"Aos que produzem a negação do outro, é preciso punir"
Em seu novo livro, professor e pesquisador Michel Gherman lança seu olhar sobre a colonização do judaísmo pelo que ele define como fascismo tropical
TEXTO Luciana Veras
27 de Abril de 2023
Michel Gherman
Foto Zo Guimaraes/Divulgação
[conteúdo exclusivo Continente Online]
Quando a editora Fósforo lançou O não judeu judeu: A tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo, em setembro de 2022, a eleição presidencial ainda não estava decidida, porém já era possível analisar o porquê daqueles candidatos estarem ali pleiteando o cargo máximo do Brasil – Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), em sua sexta eleição, buscando o terceiro mandato, e Jair Bolsonaro, do Partido Liberal (PL), na tentativa de reeleição. De fato, inúmeras publicações radiografaram – e ainda hão de radiografar – Lula e o ex-capitão do Exército eleito em 2018, justamente quando o líder petista estava na prisão, porém o que mais interessava Michel Gherman, professor de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ, pesquisador do Centro de Estudos do Antissemitismo da Universidade Hebraica de Jerusalém e autor do livro, não eram tais percursos e variáveis, e sim um processo bem específico, que lhe era e ainda é muito caro e que está resumido no título escolhido: a colonização do judaísmo pelo que ele define como "fascismo tropical".
O episódio que catalisou seu desejo de abarcar o tema aconteceu em abril de 2017: então deputado federal pelo Partido Social Cristão (PSC), Jair Bolsonaro daria uma palestra na Hebraica do Rio de Janeiro. Do lado de dentro, judeus conservadores, de direita, aguardavam a pessoa que, àquela altura, já era o representante máximo da extrema direita brasileira. Do lado de fora, manifestantes, muitos dos quais judeus progressistas, de esquerda, protestavam com veemência. Foi nesta noite, por exemplo, em que o hoje ex-presidente deu a nefasta declaração sobre o peso de um quilombola. E foi nesta noite que Gherman, que também integra o Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ, externou seu descontentamento contra a acolhida que a institucionalidade judaica dava a um político merecedor do rótulo de nazista.
"Aquele foi um evento de inclusão. E isso é muito importante porque a definição de judaísmo no Brasil deixa de ser étnica e cultural e passa a ser ideológica e política. Ficou famosa a fala do Bolsonaro sobre o afrodescendente, mas se você troca 'judeu' por 'quilombola', isso passa a ser nazismo, não é? Nessa mesma frase, logo depois, ele propõe uma hierarquia racial e cita quais raças são boas raças e quais raças são raças ruins. As raças ruins seriam chineses, haitianos e venezuelanos e as raças boas, veja só, são japoneses, alemães e italianos – as raças do Eixo da II Guerra Mundial. Isso é nazismo, sem dúvida nenhuma", observa Michel Gherman em entrevista à Continente ocorrida em janeiro, duas semanas após a invasão de Brasília por terroristas apoiadores do ex-presidente.
"Nesse discurso, ele propõe a abertura de uma porta para essa nova comunidade de maioria, em um convite quase mítico para uma nova comunidade política e ideológica onde não judeus judeus, como ele, vão expulsar os 'judeus não judeus' que estavam do lado de fora. É uma história de expulsão dos judeus de fora pelos judeus de dentro. Não é uma invenção do Bolsonaro, mas o que ele faz é levar ao extremo e produzir uma demanda de que judeus vivos, e não apenas judeus mortos, sejam expulsos de dentro. E os judeus de dentro da Hebraica aceitam a tarefa", continua.
Na apresentação de O não judeu judeu: A tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo, Misha Klein, professora de antropologia na Universidade de Oklahoma, EUA e pesquisadora da relação entre identidade étnica e nacional, corrobora: "O que nos obriga a continuar nessa linha de pesquisa é a obsessão com a ideia de judeus, de judaísmo e de Israel nas manifestações variadas da extrema direita. Quando vemos bandeiras israelenses em manifestações nacionalistas da direita, quando os filhos políticos de um político que se autoproclamam patriotas portam camisetas do Exército e serviço secreto de um outro país (aliás, um ato que levaria um judeu a ser acusado de traição), e quando a retórica desses políticos e seus orientadores está cheia de referências a esses temas, temos de nos aprofundar".
