Vagalumes, quilombos e máquinas de guerra
Como experiências periféricas tensionam o fazer artístico hegemônico e reinventam a própria noção de arte
TEXTO Chico Ludermir
01 de Outubro de 2021
O 'grafitti' de Mila Ama, Shell Osmo (acima) e Heron Azul coloriu o cenário de filmagens do álbum visual 'Sobrevivências periféricas'
Ilustração Shell Osmo
[conteúdo na íntegra | ed.250 | outubro de 2021]
Pré-pandemia
No Pátio de São Pedro, coração do Recife, uma mulher negra recitava um poema de amor lésbico. Fazia ecoar naquele lugar, um dos símbolos de resistência da cidade, uma narrativa contada a partir de uma perspectiva singular. De um corpo a quem é endereçado um conjunto de violências de gênero, de raça e de sexualidade – se assim quisermos pontuar. De um sujeito a quem historicamente foi negada a possibilidade de se expressar publicamente. De uma existência que, ao longo dos últimos séculos de opressão, não cessa na reinvenção de formas de se organizar, de sobreviver e de continuar gritando. “O amor é um pixo no muro com tinta preta”, encerrou Patrícia Naia, naquela apresentação do Slam das Minas, sendo ovacionada por uma plateia composta majoritariamente por corpos, como o dela, periféricos em muitos aspectos.
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A poucos metros do Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis, no Coque, favela da região central recifense, um ônibus fretado estacionou, acalmando os ânimos de uma dúzia de jovens que o aguardavam. O destino não se podia dizer longe – uns 15 minutos com trânsito, se muito. Mas havia outra distância – esta, sim, enorme e histórica – que separava aqueles jovens moradores do Coque do Cinema São Luís (o mais tradicional da cidade), para onde iam pela primeira vez. Um abismo simbólico que se fraturaria logo em seguida, quando o videoclipe Brega Protesto – Sem Destruição, realizado pelo coletivo de audiovisual Coquevídeo, passasse naquele tela margeada por vitrais. Ou mais, quando, no microfone, fosse anunciado o nome daquele grupo como ganhador do prêmio de melhor videoclipe do ano de 2019, no FestCine.
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2021 – e o cenário é radicalmente outro. A pandemia do coronavírus, iniciada no ano anterior, já se mostra como uma marca trágica indelével para a história da humanidade e, no Brasil, de uma maneira particular, atinge a produção artística drasticamente. Numa tela de celular – do Coque, do Bode ou de qualquer canto do mundo – é possível assistir ao álbum visual Sobrevivências periféricas, da dupla Barbarize, composta por Bárbara Espíndola e Yuri Lumin. Além de um som, que mistura afrobeats, trap, samba, funk e bossa nova, o que se vê na tela está em diálogo direto com o pop global – seja da cantora norte-americana Beyoncé, seja da jamaicana Spice ou da banda portuguesa Buraka Som Sistema.
Se, do ponto de vista da qualidade musical artística, Sobrevivências periféricas não deixa a desejar comparado às suas referências, de outro, é impressionante saber que uma produção dessa grandeza foi viabilizada basicamente com o financiamento da Lei Aldir Blanc, edital emergencial de fomento para a classe artística a fim de remediar os efeitos da Covid-19 na cadeia de produção cultural. Multiplicar recursos se faz possível, quando a lógica que norteia uma produção é uma rede comunitária que se alia por um projeto comum de mundo.
Produções artísticas periféricas denunciam mecanismos de invisibilização e preconceito. Imagem: Shell Osmo/Ilustração
Outro dado que também causa espanto é uma obra como essa ter passado despercebida pela imprensa. A música do Barbarize, assim como as realizações do Coquevídeo e a poesia-performance do slam, faz parte de um conjunto de produções muito pouco visíveis dentro de um determinado mundo da arte. E, por mais óbvio que seja, é bom indicar que os motivos dessa invisibilidade dizem respeito a processos de exclusão e desigualdades sociais e raciais que ditam o que pode estar dentro ou fora – ou talvez fosse melhor dizer “quem” pode ou não entrar.
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O que une essas quatro experiências nas quais vamos mergulhar adiante, e algumas outras que atravessarão o percurso dessa grande reportagem com algumas características de ensaio, pode ser classificado com diferentes nomes (e com cada uma dessas nomeações pode-se entender um tanto mais sobre o tema). É uma arte periférica – como assim têm sido definidas as produções artísticas feitas por sujeitos das periferias, sobretudo urbanas – e o é porque se soma a um conjunto de obras, produções e experiências do campo artístico que, mais do que serem feitas por moradores e moradoras de favelas, têm como eixo temático e matéria-prima os modos de vida periféricos em suas dores e potências. Uma arte marcada pela exaltação de suas existências e pela denúncia do conjunto de mecanismos de exclusão e preconceito.
Barbarize, os slams, o Coquevídeo nascem cientes de sua vocação emancipadora. Sabem que cantar suas letras, recitar seus poemas, fazer seus próprios filmes já é, por si, algo que opera no campo da desobediência. O fato de existir uma geração de artistas negros e moradores de favela falando para o mundo todo – mas sobretudo se dirigindo diretamente aos seus – vem agenciado um fenômeno de transformação notável.
De dentro para fora – pelo modo com que remexem noções ultrapassadas de pobreza, raça e de hierarquias –, mas também de dentro para dentro nas relações de reconhecimento de si no outro e numa lógica comunitária onde o que está em jogo vai muito além do preço ou da chancela de um curador. É sobre a própria possibilidade de falar e, no limite, sobre a possibilidade de viver.
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A partilha de espaços no campo da arte, ou sendo mais preciso, no mercado da arte, é algo em constante disputa. Estar dentro ou fora dele envolve tensionamentos, lutas, organização política do lado dos que foram historicamente impedidos de entrar. Mas envolve também processos de cooptação, assimilação e concessões parciais do lado que agora se vê obrigado a abrir as portas. Mesmo bem-intencionados, alguns deslocamentos da “periferia” para o “centro”, das ruas para as galerias, geram neutralizações e apaziguamentos. Os processos de conversão correm o risco alto de descambar na fetichização do exótico e da espetacularização da dor. Em alguns casos, essas tensões ficam mais evidentes.
