Entrevista

"Toda história pode trazer significado para o mundo contemporâneo"

O russo Stanislav Sokolov, diretor do filme de animação 'Hoffmaniada', veio ao Recife para o festival Brasil Stop Motion e conversou com a Continente. Leia a conversa na íntegra a seguir

TEXTO E ENTREVISTA JÚLIO CAVANI

13 de Agosto de 2018

Stanislav Sokolov é um dos mais consagrados artistas na arte da animação com bonecos

Stanislav Sokolov é um dos mais consagrados artistas na arte da animação com bonecos

Foto Thaís Lima/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Hoffmaniada é exatamente o que se espera de um filme russo. A animação em stop motion tem estrutura, lógica narrativa e ritmo bem diferentes dos padrões de mercado hegemônicos ocidentais ou hollywoodianos. Na última semana, o diretor do longa-metragem, Stanislav Sokolov, esteve no Recife para apresentar a obra e conversar com o público pernambucano sobre seus processos de criação e produção. Ele foi homenageado pelo festival Brasil Stop Motion, em cartaz até esta quarta (15/8), no Cinema do Museu (Fundaj Casa Forte), quando haverá mais uma exibição de Hoffmaniada, às 20h.

Aos 71 anos, Stanislav Sokolov é um dos mais consagrados artistas na arte da animação com bonecos. Começou a carreira no início década de 1970, ainda na época da União Soviética, e já dirigiu 17 curtas, longas-metragens e séries de TV. Seu maior sucesso internacional foi o filme O senhor dos milagres (2000), sobre Jesus Cristo, com um elenco de dubladores (na versão em inglês) que inclui os atores Ralph Fiennes, Miranda Richardson, Ian Holm, Alfred Molina e William Hurt.

Com Hoffmaniada (2018), o festival Brasil Stop Motion apresentou não só o trabalho de Sokolov, mas também do escritor, desenhista e compositor francês Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann (1776-1822). O filme apresenta a vida e a obra do artista de forma integrada, com seus personagens de ficção e delírios misturados a situações biográficas reais. Ele tem uma vasta obra no campo da literatura fantástica e seu conto mais famoso deu origem ao enredo do balé O quebra-nozes, um clássico do século XIX.



Hoffmaniada impressiona pela liberdade de narração. Ao combinar biografia e fantasia, Sokolov estimula a imaginação com personagens que se transformam em criaturas monstruosas de uma hora para outra, situados em planos de ação paralelos que se entrecruzam. Essa estrutura labiríntica complexifica a compreensão do enredo, ao mesmo tempo em que torna a obra rica em significados, com infinitas possibilidades de interpretação. É um filme que transborda erudição e opera, de forma sempre enigmática, no terreno dos sonhos, difíceis de ser absorvidos pelas vias lógicas mais racionais.

O russo Igor Khilo, que desenhou e construiu os bonecos de Hoffmaniada, também veio ao Recife para ministrar uma oficina no festival. Sokolov apresentou o filme e também proferiu uma aula especial (uma master class). Por causa de dificuldades de financiamento, o longa-metragem precisou de 14 anos para ser concluído e foi produzido em três fases intercaladas por longas interrupções, com patrocínios do governo e de um processo colaborativo de crowdfunding.

O diretor cedeu entrevista à Continente e conversou sobre a linguagem do stop motion, Hoffmann e as condições de produção do cinema de animação na Rússia ao longo das transformações políticas sofridas pelo país nas últimas décadas, entre a Guerra Fria e a Perestroika.

