Rio Doce parte para descortinar essa jornada de Tiago ao mesmo tempo em que urde, em sua tessitura dramática, questões prementes na contemporaneidade – racismo, laços de família, masculinidade, afetividade e desigualdade social. Tudo, no entanto, pelo olhar deste protagonista. “Queríamos construir algo que fosse mais colado na experiência do personagem, mais sensorial, mais próximo ao que Tiago estava vivendo ali”, situa o diretor, que conversou com a Continente sobre esta produção da Ponte Produtoras, com distribuição da Vitrine Filmes, logo depois do Olhar de Cinema.
CONTINENTE Na sua entrevista para o site do festival Olhar de Cinema, que sediou a primeira exibição de Rio Doce, você contou que o filme é bem diferente do roteiro e este projeto foi acalentado por muito tempo. Então esta primeira pergunta é bem básica: como é que surge o enredo deste que é seu primeiro longa-metragem como realizador?
FELLIPE FERNANDES Eu tinha o desejo de fazer um drama de família. Tratar da paternidade era a coisa inicial, pois a história que sustentava esse drama veio até mim, na verdade, de uma reportagem que eu fiz quando era repórter da revista Aurora, no Diario de Pernambuco.
CONTINENTE E qual era essa matéria?
FELLIPE FERNANDES Era uma matéria sobre casas, sobre famílias que estão se despedindo das suas casas porque vão ser demolidas, por exemplo. Eu até fui lá conversar com a sua mãe e a sua tia, lembra? Na casa da sua avó, cujo terreno tinha sido vendido, então a casa ia ser demolida. A ideia é fazer um drama de família a partir de uma casa. O pai, dono daquela casa, morre e eu queria falar de paternidade a partir daquelas filhas que estão se despedindo dessa casa. Essa era a história original. O argumento é de 2014 e ao longo dos anos foi se desenvolvendo. Primeiro, aparecia o filho fora do casamento; em determinado momento, esse filho virou uma outra filha e aí passaram a ser quatro mulheres. Mas depois o personagem do filho foi crescendo, crescendo, até voltar a ser o foco. Porque se naquela época eu já tinha o desejo de falar da paternidade, a partir do momento que eu me torno pai (sua filha Cora tem 5 anos) é que a coisa muda mesmo. E aí fomos mais para esse personagem do filho, pois ele também poderia ser pai e assim poderíamos falar da paternidade nessa dupla perspectiva. Eu ter me tornado pai – essa é uma das grandes razões para essa virada do roteiro, pois antes era muito focado nas duas irmãs.
CONTINENTE Tem um filme do cineasta francês Oliver Assayas que eu adoro, chamado Horas de verão, que me veio à mente agora quando você me diz isso e do qual também lembrei, de uma certa forma, quando vi Rio Doce.
FELLIPE FERNANDES Que massa! Nesse momento do projeto em que o enredo era muito sobre a casa, Horas de verão era uma grande referência. Era mesmo. E eu adoro esse filme do Assayas também. Pois nesse primeiro momento, o argumento era muito baseado em uma das irmãs. Foi aí que ganhamos um edital para desenvolvimento de roteiro… Isso antes mesmo de eu rodar O delírio é a redenção dos aflitos, meu primeiro curta-metragem, que foi lançado na Semana da Crítica do Festival de Cannes, em 2016. E isso foi uma coisa muito legal, pois o prêmio apostou em um projeto escrito por uma pessoa que não tinha nada lançado ainda eles. Ou seja, foi uma aposta somente em cima do roteiro mesmo.
CONTINENTE E como era o nome do projeto nessa época? Era Rio Doce já?
FELLIPE FERNANDES Era não. Rio Doce foi agora há pouco. Durante muito tempo, o filme se chamava O último quintal. Porque o argumento é de 2014, era um momento em que eu tinha acabado de sair da revista Aurora e estava se discutindo muito a cidade, as questões urbanas… Era a época do Ocupe Estelita, por exemplo. O debate sobre urbanismo estava muito forte. No argumento, essa casa era a última da rua, no meio de um monte de prédio, então tinha um pouco isso, juntar a discussão sobre a cidade, sobre processos de urbanização, com o drama da família e essa relação com esse pai. Melhor, essa relação com a ausência do pai. Pois o pai é um personagem que era presente através da ausência dele, sabe? Ele nunca existiu enquanto personagem mesmo, só como lembrança na memória das pessoas que falavam dele.
CONTINENTE Não existia ali como personagem de carne e osso, mas dramaticamente já funcionava com um vetor para mover tudo ao redor, né? De sentimentos a rancores, de descobertas a acertos de conta… Em Rio Doce, esse pai ausente é um dos motores para o enredo.