Em 2008, na noite da abertura da 28a Bienal de São Paulo, um dos maiores eventos de arte contemporânea do mundo, um grupo de cerca de 50 pessoas pixou as paredes e vidros do pavilhão projetado por Oscar Niemeyer. O gesto transgressor, que marcou aquela edição, dá forma à zona conflituosa do que cabe ou não dentro das fronteiras estabelecidas pelas galerias e museus.
O pixo “liberte os urubu” na Bienal de São Paulo de 2010 reacendeu o debate sobre as fronteiras da arte. Imagem: Filipe Araújo/Agência Estado
A disputa que, em 2008, saiu do campo do simbólico chegando à repressão física, vidraça quebrada e na detenção de uma pixadora, em 2010 tomou formas ambíguas: a curadoria de Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias convidou o mesmo grupo de pixadores, que dois anos antes tinha sido agredido por seguranças e reprimido pela polícia para, desta vez, a entrar na programação com credencial de artista. O convite reabriu o debate precisamente nos lugares ambíguos entre validação e cooptação; entre demagogia e rendição ao establishment.
O desfecho, ainda que tenha conseguido pesar a quebra de braço para o lado da insubordinação dos pixadores, não foi de longe capaz de resolver a equação complexa que envolve os movimentos entre hegemonia e contra-hegemonia. Um dos artistas que integravam a mostra pixou “liberte os urubu” na obra de Nuno Ramos, uma das mais repercutidas do ano, justo por usar um animal vivo em exposição. Como disse certa vez o próprio Moacir dos Anjos, que é estudioso das relações entre arte e política, a obra de Ramos que foi pixada naquela exposição equivalia, pelo seu prestígio na bienal, ao prédio mais alto da cidade.
Para além dos pontos de fricção que emergem nas fronteiras de encontro entre o que está dentro e o que está à margem, o debate que parece interessar aqui é aquele sobre a criação de outros espaços e dinâmicas capazes de preservar a potência periférica. Espaços que, apesar de não desconsiderarem o mercado (ou justamente por uma consciência de como ele opera em suas dinâmicas de assimilação), preservam uma autonomia na criação e se esforçam para inventar outros modos de fazer e outras formas de se organizar. Ora agenciam a formação política, ora são elementos para o reconhecimento de si; ora fazem nascer uma nova relação entre artista e obra, ora movimentam toda uma comunidade.
Ainda que parta de um outro campo do conhecimento, o prefácio de A questão política da educação popular, escrito por Antônio Cícero Sousa (Seu Ciço), se apresenta como um documento fundamental para esta discussão. Não somente porque, sendo a transcrição do discurso oral de um lavrador para um livro acadêmico, bagunça as estruturas de legitimação, mas porque o próprio conteúdo trazido pelo discurso de Seu Ciço é, ele mesmo, um curto-circuito no campo do conhecimento. Não à toa, foi reconhecido por Paulo Freire como uma referência.
De uma maneira sintética – a que é possível para esta reportagem –, o que Seu Ciço defende é que aquilo que é dito vem carregado dos lugares de quem diz. “É da mesma coisa que a gente fala quando a gente usa a mesma palavra?”, pergunta-se, retoricamente. “Não, não é. Porque quando o senhor fala, vem do seu mundo. Quando sou eu quem fala vem de um fundo oco que é o lugar da vida de um pobre”, responde, apresentando um pensamento que acumula noções de semiótica e perspectivismo ao mesmo tempo.
A construção dos significados, como explicado, está atrelada cutaneamente a um ponto de vista, a um modo de fazer e, mais subjetivamente, a um modo de existir – o que seu Ciço define como “mundo”. Com uma conversão simples do campo da educação para o campo da arte – terrenos muito próximos, por sinal – o que se pode entender é que existem de fato “mundos-artes” diferentes, que versam sobre outras formas de fazer, outras formas de criar, outras formas de ver, de veicular, valorar, de se organizar/produzir, porque está atrelado a uma outra forma de viver.
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Muitos autores já se debruçaram sobre experiências à margem – sejam dissidentes, como podem ser chamadas dentro dos estudos queer, por exemplo, sejam outsiders, como prefere o sociólogo Howard Becker. Mas, talvez, quem tenha conseguido definir melhor um conjunto de características de uma arte que percorre um caminho de autonomia e reinvenção diante das regras e códigos vigentes seja a dupla francesa Gilles Deleuze e Félix Guattari, em especial quando cunham os conceitos de literatura menor e de máquinas de guerra.
Antes de qualquer engano, é preciso dizer que, ao contrário do que se pode inferir, menor – e sua oposição complementar maior – não se refere ao tamanho, à importância ou ao valor. A “menoridade” diz tanto sobre o lugar minoritário de quem o faz quanto das relações que estabelece com o padrão e a norma. Pobres, pretos, indígenas, mulheres, LGBTQIA+ são minoria, não porque existem em menor número, mas pela relação com o hegemônico. “A maioria supõe um estado de poder e de dominação, e não o contrário”, escreveram na obra Mil platôs.
A menoridade, sendo assim, é caracterizada pela desobediência do padrão e por um vínculo coletivo que faz tudo ser político ao passo que se refere ao enfrentamento e à contestação do estado das coisas ordenadas e legitimadas. Mesmo que seja enunciada por um artista na sua individualidade, é capaz de articular uma ação comum. Quando Barbarize canta, canta toda comunidade do Bode. Quando Patrícia Naia declama, as sapatões pretas têm onde se espelhar. Quando jovens do Coque fazem um filme, estão dizendo a outros jovens moradores de favelas que é possível falar por si.
O que essa “maioria” detém não é somente a possibilidade de ocupar os espaços de poder, mas também a régua capaz de definir “quem” pode ou não ocupá-los. Pensar uma arte menor significa, por consequência, pensar no trânsito sempre ruidoso das relações centro-periferia (ou na relação maior/menor). Se, por um lado, é possível investigar as concessões e “pés-na-porta”, as fissuras e as brechas que tornam certos sujeitos e obras capazes de ultrapassar os muros invisíveis, por outro, é possível também olhar para as experiências justamente na dobra que fazem ao criarem outros “mundos/modos”, que correm em paralelo aos hegemônicos.