Por isso, Gherman, que se considera um "judeu secular e religioso", mergulhou em sua trajetória pessoal e na historiografia das imigrações judaicas, no cotejo entre as ideias de judaísmo, judaicidade e judeidade e na avaliação minuciosa de como o "fascismo tropical" se apropriou de símbolos para criar uma retórica própria, muito a partir da atuação de figuras como o falecido filósofo Olavo de Carvalho, para criar um robusto, nuançado e necessário ensaio.
Para ele, "continuar a ser judeu nas melhores tradições do humanismo judaico, promovendo debates e discordâncias, encontros e desencontros, fortalecendo as diferenças típicas da tradição judaica, é uma das formas de resistir ao fascismo brasileiro". Afinal, como escreve no desfecho de sua narrativa: "Diante disso, o compromisso é de resistir às torpes tentativas de colonização do judaísmo empreendidas pelo fascismo tropical. Que não nos preocupemos com o nazismo apenas quando as chaminés dos campos de extermínio começarem a fazer sombra. Evitemos que os passos para Auschwitz virem pegadas".
Leia abaixo uma versão editada da conversa.
Livro saiu em 2022, pela editora Fósforo
Imagem: Fósforo/Reprodução
CONTINENTE Em O não judeu judeu – A tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo, você escreve de uma perspectiva sua, da sua história pessoal, e oferece uma ampla contextualização, com informações e dados, sobre a história dos judeus e o Holocausto. Acredito que o Holocausto, assim como a escravização dos povos africanos aqui no Brasil, é uma grande tragédia que envolve não apenas os povos circunscritos ali, mas toda a humanidade. Não é possível pensar o Brasil de hoje sem esse reflexo direto do que foi a escravização e imagino que não dá para pensar judaísmo, judaicidade e judeidade, conceitos que você trabalha no livro, sem pensar no Holocausto e na memória disso tudo – numa espécie de memória semiótica, não é? Uma memória dos símbolos. A partir dessa ideia de uma memória dos símbolos, como você viu o cenário depois das invasões às sedes dos poderes em Brasília, após aqueles atos terroristas perpetrados em 8 de janeiro, quando as pessoas presas começaram a usar a retórica de que estariam confinadas em campos de concentração? Essa é uma expressão muito forte para ser colocada em vão… Para você, como foi ouvir o uso específico dela?
MICHEL GHERMAN Sabe, Luciana, eu venho acompanhando o Jair Bolsonaro há bastante tempo. No cotidiano, acho que comecei em 2011, 2012. Sempre que me falam sobre o fato de eu acusá-lo de neonazista, do que eu estou ultimamente chamando de nazista à brasileira, costumo dizer que, na verdade, não sou eu que falo que o Bolsonaro é nazista: é Bolsonaro que fala que é nazista. E eu acho que aqui tem uma dimensão simbólica muito importante e eu me afilio nessa dimensão a perspectivas menos tradicionais no estudo do nazismo. Estou mais próximo de (Theodor) Adorno, de (Moishe) Postone e de (Walter) Benjamin quando falam da importância dos símbolos e da política dos sentimentos para entender o que é nazismo. Bolsonaro é profundamente vinculado às dimensões simbólicas do nazismo. De maneira explícita, ele aciona símbolos nazistas, seja desde o supremacismo branco até o nazismo mesmo, quando fala sobre Hitler. A carreira do bom falar é a carreira do político, mas o que mais falou de maneira positiva sobre Hitler na história dos políticos brasileiros foi ele, que aciona Hitler o tempo todo, ao ponto de falar sobre isso do parlamento brasileiro. Isso é muito importante porque é o cenário que diz que ele é nazista, né? Não sou eu. Mas estou falando sobre isso porque tem aqui um ponto de inflexão em 2016, que é quando o Brasil se transforma num lugar muito importante de experiências de extrema direita. E aí, enfim, têm várias formas da gente entender isso.
