FOTOS CHICO LUDERMIR*
28 de Julho de 2018
O roqueiro Jonnata Doll
Foto Chico Ludermir
[conteúdo exclusivo Continente Online]
[leia ao som de Change your mind, de Neil Young]
Há pouco mais de 40 anos, um cearense cantou pela primeira vez estes versos: “Meu bem, o mundo inteiro está naquela estrada ali em frente./ Tome um refrigerante, coma um cachorro-quente./ Sim, já é outra viagem./ E o meu coração selvagem tem essa pressa de viver”. A conhecida Coração selvagem é de Belchior, que saiu de Sobral, interior do estado nordestino, com um violão debaixo do braço para viver de sua música em São Paulo. Décadas depois, Jonnata Doll, outro cearense rock n’roll da periferia de Fortaleza, faria o mesmo percurso, levando a tiracolo sua coleção de vinis. Entre eles, o Road to ruin (1978), do Ramones, um dos poucos que ainda guarda de quando vivia na capital cearense. Suas apresentações catárticas talvez venham de seu outro ídolo Michael Jackson, de quem assistia os videoclipes das fitas VHS. Aqueles movimentos o fizeram perceber a potência que a dança e o corpo têm. Acreditava que se houvesse algum problema, era só remexer o corpo, seguir os passos de Michael Jackson e tudo se resolveria. As primeiras vezes que experimentou apresentar suas performances foi com a banda anterior, a Kohbaia, em atividade entre 1997 e 2009.
Depois dos álbuns mais autobiográficos Jonnata Doll e os Garotos Solventes (2014) e o Crocodilo (2016), com participação de Dado Villa Lobos e Fernando Catatau, ele pretende lançar o single Pássaro azul, em outubro, e Sangria, em seguida. Se a primeira pessoa do singular fora tão evidente nos anteriores, no próximo, ele dará lugar a histórias dos outros, decorrentes de suas sensíveis observações urbanas, principalmente na cidade de São Paulo. Aliás, foi do também cearense Fernando Catatau, guitarrista à frente da Cidadão Instigado, o convite para participar de um show na cidade, que fez Jonnata decidir seguir com a banda Jonnata Doll e os Garotos Solventes para lá. Catatau o apresentou a Dado Villa Lobos, da Legião Urbana e, dessa parceria, outro convite surgiu: integrar a turnê da Legião Urbana pelo Brasil. Seu sonho tem dado certo.
Esta entrevista à Continente Online aconteceu algumas horas após seu desembarque no Recife para a turnê 3 picos, com apresentações no Iraq, no Festival de Inverno de Garanhuns e em João Pessoa (PB). Poucos minutos antes do primeiro pico dessa turnê, ao som de uma playlist poderosa de Evandro Q?, o artista nos falou de suas composições, censura, política, referências artísticas, relação com a família e as cidades Fortaleza e São Paulo, o sonho de viver de música e lançar um livro, além de outras cositas más.
Agradecimentos ao Iraq pelo espaço para as fotos e entrevista.
CONTINENTE Pra começar, de onde vem o Doll?
JONNATA DOLL As primeiras vezes que eu fumei maconha na vida, dava um efeito em mim muito diferente. Eu não dizia isto, mas quem estava comigo falava que baixava um santo e teve um dia que eu fiquei falando sem parar “Doll, doll, doll...”. Aí depois eu lembrei disso e botei Jonnata Doll. Não tem nada a ver com o termo em inglês, embora a grafia seja isso. Mas acho legal também que signifique boneca, porque eu me vejo como um cara que não está dentro dos padrões. Não acho que estou nos padrões hétero-normativos e o rock é muito careta de um tempo para cá. Então é legal me afirmar como Jonnata ‘Boneca’ nesse contexto.
CONTINENTE O que é o amor?
JONNATA DOLL [Risos] Logo uma pergunta dessa? Rapaz, o amor é a liga entre as criaturas e os seres, que se dá de uma forma não pragmática, como muitas vezes é o resto das condições que a gente vive, de sobrevivência. O amor não é muito lógico. É uma liga que está além da questão prática da vida e que, às vezes, complica sua vida.
CONTINENTE Sobre esses episódios de censura à arte que vêm acontecendo no Brasil… De certo modo, você é um artista transgressor. Já aconteceu alguma censura com você?