“Máquinas de Guerra”. É assim que Deleuze e Guattari vão chamar os agenciamentos situados às margens do Estado que, coexistindo com as instâncias de poder, encontram linhas de fuga, inventam formas próprias e regras que mudam o sistema de valoração. É o nome que dão àquelas formas que experimentam desviar-se do modelo universal, fazendo ressoar vozes distintas, nômades. Apresentar as experiências que seguem a partir de suas rotas exteriores à hegemonia parece uma forma interessante de trazê-las para dentro da Continente, a mais importante publicação de cultura de Pernambuco. Talvez a forma mais justa de borrar algumas fronteiras – ao mesmo tempo sem abrir mão da legitimação que a publicação lhes confere, nem do percurso “menor” que extrapola a veiculação na mídia.
Quando colocamos essas três experiências lado a lado neste texto, desejamos, além de incidir sobre os regimes de (in)visibidade, também pensar como elas (e junto com elas) transitam pelos diversos mundos da arte. Ou, melhor como os constroem.
A ARTE-QUILOMBO DE BARBARIZE
Três meses depois de ter lançado o álbum visual Sobrevivências periféricas, Bárbara Espíndola e Yuri Lumin reassistem ao conjunto de seis clipes que compõem o primeiro trabalho da dupla Barbarize e se impressionam mais uma vez. “A gente fez tudo isso mesmo? Não foi um surto coletivo, não?”, comentam entre si, ao se verem estampados na tela do computador, pelo Youtube, no link lançado no primeiro semestre de 2021.
A dupla Barbarize produziu Sobrevivências periféricas a partir da vivência na comunidade do Bode, no Recife. Imagem: Juliabe Balbino/Divulgação
O espanto que ainda persiste disfarça, na verdade, um imenso orgulho de ter conseguido produzir, a despeito de tantos obstáculos, uma obra audiovisual digna de grandes produções. A incredulidade vem junto com uma satisfação de se ver falando por si com suas composições, beats e corpos e, através deles, compor o coro dos pretos e pretas que “se amam e se armam fazendo som”, como dizem na letra de Pretos no topo, que encerra o álbum.
Talvez, ainda mais do que tudo, o inacreditável tenha a ver com a forma como o projeto foi produzido, compensando o pouco recurso financeiro com uma imensa rede de afetos e parcerias. A articulação que fez Sobrevivências periféricas acontecer, mais do que o dinheiro, foi movida pela certeza de que o que estava sendo construído ali ia muito além de um conjunto de videoclipes que lançaria a dupla Barbarize no mercado fonográfico. O título do álbum não é um acaso: o que está em jogo quando um casal de artistas pretos moradores de favela se junta para fazer arte diz respeito, mesmo, à possibilidade de sobrevivência de um povo.
“É mais do que só a música. Isso é o que a gente entende por fazer arte. É um espaço para construir a oportunidade para os nossos e criar outras imagens sobre a gente. É a possibilidade de aparecer na mídia sem ser nas páginas policiais”, reflete Bárbara. “É um jeito de mostrar nossas realidades e potências, se reconhecer ali e fazer com que outros também se reconheçam”, acrescenta Yuri.
Ao produzir suas próprias representações, Barbarize, e tantos outros artistas das favelas, fraturam o monopólio histórico das narrativas – a história única a que se refere a escritora Chimamanda Adichie – e, em um processo de autonomização discursiva, constroem um imaginário distante do estigma. Para além do sucesso pontual de uma dupla, a produção de Barbarize integra um projeto de mundo antirracista e, por isso, fazer parte dele não é só trabalho, é um posicionamento político.
A casa de um vizinho virou locação para as filmagens, a de outra, galpão para a confecção do figurino. A produção da comida caseira, o barqueiro Galego que levou a equipe para filmar no mangue, o grafitti de Mila Ama, Shell Osmo (autor das ilustrações desta reportagem) e Heron Azul que colore o cenário: tudo se entrelaça numa dinâmica comunitária de fazer. “Quando eu fui na casa de Patrícia (Souza, figurinista) e vi, na sala dela, um monte de gente colando miçanga, furando marisco para fazer nossas roupas, eu comecei a chorar. Toda aquela gente que eu gosto e admiro estava ali comigo”, relembra Bárbara.
Para trabalhar nesse álbum que começou a ser gestado em 2018, a dupla tinha um critério principal: o da identificação. Ao longo dos últimos dois anos, até a aprovação no edital da Lei Aldir Blanc, Bárbara e Yuri iam mostrando as primeiras composições a amigos, vizinhos, familiares, colegas dos cursos de dança e de artes cênicas da Universidade Federal de Pernambuco, onde estudam. “Se a pessoa se emocionava com a letra, a gente sabia que podia chamar pra trampar. Esse era o nosso termômetro”, explica a cantora.
E assim foi sendo montada uma equipe quase que integralmente composta por pessoas pretas, entre companheiros de graduação de ambos e muitos membros do Pão e Tinta, coletivo artístico do Bode que surge em torno do hip-hop. A equipe se revezou em múltiplas funções, ora na frente, ora atrás das câmeras. O assistente de direção Lucas Simpatia, a fotógrafa Thays Medusa e a figurinista Patrícia Souza, por exemplo, interpretam alguns personagens nos clipes. Já o iluminador Alírio Assunção, também é um dos dançarinos.
O que o trabalho de Bárbara e Yuri nos ajuda a compreender é que produzir uma arte periférica diz respeito não só aos corpos dos artistas em cena ou nos bastidores, nem somente ao conteúdo do que está sendo dito e cantado, mas versa sobre o método. Um processo onde o sentimento de pertença se revela pela arte; uma descentralização das funções e uma maneira menos rígida de divisão do trabalho; uma lógica própria que opera por uma rede de fortalecimento mútuo e que faz o pouco render muito. É o “Nós por nós”, famoso lema da quebrada, capaz de sintetizar uma ética que rege processos de solidariedade dos grupos subalternizados. Ou, em diálogo com a história do povo preto, poderíamos nomear como um processo de aquilombamento.