FELLIPE FERNANDES É. Como eu falei, sua ausência é bastante presente. Escrevi a primeira versão do argumento em 2014. Em 2015, mesmo ano em que a gente filmou O delírio..., ganhamos o edital para desenvolvimento do roteiro. Então ali, no final desse ano, e no começo de 2016, a gente teve essa primeira versão. E aí fomos para Cannes. Quem tinha curta na Semana da Crítica era convidado para participar desse laboratório de roteiro, então fui e foi assim que tivemos uma primeira versão mais consistente do roteiro. Fui pra lá com uma versão e, ao voltar, comecei a trabalhar em outra perspectiva já. E aí continuei trabalhando nele enquanto fazia outras coisas.
CONTINENTE Quanto tempo durou esse processo de trabalho exclusivo no roteiro? Estamos falando aí de 2016, quando você foi para Cannes com seu primeiro curta.
FELLIPE FERNANDES Segui escrevendo o roteiro em 2016. Entre janeiro e fevereiro de 2017, fui fazer segunda assistência de direção em Piedade, filme de Cláudio Assis. Um amigo já estava na primeira assistência e me chamou e eu fui. Então eu fazia 12 horas de set, voltava para casa e ia trabalhar no roteiro. E aí ainda em 2017, rolou da gente ganhar um edital para produção cinematográfica, só que ali eu já estava achando que o roteiro tinha ficado distante do que eu queria fazer. E nesse meio tempo, achamos melhor filmar um curta – que foi o Tempestade – justamente para ganhar mais experiência antes de partir para um set de longa-metragem. Quando filmei Tempestade, já estava com a grana de produção de Rio Doce. Depois de rodar o curta, fui trabalhando mas só consegui parar para ficar exclusivamente no roteiro no segundo semestre de 2018, depois de eu ter feito Bacurau. Foi aí quando o filme tomou a forma que tem hoje, pois surgiu o personagem de Tiago e ele foi tomando o protagonismo, junto com o próprio bairro de Rio Doce, daquela história que eu queria contar. E assim filmamos em 2019, com a pré em abril e as filmagens em maio.
CONTINENTE E onde vocês filmaram? Aquela casa da família fica ali em Rio Doce mesmo, ou na orla de Casa Caiada, em Olinda? Ali ainda se percebem alguns casarões na beira do mar.
FELLIPE FERNANDES Não, não. Construímos no roteiro como se aquela casa fosse no Espinheiro, mas não encontramos nada no Espinheiro que funcionasse, então aquela casa é uma das últimas casas residenciais da rua Navegantes, lá em Boa Viagem. Demoramos muito para achar essa casa, justamente porque a maioria das casas residenciais que existiam ali no Espinheiro já estava acabada. As que estavam, e estão, conservadas estão todas renovadas. Queríamos uma casa que tivesse ainda as coisas tradicionais e a cara do poder aquisitivo daquela família.
CONTINENTE Sim, faz todo sentido. E quando você traz o foco do roteiro para o personagem de Tiago, o cara que é um filho bastardo do patriarca dessa família mas ao mesmo tempo tem uns corres dele, pois tem uma filha para criar e suas questões para resolver, isso deve ter lhe levado a procurar quem interpretaria o protagonista. De um lado, você trabalhou com atrizes com quem já tinha trabalhado antes, parceiras como Thassia Cavalcanti e Nash Laila, por exemplo. Mas do outro chegou até Okado do Canal. Como foi esse processo de escolha do elenco?
FELLIPE FERNANDES As irmãs eu já tinha desde o começo do projeto. Amanda Gabriel, Thassia Cavalcanti e Nash Laila: eu já estava escrevendo para elas. Eram minhas atrizes desde o início. Mas, a partir do momento em que surgiu esse personagem do cara, era uma incógnita de quem seria. Aí em 2018, quando eu estava no processo de finalização do roteiro para a pré-produção mesmo, Igor Travassos e Juliana Soares me mandaram um corte de Rosário, um curta-metragem que eles estavam finalizando. E Okado estava no curta. Eu o conhecia só de nome, da Favela News. E quando o vi atuando nesse curta, pensei em chamá-lo. Foram apenas ele e outros dois atores, Matheus Tchoca e Edilson Silva, que são maravilhosos e terminaram fazendo pequenas participações no filme. Quanto à nossa seleção de elenco, não é bem um teste, sabe? O que a gente faz é ter uma grande conversa – comigo, com Bruninha Leite, que fez a produção de elenco, e com o ator. E aí passamos duas horas conversando sobre os temas do filme. Aí no final dessa conversa a gente improvisa uma cena. Mas o foco dessa conversa é para entender como aquela história bate na pessoa. Tanto que geralmente a gente chamava de “sessão de terapia”, pois depois de um certo tempo estava todo mundo chorando – eu chorava, Bruninha chorava, o ator chorava… (risos). E com Okado essa conversa foi muito forte e muito bonita. As questões do roteiro atravesseram-no muito e ele sempre foi muito disponível para essa partilha. Logo na primeira conversa, eu já sabia da vida toda dele, de cabo a rabo. E aí, quando fomos fazer uma cena, senti nele o que acho que foi essencial – uma vulnerabilidade mesmo, sabe? Porque ao mesmo tempo que ele tem uma presença corporal super forte, ele é um cara todo tatuado, um homem grande, a gente precisava de um ator carismático com o qual qualquer pessoa pudesse se identificar ou, pelos menos, tentar entender um pouco o lado dele. E ele tem um olhar que provoca esse tipo de reação também, essa empatia de cara, que nos leva a pensar “tem mil coisas passando pela cabeça desse boy, sabe?”.
