Essa plataforma é um ponto de partida para muitas outras coisas. O pessoal dos slams do México fala muito em “formar comunidades”. E tem mesmo esse aspecto muito forte de formação de comunidade. Assim como tem esse aspecto em saraus, em festas de rua... É para se divertir, mas é um monte mais de coisa: ali acontece o rito, ali acontece cura, ali acontece troca de informação, de saber, de educação não convencional. É lá onde as pessoas fazem trocas culturais de profundidades que a gente nem imagina. Então o slam é essa plataforma para todas essas coisas.
CONTINENTE Você é uma das responsáveis por trazer, em 2008, o slam dos Estados Unidos para o Brasil. Como foi que isso aconteceu?
ROBERTA ESTRELA D’ALVA Eu trouxe o slam para o Brasil junto com o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, grupo que trabalha com teatro e hip hop e do qual eu faço parte. Dentro do Bartolomeu, sempre tive muito interesse pela voz, pela métrica, pelo pulso das palavras. Além de fazer parte do Núcleo Bartolomeu, eu também fazia parte da Frente 23 de Fevereiro, que era um grupo ativista das questões raciais e foi lá que eu vi pela primeira vez filmes como o SlamNation e vídeos de pessoas fazendo spoken word em slams. Eu falei: “O que é isso?”. E aí eu viajei para os Estados Unidos atrás disso e voltei para o Brasil querendo assistir, querendo participar... Eu procurei muito aqui, mas ainda não existia. Foi aí que organizamos o primeiro slam no Brasil, que foi o ZAP! (Zona Autônoma da Palavra), em 2008. E foi impressionante a adesão desde a primeira edição. Vieram poetas e espectadores de todos os lugares de São Paulo. E no segundo também e no terceiro também, e nunca parou. Talvez eu tenha tido esse feeling do vislumbre do slam. De olhar, instigar trazer para o Brasil. Mas o slam se fez no Brasil com as comunidades. A gente trouxe, mas o que ele virou, ele virou graças aos slams de rua, aos vídeos do Slam Resistência e a todas as pessoas que fizeram isso existir. Essa história começa em 2008, mas ela está sendo escrita ainda.
CONTINENTE Já se passaram 13 anos desde a primeira edição, em 2008. De lá para cá, o slam saiu das fronteiras de São Paulo e está espalhado por todo o Brasil. Que caminho você viu o slam percorrer nesse tempo?
ROBERTA ESTRELA D’ALVA Eu tenho visto muitas coisas nesses 13 anos: vi muitas transformações acontecendo; vi muito florescimento – principalmente de jovens que chegavam tímidos e, em um espaço muito curto de tempo, já tava totalmente apossado da sua voz, da sua escrita, do seu corpo. Eu vi, por exemplo, muitas poetas transicionando no slam – e ouvi vários relatos sobre o quanto o slam foi um espaço de acolhimento. Já acompanhei dentro dos slams processos de pessoas se entendendo enquanto negras, lésbicas, surdas. Ver as pessoas florescendo: eu acho que isso é uma das coisas mais lindas de ver. As pessoas se entendendo nas suas lutas, encontrando as suas turmas e se fortalecendo individualmente e coletivamente. Tem muito relato de pessoas que dizem: “No slam, eu encontrei minha turma, eu encontrei pessoas que me ouvem”, ou “Aqui tem gente que fala exatamente o que eu sinto”. E isso acaba com o sentimento de solidão. Os poetas e as poetas conseguem dar forma aos anseios, às vivências, às dúvidas, ao sofrimento de uma comunidade. É uma função social essa do poeta oral, que atravessou tempos. Desde os trovadores aos repentistas. No Sarau, no MC, no rap, no cantador popular. Essas pessoas conseguem uma sensibilidade, uma percepção, um ponto de vista para recortar ali, elaborar e devolver para a sociedade.
Quando a gente fez o ZAP!, a gente nem tinha isso na cabeça (que ia se espalhar pelo Brasil todo). Mas é para espalhar que nem peste mesmo. Rodas abertas com gente falando poesia e gente escutando. A gente precisa de muitas coisas, mas a poesia é vital também. No começo, as pessoas falavam assim: “As outras pessoas estão copiando vocês”. Mas não. O Marc Smith já fez assim copyleft – sem direitos autorais. É para ser usada e abusada como uma ferramenta fora da lógica do capital. É uma metodologia que funciona muito bem por isso. É um jogo fácil e barato. Você não precisa de nada, a não ser de gente querendo ouvir poesia e gente querendo falar. A última vez que a gente catalogou, em 2019, tinha mais de 200 slams em 20 estados. É isso! É para ser isso. A vocação é essa.
CONTINENTE Uma característica marcante do slam no Brasil é ser uma poesia carregada de relatos de vida. Poetas que mergulham fundo na experiência da dor, da denúncia, da afirmação identitária. O que significa poder ser autor de sua própria narrativa?
