se encontrando e teve muito aprendizado. O Lira é muito rigoroso com as fontes. Então quando ele pegou o meu original, foi bater informação por informação e me ensinou uma coisa muito importante do texto não-ficção, que é dizer exatamente de onde aquilo ali saiu. Ter muito cuidado com o que era uma conjectura minha, com o que era fato, algo dito por alguém e o que estava em determinado documento. Outra coisa bastante importante que ele me ensinou, nesse processo da edição do Frei Tito, foi o envolvimento com o tema e com as fontes, com as pessoas e com os entrevistados, porque a história de Frei Tito é muito trágica e muito comovente. Foi tudo muito violento para a família e é muito doloroso. Foi muito doloroso lidar com esses depoimentos, estar com essas pessoas. Então, eu fui obviamente me deixando levar pela empatia, até porque eu já conhecia a família, por causa da escola da Nildes. Em alguns momentos do texto, isso foi aparecendo, era quase como se eu estivesse escrevendo como a segunda voz da Nildes. O Lira me falou que eu precisava ter um filtro mais profissional. Essa lida com a fonte, essa lida do trabalho, na hora de remontar uma vida, reescrever uma vida, esse chegar perto das fontes, de tudo que existe de vínculo emocional, que o escritor possa estar alimentando ali, precisa ser filtrado pela lente de uma certa frieza. É o véu do antropólogo, como diz outro amigo que é antropólogo. Você vai, confia em tudo, acredita em tudo, mas usando um véu de uma certa frieza, que eu não conseguia ter, porque eu tinha 22 anos, 23 anos. O Lira continua me ensinando muito e é um dos partidários dessa ideia de que a gente precisa ter muito cuidado com a imagem e o profissionalismo que quem trabalha com as letras precisa ter, precisa assumir, num país que majoritariamente não respeita o trabalho do escritor.
CONTINENTE Voltando ao A Cabeça do Santo. Você disse que era um livro que ia ser infantojuvenil e se transformou em um livro para o público adulto. O que levou você a fazer essa mudança?
SOCORRO ACIOLI Quando chegou 2006, eu já tinha publicado Bia que tanto lia (2004), É pra Ler ou pra Comer (2005), sobre a Padaria Espiritual do Ceará, que foi um movimento anterior à Semana de Arte Moderna, mas que o Brasil não conheceu tanto, e aí eu escrevi um livro infantil influenciado pelos livros informativos do Monteiro Lobato. Depois veio A Casa dos Benjamins (2005). Todos foram premiados. Nesse intervalo de 2001 a 2006, eu estava trabalhando na editora, já tinha terminado o mestrado. Era o momento para arriscar uma carreira como escritora. "Se não fizer isso agora, eu vou enganchar aqui em outros caminhos, e não vou fazer nunca mais. Aí, quando ficar velha, vou ficar frustrada. Eu tenho que tomar uma decisão". Aí, eu saí da editora e fui atrás de cursos de escrita de ficção. Mas o que existia no Brasil, em 2006, era o curso do professor Assis Brasil, no Rio Grande do Sul, na PUC. Eu não tinha a menor condição de ir, já estava casada, tinha uma filha pequena, não dava pra me mandar pro Rio Grande do Sul, fazer um curso de escrita. Então fui procurar um livro sobre escrita. Por um acaso, eu tinha trabalhado numa livraria e sempre que sobrava livro, eu levava, mesmo sem saber o que era, pra olhar depois. Eu tinha um livro em casa, Como Contar um Conto, do Gabriel García Márquez, que era a transcrição de uma oficina que ele fez durante 20 anos na escola de cinema, em San Antonio de Los Baños, em Cuba, que foi uma escola que ele fundou, porque o grande sonho dele era, na verdade, fazer cinema, não fazer literatura. Ótimo, era tudo o que precisava. Eu, muito crente que ia ser fácil, mandei um e-mail pra escola. No primeiro, me responderam que era um curso para convidados do García Márquez. Respondi, como é que faz pra ser convidado? A pessoa respondeu, pra me humilhar, é para pessoas do círculo íntimo de Gabo. Passei meses mandando e-mails para os professores, recebendo as mesmas respostas. Eu tenho todos esses e-mails, é uma vergonha (risos). Eu tinha muita certeza de que ia acontecer, eu queria demais e eu não estava me conformando. Um dia, resolvi mandar o último e-mail, porque chega de humilhação. Aí achei o endereço de e-mail de uma mulher, Maria Júlia. Mandei um e-mail bem dramático, contando tudo, eu devia estar em TPM. Eu escrevi chorando e ainda era em espanhol. Finalizei, dizendo "Caso, de alguma maneira, essa entrada mude, por favor, coloque o meu nome no mailing de vocês". Botei adiós e fui chorar. Aí ela respondeu que já sabia do meu interesse pelo curso e que ele já havia mandado a lista dele. Mas só tinha nove nomes e a oficina tem dez vagas. "Só que eu não posso simplesmente botar o seu nome na lista. Até quinta-feira, você me manda, na metade de uma página, o seu currículo e, em um parágrafo, uma história que você quer desenvolver aqui. O que eu posso fazer é mandar pra ele por fax. Se ele gostar, a gente te chama". E eu fiquei louca, porque eu tinha, de terça para quinta, que pensar em uma história que eu conseguisse resumir em parágrafo, o que é muito difícil, e que agradasse o Gabriel García Márquez.