Okado e a atriz Amanda Gabriel, irmã na trama. Foto: Divulgação
CONTINENTE Rio Doce fala de uma ideia de masculinidade, que pode ser essa masculinidade frágil. É um filme escrito e dirigido por um homem e que tem como personagem principal um homem, que é um trabalhador que tenta se virar, que é um pai falível e que está ali tentando lidar com a descoberta de um pai e de umas irmãs de quem nunca tinha ouvido falar.
FELLIPE FERNANDES Queria falar disso tudo. Uma das razões de ter passado o protagonismo para um personagem masculino e ter deixado as irmãs como coadjuvantes era justamente porque eu sentia uma necessidade de ser um pouco mais profundo em certas angústias, que eu só conseguiria traduzir com mais clareza dessa forma, pois estavam ligadas à própria ideia de masculinidade. Quando vou nessa busca de tentar investigar a coisa da paternidade, necessariamente entro na construção da masculinidade. A perspectiva de olhar para essa outra masculinidade, com a intenção de construir uma outra masculinidade possível, que não a mesma das gerações anteriores… Uma masculinidade que não nos seja imposta nem compulsória.
CONTINENTE É massa você usar essa palavra “compulsória”. Você é jornalista de formação e como jornalista e roteirista entende bem a força das palavras. Falar em compulsoriedade implica pensar em tudo que vem no nosso código genético e que se reproduz às vezes sem saber…
FELLIPE FERNANDES É exatamente isso. E essas foram questões com que eu me debatia muito na minha vida pessoal a partir do momento em que me tornei pai. Ali, naquele momento, as questões de gênero ficaram ainda mais fortes. E você precisa exercer esses papéis da parentalidade, dividir assim e assado, e às vezes se percebe preso dentro de um papel a ser desempenhado.
CONTINENTE O personagem já tinha essa coisa da dança, do break e do hip-hop ou isso veio a partir das vivências com Okado?
FELLIPE FERNANDES A relação com o personagem era meio aberta. Poderia ter alguma coisa a ver com a grafitagem, com show, com as artes plásticas… O que eu sabia era que o personagem tinha uma relação com um passado, com uma tentativa de ter uma vida que não fosse presa ali no corre do proletariado, mas que não era assim muito bem definida. Tanto que no filme tem lá o rap, o reggae, o hip-hop e isso tudo chega a partir do momento em que fazemos o primeiro teste, depois da bateria de conversas com Okado. A partir dali, ganhei material para criar um personagem mais matizado, mais complexo.
CONTINENTE A narrativa de Rio Doce incorpora essas imagens, essas fotografias antigas, que se somam à trama imagética do filme como inserts ou pílulas que nos apontam para o que teria sido o passado de Tiago. São fotos da infância de Okado? Queria que você falasse um pouco sobre o uso desse material de arquivo.
FELLIPE FERNANDES A gente construiu o filme todo muito relacionado com a questão de arquivo. Aquela foto do pai de Tiago exerce um papel muito importante ali, pois está na carta. E depois tem aquela cena dos álbuns de Catarina, a personagem de Amanda Gabriel. Ela está vendo aqueles álbuns e Tiago vê essas fotos e também existem fotos tanto pela casa da mãe dele como na casa das irmãs. Então essa ideia de trabalhar com fotografias antigas já estava muito forte no roteiro. Mas os inserts vieram depois, na montagem. Quando começamos o processo de montagem, eu e Quentin Delaroche, fomos percebendo que tinha algo que nos interessava ali, que era a possibilidade de expandir as formas de contar a história. Algo assim: eu preciso contar aquela história, mas não quero usar todos os artifícios ao meu favor, que estão à minha disposição. Nas filmagens, havia uma limitação de grana e não tínhamos como filmar tudo, como criar uma infância do personagem de Tiago, pela quantidade de diárias. E uma forma em que conseguíssemos mostrar isso era através dessas imagens de arquivo, pois elas conversariam com toda nossa narrativa. E aí Okado tinha essas fotografias da sua vida e acabamos usando esse material.