JONNATA DOLL Cara, já rolou sim. Mas não sei se meu santo é forte, porque nunca dá em nada. Na verdade, as pessoas não sabem o que vai acontecer no show. Por exemplo, a gente foi tocar no Sesc e, no final do show, minha calça caiu. Subi numa mesa, caí na comida de uma senhora e aí depois me disseram que eu não podia fazer isso. Mas o programador do show curtiu para caralho. Recentemente, a gente foi tocar no Festival Paraíso do Norte (PR), que era organizado pelo ex-prefeito e ele pediu para eu não ficar nu de cara, já antes de eu ir lá. Beleza, só que, cara, não tenho obrigação de ficar nu. Fico quando acontece no show, ou cai quando estou com o cinto frouxo. Às vezes, é uma explosão, mas não é todo show. As letras da gente são muito mais fodidas que isso. A gente fala de pedofilia, por exemplo. Não como um elogio, claro, mas nossas músicas são histórias urbanas, da rua, de pessoas que eu conheci. Falo que Fortaleza durante um tempo, acredito que ainda seja assim, foi uma cidade onde o turismo se apoiava muito na prostituição infantil. Eu canto essas coisas. Ficar nu é o de menos. Às vezes, os censores são muito burros, vão muito numa coisa que fica na cara. Então, uma ideia muito mais louca pode passar debaixo do nariz deles.
CONTINENTE E esses quadros de censura no Brasil?
JONNATA DOLL O Brasil é um país conservador. Tem uma matriz conservadora, católica, que dizimou os povos nativos. Via os povos nativos como demônios porque eles andavam nus, tinham eles como “os povos sem alma”. Então, esse é um traço. A gente viveu um momento com o governo Lula, em que a esquerda e certos ideais de liberdade estavam em voga e a gente achou que estava tudo bem, mas não. Os conservadores estavam todos aí, agora estão mais à vontade para se manifestar, falar absurdos e achar bonito. Eles não tinham essa voz. Hoje tem manifestação só de gente branca na Avenida Paulista se dizendo popular. Estou falando de São Paulo, porque sou de lá. [Risos] Quer dizer, estou morando lá, eu sou de Fortaleza!
CONTINENTE Na canção Rua de trás, os versos dizem: “Tenho gastado tudo lá na rua de trás”. São autobiográficos?
JONNATA DOLL São sim. Fiz essa música não só para mim, mas para a minha tia, que até hoje é dependente de crack. É ela que aparece no videoclipe [ver abaixo]. Eu era dependente de morfina. Uma das bizarrices de Fortaleza é que tem uma cena de viciados em morfina, devido a certas particularidades de algumas pessoas que descobriram uma fonte através de um medicamento. Em qualquer farmácia do Brasil, você extrai a tintura de ópio. A letra fala de um período da minha casa, não tinha praticamente nada. Tudo eu vendia para comprar morfina e minha tia na mesma vibe, só que com crack. A rua de trás é o Reino Encantado, uma comunidade que tem atrás da minha casa onde a gente trocava as coisas por drogas. Troquei muito vinil, discos que eu tinha desde 14 anos, mas não troquei todos! A única coisa que eu mantinha era a TV e o videocassete para ver shows. Até hoje coleciono vinil.
CONTINENTE E essa mudança de Fortaleza para São Paulo?
JONNATA DOLL Foi uma mudança que eu planejei mais ou menos durante dois anos. Sempre achei que deveria ir para São Paulo. Lembro de quando o Montage, que inclusive está voltando agora, foi para lá. O produtor Ricardo Lisbôa dizia: “Cara, vocês têm que ir para lá! O rock está mais lá”. A gente ficava nessa vontade de ir. Uma vez, o [Fernando] Catatau, em 2011, me convidou para fazer um show com ele. Curti tanto a cidade, que quis ir para lá. Mas poderia ser outra cidade também porque a questão é você sair do seu lugar de origem. Muitas vezes você tem que se deslocar para crescer. A gente era meio nômade e essa coisa de ser hereditário, sedentário, às vezes tranca o coração. Sair do lugar que você veio, você entende mais o seu lugar de origem porque está fora dele e é reconhecido como ele e, ao mesmo tempo, se desprende. São Paulo teve vários mestres e amigos que me guiaram, como Catatau, mas Belchior com as letras dele passou por isso muito antes da gente. São Paulo é uma cidade que é mais fácil circular por outros lugares, a gente está aproveitando isso também. Lá, a gente consegue ir para várias cidades vizinhas onde tem público de rock.
CONTINENTE Este ano, durante o RecBeat, o produtor Gutie nos falou que a próxima cena a bombar é a de Fortaleza.
JONNATA DOLL Realmente, tem muitas bandas boas no momento lá. A minha predileta é o Cidadão Instigado, que já é veterana. Mas tem uma chamada Casa de Velho, que é muito interessante o som, une uma parada de power trio de rock, mas com umas letras, certa estética que vem da tradição, se apropria de algumas coisas do maracatu cearense. Faz de uma forma muito original. Tem a Lascaux, quem está à frente é o George, já veterano da cena indie. É um som bem diferente. No instrumental, tem o Máquinas. Os mais veteranos que ainda estão na cena. Só esses que eu citei já movimentam muito. Tem uma banda de Sobral, do interior, chamada Kaloo. A Dudé Casado, que eu gosto muito, lá do Cariri. Tem muita gente talentosa. Fortaleza tem uma coisa por ser muito pobre nessa parte cultural, principalmente quando se faz um som que sai do forró e vai em direção ao rock. Você enfrenta muita adversidade até para curtir o som, aí você acaba sendo muito apaixonado, isso gera uma certa qualidade.