CONTINENTE Como você solucionou?
SOCORRO ACIOLI Eu recorri ao meu passado de jornalista, porque eu tinha várias matérias de jornal guardadas, assim como hoje eu tenho prints de notícia. E tinha uma história daqui do Ceará, da cidade Caridade. O prefeito, em 1984, 1985, mandou fazer uma estátua de Santo Antônio enorme, para que a cidade fosse também um centro de peregrinação religiosa, como é Canindé, com São Francisco, e como é Juazeiro, com Padre Cícero. Mandou fazer a estátua, para ficar em cima do morro, lá em Caridade, uma cidade economicamente inexpressiva, perto do Sertão dos Inhamuns. Mandou fazer aquela estátua, um dinheirão, e deixou na mão de um mestre de obra. A estátua já estava com o corpo todo pronto e a cabeça foi feita toda em partes simétricas. Um dia, o mestre tomou uma cachaça e disse "Vamos montar no chão e levar a cabeça inteira". E a peãozada "Mas não dá; não vai dar". Ele insistiu. Aí montaram no chão e nunca conseguiram levar a cabeça, porque é enorme, do tamanho de uma casinha. Fizeram um conjunto habitacional e, pela metragem, quando foi passar na rua a cabeça, ela ficava de frente com uma casa. Quando Dona Ana Banana, a dona da casa, abre a janela, a vista é a parte de dentro da cabeça. Quando essa senhora foi entrevistada, disse, "Olha, isso aqui serve de morada de bicho, serve de banheiro, serve de motel, e até um vagabundo já morou um tempo aí dentro". E isso era o que estava na matéria, a revolta da população com a situação da cabeça, e aí quando ela disse que esse cara já tinha morado lá dentro, foi o que eu gostei. Porque eu fiquei pensando nessa figura completamente perdida na vida, mais cachaceiro possível, mais ateu possível, mais vagabundo possível, mais canalha possível, que, um dia, entra na cabeça do santo, e eu fiquei pensando o que é que podia acontecer. Eu sou criada por uma avó muito católica e eu fiquei pensando o que é que ia acontecer com esse cara, entrando na cabeça de um santo tão inteligente como foi Santo Antônio. Eu já sabia alguma coisa de Santo Antônio, depois eu fui passar um tempo pesquisando, e aí surgiu disso a sinopse que eu mandei, que era que um homem estava andando numa estrada, chega em uma cidade procurando abrigo, entra em uma gruta, para escapar da chuva, acorda às cinco horas da manhã, ouvindo vozes de mulher. Quando ele sai, percebe que não tem mulher nenhuma e que a gruta é, na verdade, a cabeça oca gigantesca e inacabada de um Santo Antônio, cujo corpo estava no alto do morro. Foi isso que eu mandei, era só o que eu tinha e entreguei a Deus. Aí, quando eu mandei, ela mandou para ele, aí deu um tempo, sei lá, acho que foram dois meses, e aí ela mandou a resposta dizendo que eles estavam me convidando para a oficina, e ele já estava com o princípio de demência senil, que piorou muito nos anos seguintes, tanto é que foi a última oficina ele fez, depois de vinte anos. Por isso que eu estava obcecada, eu acho que era a força espiritual, porque era a última, era a minha última chance. Se eu não tivesse passado essa vergonha oito meses, não teria acontecido mais, porque depois disso, a partir de 2007, ele não deu mais entrevista, ele só fazia aparição pública em silêncio, saudava e não falava. E, de fato, de 2007 em diante foi muito acelerada a demência dele, e ele morreu em 2014.
CONTINENTE E como se deu a mudança de livro infantojuvenil para adulto?