CONTINENTE Falando em fotografia, como se chegou à composição da imagem de Rio Doce? É uma fotografia que nos aproxima dos personagens, mas que ao mesmo tempo sabe impor uma certa distância. E que passa longe dos clichês sobre uso e/ou força da cor, por exemplo.
FELLIPE FERNANDES Tinha uma coisa que não queria desde o princípio, e que era muito clara para mim e para a equipe, que era a seguinte: quando se olhava para o roteiro, e se pensava nele, muitas pessoas esperavam de cara que tudo fosse filmado com a câmera na mão, sabe? Como um “cinema verdade”. Participamos de um laboratório de um festival em Mar del Plata e isso vinha muito quando a gente discutia o roteiro com outras pessoas, essa expectativa para que tudo fosse filmado com a câmera na mão, com aquela imagem agitada, colada na pele do personagem. E eu não queria fazer o filme dessa forma. Nem queria fotografar Rio Doce, o bairro que eu conheço bem, dessa forma. Eu queria às vezes prolongar o tempo da cena, prolongar aquela sensação, e às vezes queria uma coisa um pouco mais estável. Mais clássica, até. Até mesmo pelas condições de produção, tivemos que nos adaptar. E aí passamos por um processo bem intenso, bem junto, eu, Pedrinho (Pedro Sotero, diretor de fotografia) e Thales (Junqueira, diretor de arte), com uma decupagem plano a plano. Os dois acompanharam a pré e os ensaios: juntos, visitamos as locações e fomos entendendo qual seria essa gramática, por exemplo, para uso do zoom em determinado momento. Também fomos trabalhando e elaborando a textura que queríamos dar a essa imagem.
Okado e a atriz Nash Laila, também uma das suas irmãs na história. Foto: Divulgação
CONTINENTE Tem um aspecto sobre a temporalidade do filme que me intrigou. Fiquei com a sensação de que a ação se passa em pouquíssimo tempo, do momento em que ele lê a carta àquelas cenas nas proximidades da avenida Conde da Boa Vista, no centro do Recife. Como foi essa costura do tempo na narrativa?
FELLIPE FERNANDES Pensamos naquela cena meio como um prólogo mesmo: naquele começo, Tiago vê a foto na praia e abre a carta e ali é uma forma de dizer que o filme vai ser sobre aquela pessoa, com aquela carta e aquela volta ao passado. Dali a narrativa já segue para a imagem de arquivo e depois o filme segue adiante, a partir do ônibus. Era uma forma de pensar uma introdução para o filme. Eu ficava com muito medo de, por exemplo, construir uma sinopse. Como você fala essa trama sem virar uma novela? Uma novela de Manoel Carlos, não é? Um jovem negro, morador de um bairro periférico, descobre que é filho bastardo de um homem que tem outras três filhas, todas brancas e de classe média alta. Ao mesmo tempo, queríamos construir algo que fosse mais colado na experiência do personagem, mais sensorial, mais próximo ao que Tiago estava vivendo ali. E não ser esse tipo de filme que, sei lá, existiu muito nos últimos 10 ou 15 anos, que eram bastante educativos para a classe média sobre o que poderiam ser a nossas desigualdades sociais. Quando eu estava escrevendo o roteiro, minha ideia era que toda a ação transcorresse em um único dia. Na montagem, modifiquei isso um pouco. A ideia era que os personagens fossem tridimensionais, que trouxessem complexidade, e para essa complexidade nem sempre temos resposta. Algumas coisas estão ali, naqueles instantâneos na vida de Tiago, da sua mãe, seu padrasto, seus amigos, da sua filha e de suas irmãs, e outras não se explicam. E ali se expandem para além do espaço cênico, para além do tempo, para além de tudo aquilo. Porque é assim na vida real. E eu amo os filmes, e queria muito criar um, que deixam aquela sensação quando acabam: você fica com saudade dos personagens, com a presença daquelas pessoas, que continuam com você por algum tempo… Nosso foco era muito em criar esses personagens, dentro dessa temporalidade, em uma narrativa que deixasse essas brechas.
CONTINENTE Por fim, depois das exibições nos festivais, primeiro no Olhar de cinema, agora no Festival do Rio, quando será a estreia de Rio Doce? Você pensa em exibir lá no bairro?
FELLIPE FERNANDES O filme deve entrar em cartaz somente em 2022. Acredito que no primeiro semestre ainda… Talvez lá pra junho. Vamos ver isso com a Vitrine. Mas sim, sim, queremos muito fazer uma exibição na Vila Olímpica de Rio Doce. Não apenas lá, e sim levar o filme para lugares que ainda estão à margem de um circuito comercial de exibição.
LUCIANA VERAS é repórter especial da Continente e crítica de cinema.