Pensando junto com a historiadora Beatriz Nascimento, que define o quilombo não como uma ideia localizada no passado, mas enquanto uma tecnologia ancestral de resistência da vida e da identidade negras diaspóricas, Sobrevivências periféricas é, sim, aquilombar-se. Enquanto repensam as estratégia de, literalmente, manterem-se vivos e vivas (os dados brasileiros sobre encarceramento e assassinato da juventude preta são dos piores do mundo), o fazem criando um território comunitário, afrocentrado e autônomo de criação artística. “Eu acho incrível a gente estar junto com os nossos se virando e se reinventando. Isso é muito próprio da periferia e do povo preto desde sempre. É a prova de que a gente consegue fazer muito com pouco”, comenta Bárbara. Ao mesmo tempo, a cantora pondera: “Mas também não deixo de ficar com raiva com a falta de oportunidade. A gente acaba pagando para trabalhar. Imagina as nossas ideias com mais recursos”.
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“Meu espírito quilombola não vai me deixar desistir”, diz um trecho da letra de Celestial, música que abre o álbum. Em cena, mulheres e homens pretos aparecem com seus punhos cerrados suspensos, com os pés fincados no mangue que circunda a favela do Bode, demarcando politicamente onde está localizada aquela obra.
“Celestial é um grito. Mas é um grito suave, porque a gente recorre à afetividade com as pessoas e com o lugar que a gente vive agora”, explica a cantora. Se a abertura do álbum traz consigo uma atmosfera da ancestralidade, do divino e do cuidado mútuo, as faixas que seguem transitam pelo desbunde, afirmação da identidade negra e o afrontamento. Tudo com um frescor contemporâneo e beats dançantes, misturando notas de afrofuturismo com o sotaque recifense.
Em Geração, o porvir vem num ritmo eletrizante que mescla referências brasileiras (como passinho e capoeira), africanas e diaspóricas (afrotrap) em batidas eletrônicas; em Foco somos tragados, em plano sequência, para uma festa underground e libertária; já em Ilumina, Yuri reverencia o sagrado e o profano da Deusa da Lama. O sambinha Raio solar é a crônica do domingão na praia, com direito a pelada, churrasco, paquera e corpos ao sol. Em Pretos no topo, Bárbara e Yuri aparecem no mais alto estilo Beyoncé e Jay Z, dando o recado: “Não venha me oprimir, se não arreio a tua lombra”.
A marra e o carão que o casal sustenta em cena se transforma em sorriso e simpatia ao longo da nossa conversa por videoconferência. Mais do que isso, uma leveza e bom-humor conferem à entrevista um ar descontraído, mesmo ao falar de temas sérios como os processos de invisibilização e precarização do trabalho. A despeito da qualidade estética e de um formato “álbum visual” ainda muito inovador para o cenário local, a recepção da imprensa foi quase nula (nenhuma linha nos jornais e revistas de Pernambuco). “Isso incomoda. Ainda mais quando a gente vê gente que começou ontem que já está na capa. A gente tem consciência que essas barreiras existem e sabe bem por que isso acontece”, comenta Yuri, se referindo ao racismo estrutural.
Já no Bode, a dupla virou hit. Na lanchonete Nordestinas, não é raro ver Barbarize passando na TV, e as redes sociais locais, como o influencer @tioiggor, têm divulgado o trabalho dos músicos. “Aconteceu de a gente sair de casa e cruzar com um motoqueiro que estava escutando nosso som. É estranho, mas a gente fica feliz”, comenta Bárbara, dizendo manter a mesma alegria de quando mostrava músicas para os colegas pelas primeiras vezes. “Nos espaços em que a gente não é bem-vindo, a gente também não quer estar”, completa, apontando para a importância das redes comunitárias de divulgação do trabalho.
“Tudo começou em 2016, na época das ocupações das universidades públicas, no Centro de Artes e Comunicação (da UFPE)”, relembra a cantora, referindo-se ao período do governo Michel Temer, em que a aprovação da PEC de congelamento dos gastos com Saúde e Educação por 20 anos geraram mobilizações em todo o país. Recém-ingressados na graduação (ela, em Artes Cênicas, e ele, em Dança), eles se somavam aos levantes de resistência estudantis quando se apaixonaram.
A atmosfera de luta política que marcou os primeiros encontros se mantém viva nas suas parcerias criativas. Antes de Barbarize, Yuri e Bárbara já trabalharam juntos em projetos de dança, artes visuais e teatro, como no espetáculo Desencaixe, que ela dirige e ele protagoniza. “De repente, a gente está com uma criança no colo”, brinca Yuri, mostrando a filha recém-nascida Naomi que, em Sobrevivência periféricas aparece carregada no ventre da mãe.
“Dividida ao meio, sobrevivência vira sobre vivências”, explica a dupla, ao final da entrevista. E todo o trabalho de Barbarize parece fazer ainda mais sentido. É sobre aquilombar-se ao mesmo tempo que é sobre disputar melhores oportunidades. É sobre poder denunciar o racismo, mas também enaltecer o simples ato de poder celebrar juntos. É sobre aprender com o passado e reverenciá-lo e é sobre enegrecer o mundo para Naomi e todas as crianças pretas que vêm.
SLAM, O SOM DE VOZES SILENCIADAS
O flyer, feito à mão, convidava “jovens, velhos e donas de casa” para um tipo de evento ainda desconhecido no Brasil. Era 2008 e a MC paulistana Roberta Estrela D’Alva acabava de voltar dos Estados Unidos com a cabeça fervilhando de ideias, depois de ter presenciado batalhas de poesia falada que juntavam multidões inflamadas em torno de uma declamação performática. “Aquilo que eu tinha visto era impressionante. Era gente de todo tipo parando para ouvir poesia, para aplaudir poesia”, relata.