CONTINENTE Quais são essas formas?
MICHEL GHERMAN Podemos partir dos think tanks de extrema direita que começam a surgir por aqui e, também, de uma leitura muito específica de uma economia de extrema direita, do que eles chamam de escola austríaca. Você começa a ter, por assim dizer, uma confecção da percepção pública sobre a extrema direita no Brasil, que me parece central no mundo. De todos os lugares onde a extrema direita é importante, o Brasil talvez seja o mais bem-sucedido. E um dos elementos que essa nova extrema direita Brasileira começa a visitar é um elemento do nazismo. Não sei se você se lembra daquela onda do “nazismo de esquerda”...
CONTINENTE Sim, como esquecer?
MICHEL GHERMAN Pois é. Não escrevi isso no livro, mas em 2016, eu estava dando aula na UFRJ, ia pra universidade de manhã e, enquanto estava preparando a aula no computador, recebi um telefonema de um amigo meu, o Guga Chacra. Ele me fez a seguinte proposta: que eu escrevesse para o Estado de S. Paulo, para o blog dele lá do Estadão, que ele tinha na época, dizendo que o nazismo era de extrema direita. Nem levei muito a sério e escrevi esse negócio em dois minutos, foi assim uma coisa meio descuidada até, e fui pra aula. Quando chego na aula, eu estou sendo atacado, né? Moro a quatro estações de metrô da universidade, então estou falando de 20 minutos, 30 minutos, talvez uma hora sendo atacado online por centenas de pessoas.
CONTINENTE Você mora onde?
MICHEL GHERMAN Moro na Tijuca e a universidade fica no centro da cidade, então é coisa de quatro, cinco estações. Foi tudo muito rápido, fui atacado em pouquíssimo tempo, em uma ação muito articulada. As pessoas escreviam “você está ferrado”, “você vai morrer”, “você é um merda”, “sabemos onde você está”, com essa coisa de ameaça também. Tudo isso porque eu disse, numa folha de jornal, que o nazismo é de extrema direita e não de esquerda. E eu acho que aqui tem o elemento do mundo: você analisa toda a historiografia, toda a sociologia, todos os estudos sobre nazismo e não há nenhum historiador sério que diga isso, a não ser justamente aquela linha que faz uma análise exclusivamente econômica e malfeita da famosa escola austríaca. E aqui,no Brasil, se diz que o nazismo é de esquerda. É uma, uma… É como dizer, sei lá, que árvore nasce no céu e boi voa.
CONTINENTE É que nem dizer que os os negros foram escravizados ao ser trazidos pelos próprios negros porque eles eram empreendedores…
MICHEL GHERMAN Pois é… Acho que um elemento importante aqui que Bolsonaro traz é o uso muito claro do lugar comum, daquela opinião do homem médio: ele fala absurdos e coloca absurdos como categorias do dia a dia, como se qualquer absurdo que fosse falado pudesse ser legítimo. É a ideia da opinião como algo legítimo: o nazismo é de esquerda e quem fez a escravização no Brasil foram os próprios negros. São coisas que passam a fazer parte do dia a dia do bolsonarismo. Agora, para além disso, quando se expande e começa a ser utilizado por outras pessoas, uma certa direita liberal começa a utilizar isso. E, quando você vê, tem gente colocando na mesa que nazismo é de esquerda como se isso fosse legítimo. Aí eu começo a escutar isso em conferência, alunos perguntando de repente se eu estou vendo que o nazismo não é de direita. E vira uma opinião que passa a fazer parte do dia a dia e, agora, é que nem você discutir que a Terra é plana e a vaca voa. Mas é difícil discutir uma opinião tão absurda, você entende? Você tem que fazer um exercício de cognição, um exercício que não está acostumado a fazer. Porque eu não estou acostumado a discutir com ninguém que vaca não voa. Assim, talvez a minha filha de 4 anos venha discutir comigo aqui, mas um adulto? Então agora temos adultos discutindo que o nazismo é de esquerda. E o que é que tem por trás disso?