ROBERTA ESTRELA D’ALVA Eu acho que essa é uma das características mais importantes do slam: um espaço para autorrepresentação. É esse contar na primeira pessoa e, por ir tão fundo nisso, você está representando o outro. Eu sempre uso como exemplo o Mano Brown. Ele fala: “Dona Ana, a senhora é uma rainha”. E quando ele tá falando “Dona Ana, a senhora é uma rainha”, essa Dona Ana é a mãe de todos os caras que querem louvar as suas mães guerreiras. Ele tá falando por muitos ali e está falando por ele ao mesmo tempo. Então é uma autorrepresentação que vai tão fundo nessas paixões, nessas dores, nessas alegrias, nesses sonhos, que acaba por representar muitos. Só que isso você não consegue superficialmente. Precisa colocar com muita verdade. Ir muito fundo nas suas histórias. Ser muito verdadeiro com seu depoimento.
Mas é também como o Rappin' Hood cantava: “Se eu tô com microfone é tudo no meu nome”. Que é uma frase muito genial. O lance dessas histórias é que elas já foram contadas. Só que do avesso, erroneamente, apagadas pelos outros. Porque a história é contada pelos vencedores sempre. O slam é uma oportunidade de contar a nossa história com a nossa voz. Ninguém vai contar por mim, esse é o lance da autorrepresentação.
CONTINENTE O formato slam se contrapõe de muitas maneiras aos modos hegemônicos do campo da arte – seja no formato, seja no conteúdo, seja nos sujeitos envolvidos. Onde você enxerga essas fissuras?
ROBERTA ESTRELA D’ALVA O ZAP!, Zona Autônoma da Palavra (primeiro slam do Brasil) é inspirado no ZAT – Zona Autônoma Temporárea, conceito do Hakim Bey. Porque o slam é muito isso: uma zona autônoma que se abre autonomamente. Ninguém é dono daquilo. Você não consegue comprar e vender (você até consegue comprar e vender o registro – o vídeo, o livro, mas o momento é impossível). Então, ela é autônoma, é autogerida. Não é de ninguém. Se cria e desaparece para se formar em outro lugar. Exatamente como é uma zona autônoma temporária que o Hakim Bey propõe. Como dizia o Maiakovski e muitos outros, “não tem revolução se a forma não for revolucionária”. As pessoas estão ali por vontade, por essa sensação de pertencimento que se cria numa comunidade. Daí vira imperdível: você não vai perder o slam na noite da segunda-feira porque ali você sabe que tem uma coisa importante. Aí você dá um jeito. Por outro lado, tem a oralidade: o nomadismo da voz...
CONTINENTE E tem o trânsito da voz para a escrita, para a publicação que tem criado novas dinâmicas no próprio mercado editorial...
ROBERTA ESTRELA D’ALVA Eu olho aqui pra trás e vejo três prateleiras de autores que vêm do slam. O slam também é esse trânsito do oral para o papel. E têm sido criadas novas editoras, novos ilustradores e ilustradoras, novos revisores e revisoras... Os autores hoje em dia vendem na internet. São as brechas que vão se criando. Novos espaços e um mercado editorial paralelo onde as caras dos livros são diferentes, onde a ilustração, o prefacista é diferente. Você não precisa chamar não-sei-quem para validar seu trabalho. Tem muitos selos e editoras sendo criados. Um mercado independente de livro com assuntos que são diferentes lá das grandes editoras. Não só com assuntos, mas com formas e conteúdos diferentes de comercializar, de editar, de digitar, de ilustrar, de revisar. Você não precisa ficar tretando com revisor em um livro desse: um revisor formado na quebrada, que fez Letras na USP, mas é preto e sabe falar os dois idiomas. E aí não é necessário ficar explicando para ele que é uma gíria e não é para ele corrigir. Esse movimento é muito interessante contra essa pasteurização.
CONTINENTE Uma característica marcante desse slam à brasileira é a relação com a rua. O slam no Brasil é um evento relizado em lugares públicos, de graça e, que, ao final, disputam a própria cidade. Como você enxerga essa questão?
ROBERTA ESTRELA D’ALVA Foi com o advento do Slam da Guilhermina, o primeiro slam de rua do Brasil, que a cara do slam do Brasil se definiu – e ela é diferente do que é a cara do slam em todo mundo. Toda vez que você conversa e fala com os slammers de outros países sobre como é feito aqui, todo mundo fica muito surpreso. Porque os slams do mundo são feitos em lugares lugares fechados e aqui é feito na rua. Tem essa retomada do espaço público. O Slam da Guilhermina era ao lado da estação de metrô da Vila Guilhermina, por exemplo. Era em um lugar de fluxo, uma encruzilhada de idas e vindas, chegadas e partidas. Isso foi o que possibilitou de se espalhar: não precisar de um teto. Depois o Slam Resistência veio registrando em vídeo e colocando na internet e fez com que se espalhasse para o Brasil inteiro. Esses registros começaram a bater milhões de visualizações e as pessoas começaram a saber o que era o slam.