CONTINENTE Além da música, você já fez filmes, como A cidade onde envelheço. Já trabalhou com o cineasta Dellani Lima em filmes e nos seus clipes. No teatro, atuou em Aquilo que de roubaram foi a única coisa que me restou, de Biagio Pecorelli. Como é participar disso tudo?
JONNATA DOLL Acho que isso foi uma coisa que veio por causa da performance no palco; no show tanto dos Solventes, quanto da Kohbaia, que é minha banda anterior. A galera que trabalha com cinema, artes visuais, quando tinha uma persona mais performática, lembravam muito de mim. Eu sempre tive uma pira com cinema também, sempre escrevi. Escrevi argumentos e tal. Aí tive a chance de realizar meu filme com Dellani, que é o Planeta Escarlate, que a gente gravou em Minas. Tenho outros planos de escrever uma HQ. Eu gosto de contar histórias. No cinema, quadrinho, conto, fanzine, música, teatro. Também trabalhei com teatro em Fortaleza, no Coletivo Soul, do Thiago Arrais. Então, assim, estou em várias formas de expressar, onde rolar, estou indo.
CONTINENTE Como nasce uma composição sua?
JONNATA DOLL Nasce de formas diferentes. Nasce de alguma coisa forte que eu tenha vivido. Uma paixão, um vício, algo que eu vi na rua. Ultimamente, as canções que eu tenho composto falam de situações urbanas em São Paulo, pessoas que eu conheci na rua. Um cara que conheci no metrô, um cara que eu ia comprar maconha no Vale do Anhangabaú. A gente está para lançar um terceiro disco, as músicas que estou criando estão saindo de mim. Eu sempre parti da primeira pessoa, mas teve músicas como Senhor Walber e Táxi. Estou compondo como uma formiga forasteira no formigueiro alheio.
CONTINENTE Dizem que sua performance lembra Iggy Pop, mas quais são suas influências?
JONNATA DOLL Iggy Pop é uma influência muito forte para mim mesmo, mas de palco. Quando o vi a primeira vez, ele já mais velho, foi numa música chamada To belong, em 1996, quando a MTV chegou em Fortaleza. Nos anos 1990, eu só ouvia rock se fosse com os amigos, pedia emprestado. A MTV ficou três anos na cidade e mudou a cena de Fortaleza, porque foi uma época que ela investia muito nas bandas underground. Tinha o programa do Gastão, Gás Total. É engraçado que sou amigo de gente que conheci vendo os clipes. Tipo Larry Antha, do Sexy Noise, lá do Rio de Janeiro, Júpiter Maçã… Tenho muitas referências do Ramones, mas não tenho nem bandas específicas, mas a ideia de punk rock. O rock nacional dos anos 1970 e 1980. De literatura, tenho muitas referências… Jack Kerouac, os poetas beats, Adoux Huxley, ficção científica, filmes de terror. Filosofia também, Deleuze e a própria vida, os amigos. Eu conheci o Casa de Velho, vi a forma que Mateus fazia música e isso já me pegou. Belchior me influenciou muito desde que cheguei em São Paulo.
CONTINENTE Você veio de uma família evangélica. Qual sua relação com religião?
JONNATA DOLL Não sou religioso, não tenho religião, não sigo religião nenhuma, mas tenho uma espécie de espiritualidade individual. Acredito na magia, nos pequenos atos mágicos que você faz. São quase toques para mim, fica no limite entre o toque e o ritual mágico.
CONTINENTE Como é tua relação com a tua família?