CONTINENTE Vou aproveitar a deixa para fazer um pequeno parêntese, Michel, e dizer que em dezembro de 2019 demos uma matéria na Continente sobre a negação da História. Fui eu que escrevi esta reportagem. Quando vi, no seu livro, elementos de um trabalho da pesquisadora Beatriz Kushnir, fiquei feliz com a coincidência, pois eu a entrevistei sobre a negação do Holocausto. Enquanto pesquisava, encontrava fontes que estavam tão estupefatas quanto você e eu agora: como é que as pessoas estão discutindo que não houve ditadura, que não houve Holocausto, que a escravização foi um projeto econômico dos próprios negros?
MICHEL GHERMAN Obrigado por você falar isso porque é exatamente aonde eu ia chegar – no negacionismo, que é um elemento atávico do Bolsonaro, ou seja, não há bolsonarismo sem negacionismo. E o que ele é? O negacionismo é a negação da realidade a priori, de maneira deliberada, ou seja, não é um discussão política, não é um debate historiográfico, é um debate desonesto que, a priori, tem uma agenda política ideológica específica e essa agenda política específica é utilizada negando a realidade. Qual é o primeiro negacionismo? O negacionismo do Holocausto, não é? É muito importante porque o Holocausto é absolutamente indefensável, do tipo que ninguém normal vai defender, talvez um psicopata vá fazer isso. Mas ninguém normal… Porque se alguém disser que o Holocausto não aconteceu, como justificar você pegar 6 milhões de pessoas fazê-las desaparecer? Mas se você tira o Holocausto da História, o que sobra? O que sobra é uma liderança nacionalista, expansionista, militarista muito conservadora, que se estabelece a partir do resgate de um suposto passado. É a agenda romântica da realidade do passado romântico, ou seja, de extrema direita.
Jair Bolsonaro em 2022. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil
CONTINENTE Esta volta ao passado é detalhada em vários momentos de O não judeu judeu – A tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo.
MICHEL GHERMAN É como a extrema direita se legitima no cotidiano. Hoje, o problema do nazismo é o Holocausto, não é? Então, o que essa extrema direita historicamente fez? Negou: não teve o Holocausto. Mas como justificar 6 milhões de judeus mortos?
CONTINENTE Mas aí se não teve Holocausto, como as pessoas que foram presas depois do 8/1 começaram a falar em campo de concentração?
MICHEL GHERMAN Estou chegando lá… Historicamente, da década de 1950 até os anos 2000, essa narrativa de que não teve o Holocausto era típica da extrema direita. Hitler fez tudo aquilo que fez? Sim, mas só que não teve o Holocausto. Então esse negócio de expulsar a população comunista, de expandir para outros países, de invadir gente e de fazer guerra – isso é a parte do que a extrema direita acha legal. O problema é o Holocausto, que não teve. Agora, a partir dos anos 2000, você começa a ter uma reação muito eficiente da historiografia contra o negacionismo. Você começa a dizer “olha, negacionismo não, não se discute com negacionista, nem se fala com negacionista”. Você tem o famoso caso do David Irving com a Deborah Lipstadt, que foi o debate sobre negacionismo em que ele tentou processá-la. Ela ganhou e aí o negacionismo do Holocausto perdeu uma força muito grande e negá-lo passou a ser crime em vários lugares e, mais do que crime, passou a não ser legítimo, de maneira definitiva.
CONTINENTE Só que uma parcela da população brasileira, boa parte implicada nos atos criminosos de 8/1, ainda segue a defender esse negacionismo irrestrito e generalizado, não?
MICHEL GHERMAN Luciana, eu acho que este é X da questão: aqui no Brasil, a gente foi vítima de um novo tipo de negacionismo, do que eu chamo de neonegacionismo. E é muito bem-sucedido nesse país porque trabalha com a seguinte questão: houve nazismo, houve Holocausto e o nazismo é de esquerda. Veja só: o nazismo é de esquerda por causa de uma questão, de uma perspectiva que também é um equívoco, mas que se justifica porque como o mundo é visto a partir de uma noção exclusivamente econômica, e o nazismo expandiu o tamanho do Estado, logo o nazismo é de esquerda. É uma filigrana, mas tudo muito bem feito, porque aí você vai discutir essa filigrana e vai jogar fora e o resto, o que é importante, você não fala. Sendo nazismo de esquerda, porque o Estado do nazismo é grande, e aí pega uma frase do fascismo para justificar isso e então o problema não é da extrema direita, e sim da esquerda.