SOCORRO ACIOLI Então, aí quando eu fui, eu imaginava que eu ia ser uma história em volta desse adolescente. Um livro para jovens. Então eu já pensei, bom, tem que ter cuidado com os temas, tem que ter cuidado com linguagem. E fui escrevendo, pensando como uma história para jovens. Fui para a oficina, foi maravilhoso. Quando eu cheguei lá, ele não lembrava mais de nada. Os outros nove eram todos convidados, filho da melhor amiga da Mercedes, mulher dele, filhos de fulana… Interessados no curso, mas eu não estava interessada, eu estava deslumbrada, fascinada, abestalhada. Era a primeira vez que eu estava encontrando com ele. Todo mundo já o conhecia desde pequeno, e aí foi muito importante ter ido para o curso, ter tido a aprovação dele. Ele ficou o tempo inteiro falando dessa história, ele só queria voltar para essa história. E ficava perguntando. No começo, ele não acreditava que a história da cabeça era real. "Mas me explica, você disse que a história é baseada em alguma coisa real e o real é porque tem um homem louco lá que entra na gruta e pensa que é uma cabeça?" Eu disse, "não, o real é que tem a cabeça". "Mas por que não terminaram a estátua?" E aí foi um tempão, nesse primeiro dia de aula. Eu acho que foi mais de uma hora, porque ele achava que eu não estava conseguindo entender por causa do espanhol, só que eu estava entendendo perfeitamente. Eu tinha o espanhol bom, já na época. E aí, não era fácil mostrar como é hoje, se fosse hoje era em celular, mas eu tinha uma fita mini DV, que tive que passar para DVD. Passei uma tarde fazendo isso, para, no dia seguinte, ele ver as imagens e acreditar que era uma cabeça. Imagina se ele soubesse que até hoje está lá.
CONTINENTE Essa cabeça virou um ponto turístico?
SOCORRO ACIOLI Hoje, sim, muito por causa do livro. Sempre foi um livro que teve uma boa aceitação desde o começo, que sempre vendeu. Nunca encalhou. A maioria dos livros nacionais acabam não passando da primeira edição. O ano que saiu foi 2014, ele veio devagar esses anos, sempre tinha venda. Mas, do ano passado para cá, por causa da matéria no Fantástico, houve uma explosão de popularidade. Então, ele está vendendo absurdamente, mais do que vendeu em todos esses dez anos. E agora tem muita gente indo. De vez em quando, me marcam. Vão chegando lá. Estão fazendo uma estátua nova. A prefeitura mandou me buscar, fez um almoço com a diretora do filme, eu e a produtora, e fez um almoço para mostrar a maquete da estátua nova. Ô, Jesus.
CONTINENTE Essa oficina foi proveitosa para você, do ponto de vista prático ou teve mais essa coisa mágica de estar ao lado de Gabriel García Márquez?
SOCORRO ACIOLI Como havia outras histórias e outras pessoas, ficava muito específico, quando ele estava em cada história. Ele falou poucas coisas que foram importantes como técnicas, que é uma coisa controversa, por exemplo, que é pensar no eixo da história antes de começar a escrever. Tem autores, como o Saramago, por exemplo, que rechaçam isso radicalmente. Saramago diz que, se você pensar no que vai acontecer na história toda até o fim, antes de escrever, a escrita perde a graça. Mas eu sou partidária desse ensinamento do García Márquez. Eu preciso saber tudo o que vai acontecer até o fim, para depois escrever o texto. Ele falava também sobre a importância de você entender qual é o ponto de força da história, no que você está pensando em criar, e, no A Cabeça do Santo, ele dizia que o ponto de força era o fato do personagem ter acesso aos segredos de amor das mulheres. O personagem conseguia ouvir as orações que as mulheres faziam pedindo, para o Santo Antônio, o casamento. Então sabia de quem elas gostavam, com quem elas queriam casar, como é que estavam as histórias. Mas, realmente, não foi um curso sistematizado, com aulas preparadas. Ele sentava escutava as histórias, dava opinião, já cansado, já idoso. Mas houve duas coisas fundamentais. Primeiro, ele ter gostado da história de uma iniciante insegura, como eu estava ali; e segundo, foi que, no último dia, no sábado, teve uma festa de encerramento do Festival de Cinema de Havana. Na saída, ele me chamou. Quando ele já estava indo embora, o carro já tinha chegado, ele me chamou e pediu para eu prometer a ele que eu ia escrever e que eu não ia desistir. Aí eu estava toda alegrinha, eu disse, "claro que não, não vou desistir, lógico que não". Ele disse, pode ser que você desista, porque vai ser muito difícil. E eu achava que não, que ia ser fácil, mas foi muito difícil. Eu sabia que ia ser uma história que eu ia publicar e que ia ser uma história iniciada num curso com o Gabriel García Márquez. Isso já é muita expectativa e muita pressão. E essa fé que ele teve, de me chamar nesse canto, ele não fez isso com nenhum outro, e levar a sério o que eu estava fazendo, isso foi fundamental para todos os momentos que eu tive, depois, de dúvida, de questionar a profissão, de questionar o meu lugar nessa profissão, questionar o que era a profissão, questionar se não era para eu fazer outra coisa. E isso foi muito marcante. Era muito importante a aprovação dele. Essa fé que ele depositou em mim, naqueles seis dias, dura até hoje. O efeito disso dura até hoje, como se ele tivesse implantado um chip, que até hoje está ativo.