Sem saber muito bem como fazer nem se o formato funcionaria aqui, junto com o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, seu coletivo de hip-hop e teatro, propôs o ZAP! (Zona Autônoma da Palavra), primeiro slam de poesia do Brasil. A edição de estreia, surpreendentemente, lotou o teatro do grupo, na Pompeia. A segunda, a terceira e a seguinte também lotaram. E o sucesso do formato instigou a criação de diversos outros slams na capital paulista, dentre eles o da Guilhermina, em 2011, na zona leste de São Paulo, o primeiro acontecer ao ar livre, e o Slam Resistência, em 2014, que, ao divulgar as batalhas nas redes sociais, viralizou o formato para todo o Brasil.
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No Recife, a poeta e professora de português Patrícia Naia assistia aos vídeos explosivos postados pela página do Slam Resistência no Youtube. Empolgava-se ao ver gente preta, das periferias, como ela, pegando o microfone, declamando histórias que poderiam ser a sua. De longe, também acompanhava com fogo nos olhos surgirem no Distrito Federal, em São Paulo e no Rio de Janeiro os Slams das Minas, coletivos que organizavam batalhas exclusivas para mulheres como forma de estimular a participação feminina em espaços livres do machismo.
A poeta Patrícia Naia é uma das organizadoras do Slam das Minas-PE. Imagem: Divulgação
Assim como as demais, Naia também nutria a vontade de recitar publicamente em locais onde se sentisse segura e confortável e, mais do que isso, tinha o desejo de criar esse reduto para poetas mulheres na sua cidade. “Me juntei com Amanda Timóteo (também poeta), em 2017, e pensamos em fazer uma edição teste ao lado do monumento Tortura Nunca Mais (Rua da Aurora, Recife)” conta, pontuando o receio que tiveram de que o evento não fosse ser bem recebido.
O resultado, no entanto, esteve muito além do que se esperava. “Foi uma coisa absurda. Era tanta gente que não dava pra contar”, narra, relembrando o início do Slam das Minas-PE, que desde então vem construindo um movimento histórico de formação de mulheres poetas no Estado.
Fazendo coro com Roberta Estrela D’Alva e Patrícia Naia, o poeta e curador não binário Tom Grito, uma das figuras centrais da cena Slam do Rio de Janeiro, descreve com o mesmo entusiasmo seu encontro com as batalhas de poesia, em 2013. “Esse negócio é a coisa mais incrível que eu já vi na vida”, pensou durante a sua primeira participação numa batalha nacional do Slam-BR, ao reconhecer naquele formato uma plataforma transgressora de formação política e um mecanismo de visibilidade para vivências periféricas. “O slam é um portal. Um espaço político formativo fora do sistema instituído”, define.
Um conjunto de características faz do slam, ao mesmo tempo, um fenômeno no país e uma tecnologia subversiva – já são mais de 200 espalhados em mais de 20 estados brasileiros. Por um lado, a simplicidade de um formato que não necessita muito mais do que das próprias presenças e, por outro, um conjunto de sujeitos historicamente oprimidos criando uma rede autogestionada de fala e escuta através da poesia.
Para o próprio Marc Smith – a quem é atribuída a criação do conceito –, o slam é a soma de muitas coisas: show, concurso, programa de auditório, bagunça... E dentro das características que compõem essa definição está a de ser copyleft (livre de direitos autorais). “Ele está fora da lógica da propriedade privada e a serviço de todo mundo que quiser. É fácil, é barato e você não precisa de nada mais do que gente querendo ouvir e gente querendo falar”, explica Estrela D’Alva, que além de poeta e uma das precursoras do slam no Brasil é também pesquisadora do tema na sua tese de doutorado em Comunicação e Semiótica na PUC-SP.
Isoporzinho das Sapatão com o Slam das Minas-RJ, em 2019. Imagem: Bléia Campos/@bleia
Tecnicamente, o slam é uma competição de poesia falada, com júri popular, que tem apenas três regras: poemas autorais, recitados em até três minutos, sem acompanhamento musical. Mas o que ele agencia é o que mais importa aqui. Desde que chegou ao Brasil, país fraturado pela desigualdade, virou o lugar de encontro, fortalecimento e reconhecimento de sujeitos periféricos. “É um espaço onde vozes sistematicamente silenciadas são ouvidas. Onde presenças invisibilizadas são vistas. É uma plataforma que agencia a formação de comunidade”, define a pesquisadora.
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Não são somente “outros” os corpos que seguram o microfone. Pensando nas dinâmicas que regem o campo da arte – de uma maneira elitista em muitas aspectos – pode-se dizer também que são “outros” os corpos que se reúnem para lhes ouvir. E é justamente nessa relação tão próxima entre quem fala e quem escuta que se encontra um dos elementos mais fortes desse espetáculo. É o reconhecimento de si nas poesias e performances que faz rodar a engrenagem do slam. Ou, como disse Patrícia Naia: “é a identificação”. É esse espelhamento que faz de um gesto muito simples tão político, em especial se considerarmos que a poesia sempre teve cara, corpo e voz. Mas que, por exemplo, essa cara raramente era preta, esse corpo quase nunca era gordo, essa voz não era travesti.
“O slam é o espaço que possibilita sujeitos improváveis se declararem poetas”, afirma Naia. E o que poderia parecer algo banal, se considerarmos os diversos mecanismos de exclusão que operam incessantemente também dentro do campo da arte, é algo muito transformador. “O que acontece depois disso é um estouro. Ninguém segura uma pessoa quando ela se reconhece enquanto autora de suas narrativas poéticas”, acrescenta ela. Reconhecer-se poeta, no caso de Tom Grito, veio junto com o reconhecer-se pessoa trans. “Poder falar em público e conhecer outras pessoas dissidentes como eu, me deu forças não só como artista, mas com o fortalecimento da minha própria identidade”, relata o poeta.
O processo de identificação, fundante no slam, atravessa também as suas instâncias de validação. Os jurados e juradas responsáveis por distribuir as notas aos participantes são escolhidos dentro da própria plateia. Assim, ao invés de assentar a consagração em cânones ou códigos exteriores à experiência, o/a slamer é legitimado pela sua própria comunidade. Uma legitimação que vem acompanhada de aclamação popular, mas que extrapola os circuitos das batalhas que lhes consagram campeãs e campeões. “Na minha estante tenho três prateleiras cheias de livros de poetas que vieram do slam. Esse trânsito tem criado novas editoras, novos ilustradores, revisores e outras redes de distribuição que funcionam sobretudo em publicações de baixo custo e vendas online”, relata Estrela D’alva. “Depois do Slam da Minas, vejo muitas mulheres produzindo seus próprios zines e livros. E eu faço questão de comprar, ler e compartilhar”, completa Naia.