CONTINENTE Uma lógica muito perversa, para dizer o mínimo.
MICHEL GHERMAN Não é? E quem produz isso de maneira muito bem-sucedida é o Olavo de Carvalho. Ele começa a utilizar todas as referências da extrema direita dizendo “quem produziu o genocídio foi a esquerda”. Isso pega. E o que acontece em todas essas manifestações é que existe uma figura como o Bolsonaro, que fala bem de Hitler, que elogia o nazismo, que é negacionista do Holocausto – porque ele falou várias vezes que os judeus morreram de doença nos campos de concentração, mas usava slogan que se viam nesses mesmos campos de concentração – e que teve um secretário de Cultura que se fantasiou de Goebbels e essa figura não pode ser acusada de nazismo, na perspectiva deles, por alguns motivos. E um dos motivos fundamentais é que ele diz que o nazismo é de esquerda, mas ele é de direita. As pessoas que foram presas em Brasília, depois do 8/1, não se vêem como culpadas de nada, e sim como vítimas, e acionam a ideia de que quem está prendendo eles é a esquerda. A esquerda é nazista, logo, é a esquerda quem prende e ataca a liberdade. Você está entendendo que o tamanho desse caminho e como é difícil discutir com doido? O negacionismo está no centro do debate político brasileiro, o que nos deixa com uma tarefa civilizatória pela frente, que não é simples.
CONTINENTE Abrindo um outro parêntese agora: em abril do ano passado, a propósito do lançamento de Dicionário dos negacionismos no Brasil, livro organizado por José Luiz Ratton e José Szwako e editado pela CEPE, publicamos uma matéria sobre negacionismo que dividi com Débora Nascimento, outra repórter especial da revista. E foi estarrecedor perceber o alcance disso e o mal que o negacionismo causa para a verdade, para a ciência, para a educação. Só nós sabemos o que foi o Brasil na pandemia… e o que poderia ter sido se o governo fosse outro.
MICHEL GHERMAN A verdade é que o Brasil é o Vaticano do negacionismo e do neonegacionismo nos últimos anos.
CONTINENTE É bom que você traz essas referências mundiais e culturais, Michel, porque a Continente é uma revista de jornalismo cultural e entendemos cultura como algo amplo, indissociável da vida em sociedade e da política. Começamos a falar sobre a retórica dos campos de concentração, mas agora quero perguntar sobre um aspecto que me comoveu bastante no seu livro – a radiografia que você faz da relação escusa entre a institucionalidade judaica e a ditadura no Brasil. Há, por exemplo, a tentativa do regime de enterrar os militantes judeus de esquerda como suicidas. Achei impressionante porque a ditadura também é outro elemento de disputa destas narrativas e é algo que, culturalmente, faz parte dessa grande “anistia geral, ampla e irrestrita” e de um passado que nunca foi devidamente encarado e enfrentado. Hoje, percebemos diretamente as consequências disso.
MICHEL GHERMAN Acho importante falar sobre isso. O que aconteceu no Brasil em 2018, de 2017 pra frente, é que Bolsonaro começa a colocar como refém dele as vítimas históricas dos regimes que ele defende. Ele começa a falar sobre o nazismo, por exemplo, e vai falar sobre isso num clube judaico. Aí começa a adotar a bandeira de Israel também, mas não deixa de ter falas antissemitas. Isso é fundamental para o bolsonarismo convencer com uma espécie de flauta, sabe? Daquele conto que o cara toca uma flauta e os ratinhos vão atrás para sair da cidade.