CONTINENTE No filme, por que os cenários e personagens são, em alguns momentos, mais expressionistas e cartunescos e, em outros, mais realistas?
STANISLAV SOKOLOV O filme tem duas realidades. Uma realidade é mais próxima da vida verdadeira de Hoffmann nos burgos do começo do século XIX, lugares de que ele não gostava. A outra realidade está situada na imaginação do escritor, nos seus sonhos e nas suas criações literárias. Os personagens desse ambiente mágico possuem um estilo grotesco, que às vezes lembra uma caricatura. Esse estilo foi baseado nos desenhos do próprio Hoffmann, que, inclusive, fazia caricaturas e desenhos satíricos. Como desenhista, Hoffmann também era muito influenciado pelo artista francês Jak Callot. Tudo isso ocorre também nos cenários, que são mais realistas no plano da vida de Hoffmann, que vivia nos burgos, e mais expressionistas no ambiente da fantasia, como nos sonhos e no Paraíso imaginado por ele. Hoffmann dividia as pessoas em duas categorias: as pessoas com o dom da fantasia e o talento para a criatividade, que são os músicos, e as pessoas sem esse dom fantástico.

CONTINENTE Hoffmaniada é um filme para públicos de todas as idades? Por causa da imaginação mais livre, crianças podem compreender melhor algumas coisas do que os adultos?
STANISLAV SOKOLOV É um filme para todas as idades, com certeza. As transformações mágicas e os efeitos especiais podem interessar muito a crianças, esse lado mais fantasioso e exótico, com criaturas e bruxos. Já os adultos podem achar interessante essa questão do processo criativo de Hoffmann e sua posição enquanto autor. Ele era um artista e, ao mesmo tempo, um funcionário, como se tivesse uma vida dupla.

CONTINENTE Por que o stop motion é uma boa linguagem para representar a vida e obra dele?
STANISLAV SOKOLOV As novelas e os contos de Hoffmann são perfeitos para o stop motion. É uma técnica que permite combinar os efeitos visuais do cinema de animação com a materialidade dos recursos utilizados. Assim, criamos um diapasão entre elementos reais e fantasiosos.

CONTINENTE Em sua visão, o que a obra de Hoffmann tem de universal e atemporal? O que ela diz sobre o mundo contemporâneo, por exemplo?
STANISLAV SOKOLOV Desde o começo da escrita do roteiro, eu e o corroteirista Viktor Slavkin sempre quisemos contar uma história que falasse sobre a vida contemporânea. O próprio Viktor começou a vida profissional como arquiteto. Ele percebeu que, na verdade, era um escritor e passou a dedicar as suas noites à escrita. Ele sentia que a criatividade era reprimida em seu trabalho com arquitetura. Seu dom especial estava na literatura. É um tipo de sentimento muito comum na sociedade atual. Hoffmann sentia o mesmo, pois era como se fosse uma outra pessoa à noite, com uma vida paralela.

CONTINENTE A maioria dos seus filmes é ambientada em séculos passados. Por quê?
STANISLAV SOKOLOV Acho que toda história, de qualquer época, pode trazer um significado para o mundo contemporâneo. As histórias de Jesus Cristo, por exemplo, que eu retratei no filme O senhor dos milagres, possuem muitos elementos que ainda fazem sentido no mundo contemporâneo. O mesmo vale para Hoffmaniada, pois, no mundo de hoje, há muitas pessoas que vivem em crise porque trabalham em profissões que não representam suas verdadeiras essências pessoais.

Assista ao início de O senhor dos milagres:



CONTINENTE Quando começou a conceber esse projeto e desenvolver a pesquisa sobre Hoffmann?
STANISLAV SOKOLOV Eu tive essa ideia na década de 1980. Porém, antes da Perestroika, na época da União Soviética, eu nunca poderia ter produzido esse filme, porque as histórias de Hoffmann possuem um conteúdo místico demais. A única obra de Hoffmann com a qual poderíamos trabalhar era O quebra-nozes. Para mim, sempre esteve claro que vários contos de Hoffmann funcionariam bem no cinema de animação, mas não era possível. O projeto de Hoffmaniada só começou concretamente por volta do ano 2000.