Paradoxalmente, as palavras – tão valorizadas na poesia – não conseguem aqui alcançar a força da experiência. Presenciar uma ágora que se reúne para aclamar recitações, sobretudo aquela feita por sujeitos que foram doutrinados a engolirem calados as suas dores, é estar diante de um processo de catarse. “Ali acontece o rito, ali acontece a cura, ali acontece troca de informação, de saber. É educação não-convencional e é magia”, define Estrela D’Alva. Ainda para a pesquisadora, o slam é uma “gira” composta por cada pessoa que está presente. E é essa característica sutil que o torna incapturável por excelência. “É algo que se abre, se cria e desaparece. É uma zona autônoma temporária, como define Hakim Bey”.
Ainda que tenham começado em espaços fechados, as batalhas brasileiras se alastraram pelas ruas e, sobretudo, praças das cidades, gratuitamente. Essa é uma das particularidades do slam à brasileira e, por certo, um componente crucial nesse processo de popularização. Na saída do metrô Guilhermina Esperança, zona leste de São Paulo, no Pátio de São Pedro, no Recife, ou no Largo do Machado, no Rio de Janeiro: a poesia que ecoa nos slams é a ocupação dos espaços públicos e, ao fim, a disputa pela própria cidade. “É a retomada da rua como local de discussão, de exercício do livre pensamento, da livre expressão e da convivência. É uma atualização dessa ‘aldeia’ que se junta em volta do fogo para contar suas histórias”, defende Estrela D’Alva.
Parar, silenciar e dedicar um tempo a simplesmente escutar poesia já seria, por ele mesmo, um gesto subversivo dentro do frenesi capitalista. Mas, se acrescentamos aí o fato de ter se tornado a plataforma que estimula um conjunto de poetas de periferias que se apossam do microfone para falar de si, por si e para o seus, passamos a falar “desobediência” e “descolonização”, como defende Tom Grito.
“Vai de encontro a todo um processo de apagamento histórico e hierarquização do saber”, explica o poeta. O slam, como herdeiro do rap, é um dos responsáveis por desembranquecer a literatura e torná-la mais uma ferramenta de expressão do que de distinção; por reconectá-la com a oralidade, com os espaços públicos e tirar dela o caráter erudito que afasta a poesia das pessoas. É, como defende Patrícia Naia, ir na “contramão”. “Todo slam é uma legítima aula de literatura”, sintetiza.
OS FILMES VAGALUMES DO COQUEVÍDEO
Era sábado e, numa sala de aula do Neimfa, associação educacional no Coque, favela do centro do Recife, um grupo de jovens se juntava para discutir projetos de filmes: num canto, um trio debatia o argumento de um documentário sobre artistas da própria comunidade; noutro, um quarteto planejava em detalhes uma videoperformance de vogue ao som da música Poder e glória, de Linn da Quebrada e Ventura Profana; deitados com a barriga virada pro chão, uma dupla de crianças trabalhava empenhada no roteiro de uma ficção científica (com direito a apocalipse e zumbis).
No total, somavam quase 20 os alunos e alunas daquele curso que, durante o ano 2019, encontravam-se todos os fins de semana para experimentar através do audiovisual. Entre aulas de roteiro, fotografia, som, edição e atuação, o Coquevídeo se apresentava como um espaço de estímulo à criação artística periférica e uma plataforma para a construção de outras representações possíveis para um território marcado pelo estigma. Morar no Coque – como o é quando se mora em uma favela – é lidar com um imaginário coberto de preconceitos construídos por uma visão externa quase sempre incapaz de enxergar nesses espaços mais do que o díptico carência e violência.
As aulas do Coquevídeo, no Neimfa, são um espaço para a criação coletiva. Foto: Coquevídeo/Divulgação
“Quando idealizamos o Coquevídeo, pensamos na importância que é ter outros sujeitos produzindo representações. Num mundo construído a partir de imagens que atuam sobre nossas subjetividades, se apropriar dessa técnica é um caminho para emancipação política e, consequentemente, para transformação de nossas vidas”, afirma Ivich, uma das coordenadoras da ação.
Mais do que focar na capacitação profissional, nos explica a educadora, o que se deseja através do Coquevídeo é incidir no regime de construção de imaginários. E, para tanto, não há forma mais eficaz do que mexer na estrutura: dar condições para que quem sempre foi objeto passe a ter as ferramentas e possibilidades para se tornar sujeito criador das representações; para que, quem foi obrigado a aceitar imagens reducionistas e violentas sobre si, consiga confrontar este que é um mecanismo sofisticado de dominação e controle.
“Estamos cansados de gente falando por nós de uma maneira que não nos representa”, afirma Mekson Dias, que é morador do Coque e um dos integrantes do projeto. “Quando a gente faz um filme, escreve um roteiro, pega uma câmera, a gente está escrevendo a nossa história”, completa. O jovem de 20 anos, atualmente estudante de Artes Visuais do IFPE, ainda destaca outro ponto: para ele, o Coquevídeo tem sido também um espaço para fortalecer a comunidade e os laços de pertencimento.
O filme-ensaio Sem saída de Medusa, um dos alunos do Coquevídeo, aborda a realidade da favela durante a pandemia. Foto: Reprodução/Frame
Não é somente sobre transformar a visão externa do outro sobre si. O imaginário – que imprime hierarquias e regimes de opressões – tem outra face, talvez ainda mais perversa, que é a capacidade de afetar a forma como a própria periferia olha pra si mesma e golpear a sua autoestima. “Produzir juntos filmes, fotografias e arte em geral é muito sobre o desejo de conseguirmos enxergar de outra forma a nós mesmas”, explica Katarina Scervino, também coordenadora do curso e moradora do Coque. “É a possibilidade de perceber beleza em quem a gente é e no lugar onde a gente mora. Ver a magia que existe aqui e que a gente é ensinado a não ver”, completa.