Em 2019, o então presidente Jair Bolsonaro e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, no Muro das Lamentações, em Jerusalém. Foto: Alan Santos/PR/Agência Brasil
CONTINENTE O flautista de Hamelin, acho que foi escrito pelos irmãos Grimm.
MICHEL GHERMAN Como o flautista de Hamelin, ele começa a se estabelecer a partir daí. Você tem um convencimento de setores institucionais importantes da comunidade judaica de que o bolsonarismo é aliado dos judeus. E aí tem uma situação complicada em que setores não são a favor de Bolsonaro, mas não podem, de maneira definitiva, desautorizá-lo, porque ele é aliado. Agora, uma coisa importante é que isso aconteceu no Brasil. Nos outros lugares onde a extrema direita é forte, e onde há o uso de símbolos judaicos, como os Estados Unidos, França, Hungria, Austrália, a comunidade judaica, institucionalmente, não apoiou esses candidatos. Ou seja, isso é um fenômeno brasileiro. É por isso que eu acho importante falar sobre isso. E a relação entre a comunidade judaica com a ditadura militar, você não tem outro lugar do mundo. Cerca de 5% dos mortos na ditadura militar argentina são judeus. É um número absurdo.
CONTINENTE Sério? Um número altíssimo, sem dúvida.
MICHEL GHERMAN Sim, sério. Dizem que 2,5% a 5%, tem esse debate, mas é um número muito maior do que o número proporcional na comunidade judaica argentina. Mas não vemos um caso de tentativa de enterro de judeus como suicidas na Argentina. O mesmo acontece no Chile, o mesmo acontece no Uruguai e em qualquer lugar, como acontece na Grécia. Não existe um único lugar em que isso aconteça, só no Brasil, onde efetivamente houve uma mudança da lei judaica para excluir o judeu morto do corpo do judeu, por assim dizer. E acho que isso tem muito mais a ver com o Brasil do que com os judeus. É por isso que eu acho importante estudar a perspectiva do bolsonarismo a partir dos judeus, para entender tudo isso.
CONTINENTE Tem uma frase sua que define esta situação específica do Brasil como “uma história de colonização do judaísmo pelo fascismo tropical”. Outro ponto interessante também do seu livro é a vinda dos judeus para cá. Moro no Recife e aqui existe o imaginário da primeira sinagoga das Américas, dos judeus que vieram para cá e embarcaram para fundar Nova York. E no livro você fala do Brasil como “parte do laboratório sobre ser judeu e ser cidadão do mundo”, que tanto tem a ver com a ditadura, mas também com uma certa aclimatação dos judeus na sociedade, estando ao lado de uma elite branca e assumindo um espaço que lhes havia sido negado de onde vinham - da Europa, das guerras.
MICHEL GHERMAN Pernambuco é o lugar mais importante do Brasil para entendermos isso. O Brasil tem a experiência de imigração judaica absolutamente diferenciada nos seus períodos. Nos séculos XVI e XVII, essa experiência não era de imigração, e sim de fuga e abrigo. E o que acontece, por exemplo, no Recife é que você tem a experiência de consolidação, de construção de uma comunidade judaica, com os judeus que vieram de Portugal, da região da Península Ibérica, com o judaísmo não ativo, por assim dizer, e ativam o judaísmo deles no Brasil. Vocês têm aí a primeira sinagoga das Américas, o que não é casual. E aí eles puderam viver durante alguns anos o seu judaísmo de maneira plena. O que acho interessante é que, se você visita hoje não só o estado de Pernambuco, mas o Nordeste brasileiro, vai encontrar aspectos de judeidade, de judaísmo em vários lugares. Em algum sentido, esses judeus se transformaram em parte da cena, do cenário, da vida brasileira. Mas onde você localiza esse judaísmo? Se você cava, vê que não é o judaísmo presente de maneira explícita. Agora, o judeu que vem da Europa no início do século XX tem outra história. É um judeu que vem recheado de desconfiança, recheado de preconceito e antissemitismo, mas que se consolida nesse Brasil aí, a partir dos anos 1930, dos anos de Getúlio Vargas, como um homem branco. E, sendo um homem branco, tem privilégios que ele não tinha na Europa, que é o privilégio da branquitude. E aí você tem ascensão social e inclusão em lugares que são restritos a homens brancos. Não estou dizendo que não tinha antissemitismo, mas esse antissemitismo era ponderado com essa branquitude. O que Bolsonaro tenta fazer, por isso que eu uso a palavra “colonização”, é estabelecer a ideia de que para ser judeu e ser branco você precisa ser de direita. Se você é judeu e não é de direita, você tem a sua branquitude negada e essa branquitude tem a ver, por exemplo, com uma espécie de racismo estrutural, para usar o termo de Sílvio Almeida, nosso novo ministro dos Direitos Humanos.