JONNATA DOLL Eles gostam muito de mim hoje em dia. Têm muito apreço porque eu sou o filho que saiu, foi morar em São Paulo e me recuperei do vício. Quando eu vou lá, eles têm muito carinho. Não tentam mais que eu volte para a igreja. Tem uma música da gente, Quem é que precisa, do álbum Crocodilo. Ela fala um pouco disso, eu era evangélico, nasci numa família evangélica só de mulheres, só meu avô de homem. Eles eram muito excêntricos, da periferia de Fortaleza. Viviam um mundo à parte, o mundo da igreja. Nasci nesse contexto, super mimado. Só que eu tinha uma tia doida, que era minha Tia Zu, na época nem era doida, mas era rebelde e gostava de Elvis Presley, de filmes, ela me mostrava os clipes do Michael Jackson. Ah, referência para mim: Michael Jackson! Uma das formas que eu comecei a me expressar primeiro foi com a dança, antes da música. Eu dançava Michael Jackson, tinha uma viagem nele. Achava que se acontece algum problema, ia começar a dançar como ele e ia ficar tudo bem. Enfim, a religião fazia eu me sentir muito culpado quando me debruçava sobre essas coisas, quando eu lia um quadrinho, via um filme de terror, ouvia um som, ouvia Michael Jackson. Tudo era do cão, tudo era do inferno, tudo era do mundo. Na minha época, minha família era da Assembleia de Deus, era uma igreja bem humilde, eles separavam as coisas entre as coisas de Deus e as coisas do mundo. Rock era do mundo, desenho animado era do mundo. Você poderia até ver essas coisas, mas não poderia se ligar tanto. Política era coisa do mundo, não existia ser político e evangélico nesse contexto. Com o tempo fui rompendo. Engraçado, pensando assim, o que me fez romper foi um livro do Osho e uns livros da Nova Era que chegou pra mim. Tinha um cara que dizia: “Se somos a imagem e semelhança de Deus, logo somos Deus e temos o poder de Deus. Se você desejar qualquer coisa para o inconsciente, ele realiza”. Ensinava a meditar para fazer esses pedidos. Eu curtia punk e tinha essa pegada Hare Krishna. A gente andava a pé vestido de punk, chegava na beira da praia e ia meditar. Só que teve um dia que eu apanhei da polícia numa feira agroecológica. Tinha ido só comprar uma camisa dos Ramones, estava na hora errada, no lugar errado com um visual todo doido. Nesse dia, eu aprendi que não adianta pensar positivo que as merdas acontecem. Depois, entrei na faculdade de Sociologia e fui perdendo esse lado da religião. Eu queria trocar, não ser evangélico. Minha religião é o rock n’roll mesmo e as minhas micromagias.
CONTINENTE Já teve alguma experiência mística?
JONNATA DOLL Para mim, essa experiência mística é estar aqui, tocando com a banda e tal. Ter tido um sonho, acreditado e contra todas as probabilidades, circunstâncias... Estar aqui, para mim, é uma experiência mística. Acho que gostaria de lançar um livro. Já escrevi e publiquei em revista uma coleção de crônicas e contos.
CONTINENTE Em entrevista à Continente, o cantor Otto defende que artista deve estar com o povo, em defesa dele. Você concorda?
JONNATA DOLL O povo é muito complexo, não existe o povo. Existem milhões de agrupamentos, turmas. Não dá para estar do lado do povo total, porque sempre vai ter uma parte do povo que não vai fechar com você. Estou do lado de uma parte do povo, a que espera uma vida mais livre, sem relação de poder e desigualdade entre os gêneros, de quem está contra o racismo e a homofobia. Estou contra o sistema de governo que só privilegia os ricos, nesse sentido estou contra o povo. Não estou do lado do povo da Igreja Universal.
CONTINENTE E a turnê com o Legião Urbana?
JONNATA DOLL Foi muito massa. Pude vivenciar o máximo que você pode chegar fazendo rock no Brasil e sendo extremamente popular. Tive a oportunidade disso. Ao mesmo tempo, o Dado [Villa Lobos] é meu amigo, um cara que me deu uma super força. Eu cresci ouvindo o disco dele com o Legião. Foi místico para caralho.
CONTINENTE Para terminar, o que é arte?
JONNATA DOLL [Silêncio] A arte é como o amor, sabe? Um desejo que você tem de expressar o inominável. É muito difícil definir o que é arte, mas acho que é a expressão do inominável. Acho que consigo responder melhor dizendo o que ela fez pra mim. A arte foi o que, por exemplo, me fez não ser mais um garoto evangélico, esquisito da periferia de Fortaleza. Arte que pegou meus aspectos mais estranhos, porque eu era uma criança estranha e transformou numa potência. Acho que ela faz isso pelas pessoas de formas diferentes. Mas a arte é inútil, por isso que eu disse que ela parece com o amor, não é pragmática nem prática. Por isso que o artista nesse momento ultraconservador é tão atacado. A galera que faz performance na rua, tem gente que grita: “Vai trabalhar, vagabundo!”. Não serve pra nada, a utilidade dela é estar num lugar que não é fácil de definir.
ERIKA MUNIZ é graduada em Letras pela UFPE e estudante de Jornalismo. Estagia na Continente desde 2016.
*A conversa com Jonnata Doll foi realizada no Iraq, bar "inferninho" do Recife, Agradecemos ao dono do espaço, o DJ Evandro Q?, por ceder o local à reportagem da revista.