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É também Katarina que nos conduz a pensar os processos formativos que atravessam o coletivo a partir da alegoria dos vagalumes, usada pelo filósofo Didi-Huberman no livro Sobrevivência dos vagalumes. Segundo ela, o Coquevídeo se apresenta, sobretudo, como um lugar onde se apagam os “holofotes” – as grandes luzes que ditam como gira a engrenagem do mundo – e, por isso, é onde se podem ver os brilhos delicados (ou “menores”, se quisermos voltar ao pensamento de Deleuze e Guattari), que surgem a partir da própria experiência do estar junto. “Essa engrenagem gira sempre do mesmo jeito porque é girada pelos mesmos grupos há séculos. O que a gente tenta fazer coletivamente não é aprender nem ensinar a fazer a roda girar de outra forma. É pensar como quebrar a roda e operar de outros modos”, aponta.
A metodologia do curso, para tanto, aposta em exercícios que funcionam como dispositivos para a criação coletiva, em convites para profissionais consolidados na área e em um processo sempre colaborativo e horizontalizado de feitura. Somada a isso, e talvez o mais importante, está a construção de um espaço libertário para todos os corpos e identidades, lúdico e regido por vínculos de afeto, numa rede de apoio que extrapola a sala de aula. “Não há como pensar qualquer processo formativo que não passe pela valorização da diversidade e pela capacidade radical de se transformar junto com o outro. É assim que a gente enxerga educação dentro do Coquevídeo e em qualquer ação dentro da rede”, explica Katarina. “E educação e arte são práticas irmanadas”, acrescenta.
A educadora Katarina Scervino é uma das coordenadoras do Coquevídeo. Foto: Chico Ludermir
A rede à qual se refere a educadora é um conjunto amplo de ações e pessoas que se movimentam coletivamente em muitas frentes no Coque e a partir do Coque (e, diga-se, há bastante tempo). O Coquevídeo, compondo essa teia, é parte da história do Neimfa – um espaço comunitário de educação não formal atuante no bairro desde 1986 – e também do Coque Vive/ Coque (R)existe, coletivo que atua pelas frentes da educação, comunicação, arte e cultura.
O grupo, que em 2013 ficou conhecido por articular uma frente de resistência diante do processo de despejo de 58 famílias da comunidade, não por acaso, tem uma extensa relação com o audiovisual. Além de ter produzido dezenas de filmes, tais como o longa documentário Coque: memórias da terra, a animação .Zip, e a série #Despejo – conjunto de curtas nascidos na urgência de defender aquelas famílias durante os processos de desapropriação – também tem dentro do seu histórico a condução de um cineclube – o Cinecoque. Atualmente, dentre as ações dessa rede, também estão o Revelar.si, coletivo de fotógrafas do Coque, e a Caranguejas, cooperativa de artesãs.
O que em 2019 se configurava como um curso de formação em audiovisual para jovens (aprovado pelo Funcultura), acabou se desdobrando em caminhos que culminaram na consolidação do Coquevídeo como um espaço coletivo de produção audiovisual. Já no final daquele ano de 2019 Brega protesto – Sem destruição, primeira produção do grupo, feita em parceria com o movimento Caranguejo Tabaiares Resiste, ganhou o prêmio de melhor videoclipe no Festcine (Festival de Curtas de Pernambuco). De lá pra cá, o coletivo foi convidado para participar de eventos consolidados na área como o Janela Internacional de Cinema – para quem produziu a mostra Respire, composta por cinco filmes inéditos – e o IMS Convida, do Instituto Moreira Salles, através do qual produziu a plataforma NaPerifa.org. “As coisas foram fluindo. O vínculo foi se fortalecendo e o desejo de continuar produzindo junto se manteve ao mesmo tempo que alguns projetos e convites surgiram para dar suporte e estrutura aos desejos”, explica Ivich.
AUDIOVISUAL COMO ELO
Ainda não passava das 10h e um conjunto de quase 15 jovens vindos de Caranguejo Tabaiares, comunidade vizinha ao Coque, se acomodava naquela mesma sala de aula do Neimfa, ao lado dos participantes do Coquevídeo. Ninguém se conhecia anteriormente. Mesmo assim, não demorou muito para que o clima de informalidade tomasse conta do espaço. O muito que unia aqueles dois grupos extrapolava a proximidade geográfica e a faixa etária: os meninos e as meninas que se encontravam pela primeira vez naquele setembro de 2019 partilhavam a experiência de viver em territórios ribeirinhos incrustados na região central de uma cidade que, dominada pelo mercado imobiliário, ameaça expulsar para longe os mais pobres. E, mais do que isso, partilhavam também o desejo-necessidade de agir em defesa da sua existência e da sua memória.
Fazia pouco tempo que os moradores de Caranguejo Tabaiares tinham tomado conhecimento de um decreto da Prefeitura da Cidade do Recife que previa a desapropriação em caráter de urgência de cerca de 100 casas à beira do Canal do Prado, a pretexto de sua requalificação (não por coincidência, processo similar pelo qual passaram as 58 famílias do Coque, em 2013). As mobilizações contra os despejos, puxadas pelo movimento Caranguejo Tabaiares Resiste, que articulavam tanto os moradores quanto advogados populares, acabaram também por promover o encontro que acontecia naquele sábado. Os jovens da comunidade ameaçada (integrantes do grupo Adolescer) tinham composto um brega-funk de protesto e o Coquevídeo se disponibilizava a gravar um videoclipe para a composição.
Brega protesto, parceria do Coquevideo com o grupo Adolescer, foi o videoclipe vencedor do Festcine de 2019. Imagem: Reprodução/Frame
“Sem destruição. Eu sou do Caranguejo e daqui não saio, não”, dizia o refrão, entoado ao ritmo da batida que é cara das periferias de Pernambuco (e que virou febre em todo o Brasil). A letra ressalta as relações de pertencimento e sublinha o desejo de permanência no lugar, que, apesar de estigmatizado, carrega a ancestralidade de um povo e a potência da vida comunitária. Para dar cara àqueles versos de denúncia foram gravadas cenas da vida cotidiana que se misturam a cartazes de protesto em punho, entremeadas por uma contagiante coreografia coletiva de passinho.