CONTINENTE Então no Brasil do século XX o judeu não está no lugar marginalizado onde estão os negros e os povos indígenas, e sim da elite branca.
MICHEL GHERMAN Sim, mas se é judeu e não é de direita, vai ter esse lugar negado. Isso tem a ver com a noção da negação da escravização, de que não somos responsáveis pela escravização no Brasil, de que os escravizados produziram a si próprios, e tem tem a ver com a negação dos direitos das cotas e das ações afirmativas e com um posicionamento da branquitude brasileira, na ideia de que, se você decidir que é a favor de cota de ação afirmativa e do direito da população vítima da escravização, deixa de ser branco. E se você deixar de ser branco, veja só, passa a ser judeu nos termos europeus, ou seja, passa a ser alvo de discriminação e desconfiança. E é por isso que o bolsonarismo é profundamente antissemita e também filossemita, sob condições: se você é um judeu, mas é de esquerda, é progressista, é liberal, então você não é um judeu. Isso é colonização. Você coloniza a vítima, fazendo com que ela seja aceita desde que ela abra concessões na sua identidade. E é claro que, no Brasil, esse privilégio só os homens brancos têm – os negros sequer isso têm. Mas é para se entender que é possível usar o discurso filossemita sendo profundamente antissemita, que é o caso do bolsonarismo e do nazismo no país.
CONTINENTE Após ler O não judeu judeu - A tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo e conhecer um pouco sobre sua história, vi que você se define como “um judeu ao mesmo tempo secular e religioso” e que abarca bem, no seu trabalho e na sua vida, as noções de judaísmo, judaicidade e judeidade, que detalha bem logo no início do livro. Diante do fascismo tropical, do uso indiscriminado de símbolos como a bandeira de Israel – em qualquer manifestação pró-Bolsonaro aqui no Recife se veem várias bandeiras – e desse processo de colonização, o que mais lhe incomoda ou fere?
MICHEL GHERMAN O que me incomoda é a percepção tardia de minha parte da falta de resistência desses judeus à apropriação feita pelos não judeus dos seus símbolos e da aceitação da tarefa profundamente perigosa de excluir os que estão fora. Quando eu comecei a chamar Bolsonaro de nazista, os judeus bolsonaristas ficaram profundamente ofendidos. E eu dizia para eles que entendo que eles tenham ficado ofendidos por serem chamados de nazistas. Isso me dava uma certa esperança, pois o pior seria se eles não ficassem ofendidos sendo chamados de nazistas ou de tentar apoiar um nazista. Acho que tive, na verdade, um incômodo bobo, e até ingênuo, de perceber que a experiência civilizatória judaica e a experiência cultural judaica não tenham dado elementos fundamentais para que essas pessoas entendessem a importância de resistir. Agora, isso é uma bobagem, porque campo de concentração não é escola de direitos humanos; você não aprende com o sofrimento, na verdade, o produto do sofrimento, às vezes, é pior. Mas você produzir a ideia de que somente me interessa o meu sofrimento – isso me incomodou muito. Mas, ao mesmo tempo, não deveria incomodar, não é? Porque os que sofreram experiências como a experiência da perseguição judaica, na verdade, não precisam ter entendido a justificativa. Agora, por exemplo, acho que tem uma falha que também me incomodou e aqui é uma autocrítica. Fui responsável durante muito tempo por um certo processo de produção de uma pedagogia do Holocausto. E isso falhou de maneira miserável no Brasil. Temos que produzir uma nova educação sobre o nazismo, na qual o Holocausto seja parte dessa educação. Mas o que a gente viu – um político de extrema direita sem câmara de gás e sem campo de concentração, sem chaminé, sem o trem que leva os corpos dos judeus para outro lugar – não ser considerado nazismo é outra outra coisa que me incomodou. Meu erro foi não ter percebido o quão perigoso é ensinar Holocausto sem ensinar as questões que o tornaram possível. E não foram exatamente questões que pareciam absolutamente do mal, mas sim que falavam de tradição, família e perigo. É uma tarefa histórica produzir uma nova pedagogia do nazismo, que não seja necessariamente somente do Holocausto.