CONTINENTE Qual era a diferença entre trabalhar com cinema de animação antes e depois da Perestroika? Era melhor ou pior?
STANISLAV SOKOLOV Existia um lado bom e um lado ruim. Na União Soviética, havia uma boa estabilidade que permitia o desenvolvimento de projetos maiores e mais duradouros sem interrupções ou imprevisibilidade. Havia grandes estúdios nos países soviéticos, não só em Moscou, mas também em Kiev ou no Tajiquistão. Hoje em dia, acho que existe um número maior de estúdios independentes, mas não tão grandes e nem com aquela estabilidade que era garantida pelo estado.

CONTINENTE É verdade que a União Soviética desenvolveu uma indústria de animação para evitar a veiculação de filmes norte-americanos, de estúdios como a Disney, nos países socialistas?
STANISLAV SOKOLOV O Soyuzmultfilm, que já foi o maior estúdio de cinema de animação da Rússia, foi fundado em 1936 pelo governo soviético. No início, a Disney era uma inspiração e uma referência, apesar de o estúdio russo trabalhar com uma variedade maior de técnicas além dos desenhos animados tradicionais. Como os filmes da Disney representam valores do estilo de vida norte-americano, contudo, havia uma preocupação cada vez maior de evitar aquela ideologia, principalmente a partir da Guerra Fria, com estilos cada vez mais diferentes da Disney.

CONTINENTE Na master class do Recife, você mostrou fotos da produção do filme A noiva cadáver, usadas como referência na captação de recursos para Hoffmaniada. Você acompanha os maiores sucessos mundiais atuais do cinema de stop motion, como os filmes de Tim Burton (Frankenweenie), Wes Anderson (O fantástico senhor raposo) e dos estúdios Aardman (A fuga das galinhas) e Laika Entertainment (Coraline)? Chega a ser influenciado por eles?
STANISLAV SOKOLOV Para mim, eles são apenas uma referência técnica. A estrutura de produção deles serve como parâmetro para que nós possamos fundamentar as necessidades financeiras dos nossos projetos para montar nossas estruturas de produção. É uma referência puramente técnica. Nós fazemos filmes de estilos totalmente diferentes.


O diretor na master class do Recife, na Fundaj. Foto: Thaís Lima/Divulgação

CONTINENTE Tudo o que você produziu entrou no filme ou há cenas que foram retiradas no corte final da versão definitiva de Hoffmaniada? Já que é necessário tanto tempo para produzir as cenas, deve ser difícil eliminar o trabalho de meses...
STANISLAV SOKOLOV Eu tive que retirar algumas cenas porque o resultado final ficou longo demais. O filme é dividido em três partes. Quando juntei as três, surgiram problemas de ritmo. Cada episódio funcionava bem separadamente, mas, em conjunto, o resultado não ficava muito bom. Quando eu lançar o filme em DVD, provavelmente vou incluir a opção de ver tudo o que filmamos.

CONTINENTE Você acha que as novas tecnologias digitais e softwares são uma revolução ou uma evolução?
STANISLAV SOKOLOV Acho que a ideia de evolução é melhor, já que a essência da animação continua a ser o mais importante. Os novos instrumentos são mais convenientes, principalmente para os efeitos especiais e para harmonizar a dramaturgia clássica com os experimentalismos contemporâneos. Algumas tecnologias também podem agilizar alguns detalhes do processo de produção. Uma impressora 3D, por exemplo, pode reproduzir objetos que aparecerão em grande quantidade e precisam ser reproduzidos em larga escala, como as árvores de uma floresta. Os softwares nos ajudam a observar se a harmonia entre os diferentes elementos está funcionando na medida em que vamos avançando na produção. Antes das câmeras digitais, era mais difícil prever os resultados durante a produção.

JÚLIO CAVANI, jornalista, crítico e realizador. Dirigiu os curtas Deixem Diana em paz (2013) e História natural (2014). Atualmente, é também curador do festival Animage, no Recife. 

Publicidade

veja também

“O que eu ouvia é que isso não era uma profissão” [parte 2]

“O que eu ouvia é que isso não era uma profissão” [parte 1]

“Arte demanda um completo sacrifício”