O processo de feitura, como nos explica Ivich, extrapolou em muitos aspectos o período de gravação e trouxe outras muitas camadas de sentido para aquele projeto. O Brega protesto foi, ele mesmo, dispositivo de encontro e pivô de uma construção coletiva que fortaleceu sentimentos de identificação e resistência, argumenta a educadora: “Fazer filme não deixa nunca de ser um processo formativo e, através dele, podemos ensinar, aprender e alterar rotas”, enfatiza. E foi o que de fato aconteceu. A viralização daquele vídeo na internet, após sua publicação em outubro do mesmo ano, trouxe fôlego para luta e compôs um cenário de pressão que culminou na revogação do decreto municipal apenas uma semana depois do lançamento do clipe.
O fato de Brega protesto ter sido premiado no FestCine, em dezembro daquele ano, faz dele uma síntese relevante. Ao mesmo tempo em que a obra se apresentou como um instrumento em favor da luta dos moradores de uma comunidade ameaçada e foi um dispositivo de encontro e formação de jovens periféricos, foi capaz também de transpor barreiras dentro das dinâmicas de legitimação do campo do audiovisual. Ganhar um festival, como se sabe, significa receber uma chancela de reconhecimento artístico e, nesse caso, a premiação borrou conceitos conservadores que separam arte, formação e intervenção social. O FestCine foi palco para a consagração desses jovens enquanto artistas e, em boa medida, foi também cenário para o eco da organização política que ali se presentificava.
“Um certo preconceito diz que o cinema engajado mantém-se indiferente a questões estéticas”, critica a pesquisadora francesa Nicole Brenez em um de seus artigos, Contra-ataques: sobressaltos de imagens na história da luta de classes, no qual discute o conceito de “filmes de intervenção social”. Segunda ela, é justo o contrário. Eles levantam questões cinematográficas fundamentais. “Por que fazer uma imagem? Como? Com quem e para quem? Contra que outras imagens ela se confronta?”. Analisar o Brega protesto por esse ângulo permite vê-lo na sua força criativa e reconhecê-lo compondo um conjunto de reinvenções estéticas nascidas das periferias.
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O que aconteceu depois de dezembro de 2019 com o Coquevídeo atravessa, como tudo no Brasil e no mundo, este período de abismo trazido pela pandemia do coronavírus. Diante do imperativo para interromper as atividades presenciais e do desejo de continuar vivo e atuando nas periferias em um momento em que trabalhar com cultura se tornara ainda mais difícil e precário, o coletivo idealizou o projeto Narrativas periféricas do fim desse mundo, que resultou no site NaPerifa.org.
Fruto da parceria com Instituto Moreira Salles – através de um programa de incentivo cultural específico para os tempos da Covid-19 – o Coquevídeo lançou um edital de fomento a produções audiovisuais que convocava realizadores periféricos – em um entendimento amplo de periferia – de Pernambuco para produzirem a partir do isolamento de suas casas. “Mais do que um programa que dava suporte financeiro, espaço e estímulo para artistas das periferias em um momento crítico, o NaPerifa partiu do nosso desejo de diversificar os discursos acerca desse período, explica Katarina. Ou, como provoca o texto de curadoria da mostra, publicado no site: “Vivemos o tempo de ruína de um mundo. Não é possível que a gente pense outros mundos sem considerar as narrativas das periferias”.
Ensaio de Priscilla Melo, de Água Fria, compõe a mostra Da minha quebrada do projeto NaPerifa. Imagem: Priscilla Melo/Divulgação
O resultado, ainda que tenha gerado uma repercussão midiática muito discreta, é um conjunto impressionante de 47 obras, entre documentários, ficções, performances, clipes, animações e ensaios fotográficos de artistas de várias regiões de Pernambuco. Com o NaPerifa, o coletivo extrapola as fronteiras de ação no Coque, ao contemplar obras das cinco macrorregiões do Estado. “A gente queria estabelecer conexões entre periferias diversas. Construir uma rede que, a partir de um projeto que nasce numa favela no Recife, articulasse produções de pessoas negras, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, rurais, de favelas da Região Metropolitana do Recife e fora dela”, explica Ivich.
De Pesqueira, no Agreste, uma dupla de indígenas Xukuru relata como o seu povo tem lidado com as restrições da pandemia; de Afogados da Ingazeira, no Sertão do Pajeú, um casal “escreve” Uma carta para o futuro, refletindo pesarosamente sobre o tempo presente; De Água Fria, no Recife, vem o Diário de uma mãe preta em quarentena e da Xambá, em Olinda, o músico Guitinho (falecido neste 2021) dirige um documentário sobre sua comunidade, um quilombo urbano que completou 90 anos. Assistir essas e tantas outras obras da mostra é se deparar com um retrato plural de Pernambuco, não só porque diversifica os sujeitos realizadores. É na consequência da diversificação de quem filma que se diversificam os discursos e, além deles, se tornam múltiplas as abordagens e estratégias de linguagem.
Olhar para a produção do Coquevídeo em perspectiva – seja o conjunto de obras realizadas especificamente pelo coletivo ou, mais amplamente, todas as que compõem o NaPerifa – é se deparar com a pluralidade do olhar periférico. Longe de se prender a uma única estética – ou àquela que se espera caricaturalmente que seja produzida pela favela – o que se apresenta ali são formas próprias de olhar, de fazer e de “falar”. Mais ainda: contemplar essas produções em conjunto com as experiências do slam e da dupla Barbarize, como propomos nessa reportagem, é entender um outro modo de se relacionar com a arte e, até mesmo, de reinventá-la. “A periferia é uma perspectiva, um modo de olhar. A partir desse lugar podemos falar de tudo. E a gente precisa falar. Até mesmo para mostrar às outras que é possível”, define Katarina.
CHICO LUDERMIR, jornalista e mestre em Sociologia. É escritor, artista visual e educador popular.