CONTINENTE Você falou sobre essa aprovação e pensei que deve haver o que se chama de síndrome do impostor também para quem escreve literatura, porque são tantos clássicos, são tantos livros maravilhosos, e eu acredito que, em algum momento, a pessoa se pergunta, para quê mais um livro? Você se questiona com relação a isso?
SOCORRO ACIOLI A escola desse curso fica num bosque, num lugar verde lindíssimo, que fica a 1h30 de Havana. Do prédio onde a gente tem a aula para o prédio onde eu estava hospedada, a gente passa por um caminho que eles botaram uma placa depois, que é o Caminho do Pensamento. Naturalmente, quando você vai só, você vai pensando. Nesse primeiro dia, eu prometi a mim mesma que eu não ia mais duvidar. Eu podia duvidar de qualquer outra coisa, menos dos temas que eu queria escrever, das coisas que eu queria escrever. Porque aquilo ali tinha saído de um absoluto nada, ninguém me aconselhou. Lembrando que isso foi há 18 anos. Ninguém me aconselhou, ninguém me disse, o melhor é isso. Eu que escolhi. Dentre tantos temas que eu podia ter escolhido, esse foi o tema que me emocionou, que eu vi como um tema fértil, e ele confirmou. Então, a partir desse dia, o que eu tiver que escolher, eu tenho que comprar, eu tenho que pagar o preço de confiar no que eu tiver decidido. E isso dura até hoje. Lógico que, quando você vai publicando livros, as coisas vão acontecendo, aparece de tudo para colocar à prova a qualidade do que você está fazendo, de seu talento, o que está acontecendo com a sua carreira. Isso acontece muitas vezes. Mas a síndrome do impostor, eu não tive. Apesar de eu não ser exatamente uma pessoa segura em outras áreas da minha vida. Porque eu acho que, desde cedo, eu coloquei o meu trabalho no lugar de trabalho e o ego no lugar do ego. Então as coisas não são misturadas. Tanto que A Cabeça do Santo quanto Oração, eles estão cheios de resenhas na Amazon, no Skoob… Eu leio tudo, no Twitter eu vejo tudo, e tem obviamente gente que ama, que adora, que se desmancha, que exagera nos elogios, e tem gente que esculhamba, e eu leio as coisas na mesma paz de coração. Eu acho que é um direito das pessoas, esculhambar o livro. Eu vivo esculhambando o livro dos outros também. Não publicamente. Eu não escrevo resenha e falo mal do livro de ninguém, eu tenho isso por princípio. Mas é direito da pessoa. Eu passei sei lá quantos anos escrevendo o livro, saiu e a pessoa tem o direito de ler e não gostar. Como eu separei, desde o começo, ter um olhar muito muito profissional para o que eu faço, separado do que eu sou, eu posso escrever um livro ruim e isso não significa que eu seja uma pessoa ruim, e eu posso escrever um livro muito bom e isso não significa que eu seja uma pessoa fora do normal ou extraordinária, não. É porque naquele momento o trabalho funcionou bem e é isso. E eu não sei se isso foi muito reforçado na oficina dele, mas é uma coisa que eu reforço todos os dias.
CONTINENTE E nas oficinas, você se depara com isso?
SOCORRO ACIOLI Sou professora de cursos de escrita há muitos anos, coordeno a pós-graduação e eu também não permito que as pessoas venham com mimimi. Vai fazer ou não vai fazer? Vai escrever ou não vai escrever esse livro? E tem isso aí, "Tem tanto livro no mundo". Eu vou ficar aqui lendo, investindo meu tempo, você quer fazer ou quer elogio? Porque também tem isso, às vezes a síndrome do impostor é um jeito truncado de pedir elogio, para alguém dizer, "Faça, é muito importante para o mundo, para a existência da raça humana, que o seu livro exista". E eu sou muito sem paciência, eu estou cada vez mais Analista de Bagé. Meu primeiro dia de aula está sendo cruel para as pessoas, eu acho que muita gente fica com medo, porque eu digo logo, "Aqui não é escrita terapêutica. Isso aqui é um curso baseado na Teoria da Literatura, em tudo que se escreveu sobre Literatura, na Filosofia, na Teoria Literária e em outros campos. Aqui não é um lugar para você trazer os seus traumas e escrever sobre os seus traumas. Eu não sou psicólogo, eu não vou saber lidar com as questões emocionais de ninguém, eu não tenho formação para isso, não tenho preparo para isso. Aqui a gente vai tratar da matéria literária, do texto literário, de tudo que eu posso fazer para que esse texto seja o melhor possível. Também não tenho formação em Psicologia para lidar com essas questões de boicote que vocês têm". Acho que o pessoal fica com medo de mim. Mas se a gente não faz isso, as pessoas empacam com a ilusão.