A rua é esse lugar de todos e de ninguém. É esse lugar de passagem e da não fixidez. Não ter um edifício (onde acontecem as batalhas) é ter as próprias pessoas como o edifício. Elas se tornam a roda do slam. Cada pessoa que está ali se torna o slam. No começo, você me perguntou o que que era o slam e o slam também é cada pessoa que está ali. O slam não é somente um tipo de poema, ele é a gira acontecendo. É o rito. Ele precisa da presença, das pessoas, da comunidade. Eu acho que a rua faz com que essa junção de corpos, vozes e memórias tornem muito especial essa formação desse edifício. Então, é uma retomada do espaço público como lugar de discussão, de exercício do livre pensamento, da livre expressão e da convivência – sobretudo em um tempo em que a gente tá com a cara nesses dispositivos o tempo todo, a rua te obriga a conviver e a ouvir.
CONTINENTE O slam no Brasil nasce como forma de resistência a um mundo excludente e a um mercado da arte e da poesia elitistas. Como é bastante comum acontecer com as expressões artísticas das perfiferias, na medida em que se tornam populares, passam a correr riscos de coptação/assimilação/apropriação. Você teme esse processo?
ROBERTA ESTRELA D’ALVA Isso é algo inevitável que acontece com tudo. Aconteceu com hip hop, aconteceu com funk, aconteceu com jazz. Tudo que está dentro da sociedade capitalista e sob a égide de seu sistema vai ser cooptado por ele uma hora. Não tem muita saída. Há muitos poetas que se beneficiam disso positivamente: as pessoas estão pagando contas e tal. Sempre tem esse risco de descaracterizar um pouco quando a coisa vira mercadoria. Corre o risco. Mas, como eu disse, a roda que tá ali, aquela roda não tem como virar mercadoria. O fogo, a fogueira... O microfone é uma atualização da aldeia que se junta em volta do fogo para contar suas histórias. Isso não se compra nem se vende. A necessidade de cura, de pertencimento, de descolonização, de festa, de pulsão de vida: isso sempre vai se preservar. Se não for no slam, vai ser outra coisa. No maracatu, na capoeira, é aqui, é ali.
CONTINENTE Você está falando da experiência, da magia. Tem um lugar blindado onde o mercado não consegue penetrar?
ROBERTA ESTRELA D’ALVA Tem uma parte que o mercado não consegue reproduzir. Ele não consegue reproduzir a magia. Pode até fazer igual, mas se não tiver ali o mestre, se não tiverem as pessoas querendo falar e as pessoas querendo ouvir, não tem como. Você pode fakear, vestir um estilo, uma roupa branca, com turbante na cabeça, mas não tem como. Rito é rito. Rito não é fake. A magia é a magia. E é a magia o que se quer atacar, o que se quer comprar, o que se quer reproduzir. E não tem como.
CONTINENTE O fato de ser regido por um júri popular, escolhido de dentro da própria plateia, é um elemento muito característico do slam. Isso fala sobre outras formas de legitimação, não é?
ROBERTA ESTRELA D’ALVA Sim. É por isso que eu mesma sou contra júri técnico. Quando se chama um júri especializado, ou um júri técnico, o que que você está querendo? Técnico de quê? Geralmente é uma briga entre escrito e oral. Geralmente, quando as pessoas estão clamando por um júri técnico, elas estão clamando por um júri que entenda de poesia escrita. Chamar as pessoas que estão de dentro da comunidade é muito interessante porque são pessoas que estão ali para partilhar. Que foram ali para ouvir, não para julgar. E por acaso elas se transformaram em júri, (essa pessoa) vai ser um bom jurado, porque foi com coração aberto para ouvir e não para julgar. E tem uma outra coisa: é para ser uma brincadeira. E, por causa dos campeonatos, ficou muito sério.
CONTINENTE Você chegou até a dizer que a grande potência do slam está no encontro. Eu queria que você falasse um pouco mais dessa potência.
ROBERTA ESTRELA D’ALVA Quando a gente fala de slam, está falando de performance. E performance inclui muitas coisas: inclui memória, inclui voz, inclui corpo, inclui a relação que se tem com o que está acontecendo no momento. Inclui uma atualização de memória – a memória de quem tá fazendo a poesia e de quem tá assistindo. É essa relação de presença que muda a apreciação. Nós não estamos apreciando um texto escrito. Nós estamos apreciando uma performance. Tem um ser ali. É uma voz e, antes de ser uma voz, é uma existência, é uma memória, é uma pessoa. Uma pessoa que tem ancestralidade, que tem suas dores, vitórias e derrotas, sua vida e que por isso tudo que essa pessoa viveu, ela tá ali. Você pode sentir e isso é o mais bonito. Você vê o quão diferente e o quão semelhante somos em nossas dores, em nossas dúvidas, amores e tudo o mais. Essa é a beleza. Essa diversidade. Você fica quieto para abrir os ouvidos, os olhos, o coração, o seu ser para prestar atenção em outro ser humano falando por três minutos. Isso é bonito em várias instâncias. Eu acho que tem a ver com humanidade. Uma técnica pra voltar a ser humano. A pessoa encontra ali uma função de religação. Encontra um caminho mais poético para essa espiritualidade. Não é a grande descoberta. Não é nenhuma catedral. É poesia.
CHICO LUDERMIR, jornalista e mestre em Sociologia. É escritor, artista visual e educador popular.