CONTINENTE Por fim, teve início um novo governo no Brasil que também começou impondo novos símbolos. Mesmo com a destruição que houve em Brasília, eu estive lá para a posse de Lula e pude ver a produção de símbolos de esperança. Além disso, tivemos a refundação do Ministério da Cultura, a criação do Ministério dos Povos Originários, Sílvio Almeida no Ministério dos Direitos Humanos, uma cientista não negacionista no Ministério da Saúde… Ou seja, um novo horizonte está a se descortinar. Como pesquisador, professor de História e uma pessoa que produz conhecimento e que também se colocou nesse papel de refletir sobre de que maneira houve essa colonização do bolsonarismo e na criação do fascismo tropical, o que você vislumbra a partir de agora?
MICHEL GHERMAN O governo Lula começou estabelecendo também uma dimensão simbólica muito importante. Por questões conjunturais, a posse dele estabeleceu uma dimensão simbólica em linguagem que é contradição e antítese total do bolsonarismo – a esperança no lugar do medo, a inclusão no lugar da exclusão e a força da construção de um novo país no lugar da destruição. Bolsonaro é um regime de destruição. E o que acontece na articulação dessa nova dimensão simbólica é que abrem experiências possíveis para que Lula estabeleça efetivamente, também no campo da simbologia, o novo governo. Um dos elementos fundamentais, e Lula tem condições de avançar nesse lugar, é que o Brasil tem experiência e uma tradição muito poderosa de conciliação. A anistia é uma garantia de liberdade dos que resistiram à ditadura, mas também é uma garantia de impunidade para os que produziram a ditadura. Acho que um dos elementos fundamentais, além da esperança da posse, dos negros, indígenas, pessoas com deficiência e crianças entrando no lugar de um fascista que tinha sido defenestrado do poder, e além da dimensão da inclusão, é a dimensão da punição. Aos que negam a escravização e o Holocausto; aos que negam a vacina aos que precisam de vacinação; aos que negam direitos aos que estão famintos por direitos; aos que negam comida aos efetivamente famintos – aumentou a fome no Brasil como nunca tinha aumentado antes; aos que produzem discurso de ódio; aos que produzem a negação do outro, é preciso punir. Para além da dimensão simbólica que coloca um ministro da Justiça negro, que coloca Anielle Franco, uma educadora e irmã da vítima do maior símbolo, talvez, da ascensão do bolsonarismo nesse país, que é o assassinato de Marielle Franco, e coloca uma cientista no Ministério da Saúde e uma indígena no ministério criado para os povos indígenas, é preciso entender, fundamentalmente, a importância da punição dos genocidas. Bolsonaro começa a estabelecer-se como alguém que tem que ser punido. De maneira muito corajosa, Lula fez afirmações que, em algum sentido e pelo menos no campo oficial, tentou-se evitar que fossem feitas – como dizer que Bolsonaro é nazista e chamá-lo de genocida. Ele aponta para uma direção que é preciso romper com o ciclo de impunidade no país. É preciso romper com a ideia de que a anistia e a conciliação são melhores do que a punição. Enquanto não houver bolsonaristas e genocidas na cadeia, inclusive o próprio Bolsonaro, não vamos ter certeza de não vale a pena ser genocida e negacionista no Brasil. A punição é um dos elementos mais importantes da pedagogia de construção de um novo país.
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente.