ILUSTRAÇÕES KARINA FREITAS
04 de Dezembro de 2019
Ilustração Karina Freitas
[conteúdo na íntegra (PARTE 1) | ed. 228 | dezembro de 2019]
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Às 23h30 da segunda-feira, 11 de novembro de 2019, Evo Morales anunciou na sua conta no Twitter (@evoespueblo) a despedida da Bolívia, país que presidira durante 13 anos e que fora obrigado a renunciar no dia anterior. “Hermanas y hermanos, parto rumbo a México, agradecido por el desprendimiento del gobierno de ese pueblo hermano que nos brindó asilo para cuidar nuestra vida. Me duele abandonar el país por razones políticas, pero siempre estaré pendiente. Pronto volveré con más fuerza y energia”, dizia sua mensagem. Prestes a ser recebido na capital mexicana, ele saía da sua pátria disposto a voltar “com mais força e energia”, após denunciar o golpe de estado sofrido, “um golpe civil-político-policial”, nas suas páginas.
No dia anterior, domingo, 10, cenas dantescas do seu país se espalhavam nos grupos de WhatsApp e em outras plataformas de redes sociais: uma prefeita espancada e com o cabelo cortado a pulso, diversos imóveis em chamas, partidários de Morales descendo as estradas para se entregar em Bogotá… Tudo documentado e disponibilizado na web, como manda a contemporaneidade, talvez ancorada numa releitura da máxima cartesiana – em vez de “penso, logo existo”, algo na linha de “posto, logo existo”. Ou seja, vídeos, fotografias, textos – uma coleção de provas de um agudo acontecimento histórico em curso. O que não impede que, daqui a cinco décadas, alguém porventura tuíte (se ainda existir Twitter, claro) que não houve golpe na Bolívia, e, sim, uma transição pacífica provocada pelo extenso tempo em que Evo, um ex-líder sindical de origem indígena, ficou no cargo de presidente.
Numa era de confronto de narrativas, na qual 2016 é um marco recente – eleição de Donald Trump para presidência dos Estados Unidos, impeachment de Dilma Rousseff e o Brexit –, a História, com H maiúsculo, parece estar sob ataque. E seus processos de releitura, revisão ou reescrita seguem em curso, tanto a flertar com o autoritarismo de governos ao redor do mundo como a achatar outros olhares e caminhos para conduzir “a operação historiográfica”, na definição do historiador francês Michel de Certeau (1925-1986).
A reformulação de tal operação e, por conseguinte, a negação da História têm sido práticas recorrentes. Escravidão e ditadura civil-militar no Brasil, Holocausto na Alemanha, genocídio armênio ocorrido entre 1915 e 1917, pelas mãos dos otomanos: há vários marcos históricos em disputa na atualidade, e muitas vezes o desinteresse pela veracidade dos fatos e a predileção por conceitos como fake news e pós-verdade contribuem para ressignificações da própria noção de “acontecimento”.
Na Alemanha, em 1993, o código penal foi alterado para condenar a até cinco anos de prisão qualquer pessoa que negasse o Holocausto ou fizesse apologia ao nazismo. Na Áustria isso também é crime, o que não impede, entretanto, que em outros países posturas recalcitrantes sejam adotadas. “Na Polônia, o governo anterior era de uma frente de esquerda e quando o governo novo, de extrema direita, assumiu, proibiu que nos museus tivesse qualquer referência de que o país colaborou com o nazismo. O discurso que se constrói é de que a Polônia foi invadida e, portanto, não podia ter colaborado”, observa a historiadora carioca Beatriz Kushnir.
De fato, em 2018, o senado polonês aprovou uma lei, proposta pelo partido Lei e Justiça (PiS), o mesmo do presidente Andrzej Duda, com o intuito de uma revisão do Holocausto. Segundo noticiaram os repórteres Juan Carlos Sanz e María Sahuquillo, na edição do El País de 1º de fevereiro do ano passado, a Polônia avançava para o isolamento: “Apesar das críticas de Israel e da preocupação dos Estados Unidos, o Senado polonês aprovou a polêmica lei que revisa o Holocausto. A norma, proposta pelo ultraconservador e nacionalista Lei e Justiça (PiS) – o partido do Governo –, pune com até três anos de prisão o uso da expressão ‘campos de concentração poloneses’ para se referir aos centros de extermínio de judeus situados no território do país centro-europeu sob ocupação nazista. Também tipifica penalmente as acusações de cumplicidade da Polônia com os crimes do Terceiro Reich”.
Quatro meses depois, ante pressões da União Europeia, de Israel e dos EUA, a legislação foi atenuada sob o propósito de que o país se enquadrasse no “contexto internacional”. Retirou-se a pena de prisão para quem se referisse a Auschwitz, Sobibor e Treblinka como “campos de concentração poloneses”, mas o primeiro-ministro polonês Mateusz Morawiecki fez questão de ressaltar que o governo seguiria “lutando para informar a verdade” e desresponsabilizar a Polônia sobre o Holocausto em solo pátrio: “Os que acusarem a Polônia merecem pena de prisão”.
Em novembro de 2019, o mesmo Morawiecki elegeu a plataforma de streaming Netflix como alvo após a estreia de The devil next door. A série documental em cinco capítulos, disponível para os assinantes brasileiros como O monstro ao lado, narra a história de John Demjanjuk, um avô de família de origem ucraniana que mora em Cleveland, nos EUA, nos anos 1980, e de repente é preso a mando do governo de Israel para ser julgado a partir de evidências de que ele, na verdade, seria “Ivan, o terrível”, um dos guardas de Treblinka. Detalhe: estima-se que entre 700 e 900 mil judeus foram aniquilados nas instalações desse campo, localizado em uma floresta nas proximidades de Varsóvia.
A questão é que uma cena mostrou um mapa dos campos de concentração na Polônia, porém a cartografia das fronteiras correspondia à era pós-II Guerra, e não aos anos do conflito. No mesmo dia em que Evo Morales partia para o México, o primeiro-ministro polonês bradava no Twitter, em uma nota postada em inglês e no seu idioma: “Como meu país nem sequer existia na época como um estado independente, e milhões de poloneses foram assassinados nesses locais, esse elemento de The devil next door não é nada menos que reescrever a História. Não apenas o mapa está incorreto, como também engana os espectadores a acreditarem que a Polônia era responsável por estabelecer e manter esses campos”.
Para Beatriz Kushnir, chega a ser paradoxal a defesa de que a Polônia não colaborou com o nazismo: “Porque as pessoas se esquecem de que a maioria dos campos de extermínio estava lá. Isso vai acontecendo aos poucos, com os governos de direita tomando conta da Europa Central e do Leste Europeu, e acaba de alguma maneira chegando em uma crescente”. Ela atenta para o que chama de “onda ascendente da institucionalização desses marcos de memória” do Holocausto.
“Por que está sendo tão importante se materializar no espaço público esses marcos? O Holocausto não atingiu apenas judeus, mas ciganos, negros, homossexuais. A minha pergunta é: por que, em pleno século XXI, 70 anos depois do final da guerra, precisamos materializar esses lugares de memória num espaço público, tanto na Europa como nas Américas? Minha resposta é que precisamos reforçar, cada vez mais, tudo que aconteceu para que não aconteça novamente”, complementa a professora da UniRio.
Em julho deste ano, ela foi uma das principais conferencistas do 30º Simpósio Nacional de História, evento bienal promovido pela Associação Nacional de História – Anpuh. Sua palestra tinha o sugestivo título de “O holocausto da memória” e o próprio encontro, aliás, haveria de transcorrer sob o tema História e o futuro da educação no Brasil. Foram cerca de cinco mil participantes em cinco dias de encontros e debates. Para a palestra, no lotado auditório do Centro de Tecnologia e Geociências da UFPE, Beatriz mirou no projeto de lei 7920/2017, que prevê a destruição de documentos históricos uma vez já digitalizados.
No programa do simpósio, assim estava descrita a conferência: “O patrimônio histórico, em todos os suportes no país, está há décadas sendo vilipendiado. Faltam recursos humanos e orçamentários; observam-se furtos e catástrofes naturais, muitos provocados pelo abandono dos prédios. A herança documental brasileira é inclusive ameaçada por ações legislativas que têm o apoio do mercado para a privatização do que deve ser de todos. Ao legalizar a destruição dos documentos originais após sua digitalização, incluso no PL 7920/2017, a garantia de autenticidade dos documentos públicos poderá ser duvidosa e discutível, impossibilitando futura verificação no caso de suspeita de fraudes, o que pode ser considerada uma verdadeira ‘queima de arquivo’. Sucessivos episódios pontuam e constroem o quadro de desamparo e destruição deliberada dos acervos no país”.
Semanas depois, já de volta ao Rio, em conversa por telefone com a Continente, Beatriz Kushnir partilhava sua indignação. “Existe uma ideia agora de que o melhor é digitalizar todos os documentos e esse projeto de lei, que já veio da Câmara, veja só, tinha sido arquivado em 2010. Mas veio 2016, ele voltou ao Senado e já está tramitando na terceira comissão. É muito complicado, porque institui uma fragilidade jurídica muito grande. Imagina você digitalizar tudo, destruir e depois não ter o original para contrapor à autenticidade?”, indagava.
O Brasil, segundo ela, detém um vasto acerco de documentos. “Do Brasil Colônia até os dias atuais, dentro da esfera do Cone Sul, a quantidade de documentos existentes no nosso país é bem maior do que no Chile, no Paraguai e na Argentina. Isso tem muito a ver com a questão da cidadania. Muitas pessoas não compreendem que os arquivos e documentos estão narrando a história daquela nação. Aqui, acham que arquivo é lugar para a gente colocar papel velho. Enquanto isso acontecer, o Brasil seguirá lidando mal com a sua memória”, pondera a historiadora de origem judaica, que no doutorado pesquisou, justamente, a morte de 10 integrantes da comunidade israelita pelas forças da repressão que atuaram na ditadura militar entre 1964 e 1985. “Um deles era Vladimir Herzog. Eles não morreram por serem judeus, e, sim, por serem militantes de esquerda”, diz.
E, já que não se pode contestar que as Forças Armadas governaram o nosso país, como avaliar o fato de que, pela primeira vez em 10 anos, o Exame Nacional do Ensino Médio – Enem, aplicado para cerca de quatro milhões de estudantes, não trouxe uma única questão sobre a ditadura militar que se impôs entre 1964 e 1985?
“É problemático, pois esse período faz parte da constituição da história brasileira. Existem eventos históricos que não podem ser negados. O processo ditatorial que aconteceu no Brasil entre 1964 e 1985 é inegável. Se foi revolução ou se foi ditadura, que tentem provar os dois lados, mas a documentação historiográfica é inegável. Pois, para além da produção historiográfica, como documentos, obituários e outros itens à disposição nos arquivos das instituições públicas, existe uma documentação global, em órgãos como, por exemplo, as Organizações das Nações Unidas – ONU. É comprovado que o que aconteceu no Brasil, por exemplo, influenciou a explosão dos processos da América Latina inteira”, responde a historiadora Isabelle França, mestre pela UFRPE e professora no Colégio da Polícia Militar.
À luz do tempo presente, um vislumbre possível seria que, em função dos acontecimentos recentes na Bolívia e no Chile, quando a população saiu às ruas para protestar contra o aumento das tarifas de transporte e encurralou o presidente Sebastián Piñera, talvez seja o momento do Brasil ser influenciado pelos processos latino-americanos.
No entanto, qualquer que seja a travessia, o importante é que ela seja vivida, registrada, apreendida e elaborada – nunca negada. Caso contrário, como avançaremos? Em Memória, história, esquecimento (Unicamp, 2008), o filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005) vaticinava: “Muitas democracias modernas fazem amplo uso deste gênero de esquecimento por imposição, por honrosas razões que visam a manutenção da paz social. Mas subsiste um problema filosófico: não será a prática da anistia prejudicial à verdade, à justiça? Por onde passa a linha de demarcação entre a anistia e a amnésia? As respostas a estas questões não se encontram ao nível político, mas ao nível mais íntimo de cada cidadão, no seu foro interior. Graças ao trabalho de memória, completado pelo de luto, cada um de nós tem o dever de não esquecer mas de dizer o passado, de um modo pacífico, sem cólera, por muito doloroso que seja”.
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“A memória é essencial e ela tem que ser preservada para que as atrocidades não se repitam”, me diz Kenarik Boujikian, em um domingo de novembro. Uma das fundadoras da Associação de Juízes pela Democracia – AJD, desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça de São Paulo, a jurista estava na capital pernambucana para acompanhar o pronunciamento público do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No mesmo dia do Festival #LulaLivre, que levou 200 mil pessoas ao centro do Recife, em outras cidades, cidadãos vestindo verde e amarelo, abraçados com a bandeira do Brasil, pediam o impeachment do ministro Gilmar Mendes e o fechamento do Supremo Tribunal Federal – STF, em explícito flerte com o autoritarismo.
“Vivemos uma ditadura civil-militar, entre 1964 e 1985, reconhecida pelo país e com condenação por órgãos internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Agora, temos uma pessoa na presidência da República que diz que não houve ditadura. O presidente do STF, Dias Toffoli, minimiza o que ocorreu e usa a palavra movimento para se referir à ditadura. A negação é a perpetuação do crime, é o apagamento da história”, complementa Kenarik. Ela sabe do que fala: além de ser altiva voz no que tange a memória brasileira, é neta de sobreviventes do genocídio armênio. Suas lembranças serviriam de ilustração apropriada para o que Ricoeur descreveria como o “dever de não esquecer”.
“Minha avó Zaruhi ficou órfã e foi levada para um orfanato. Os armênios sobreviventes iam procurar suas crianças nesses orfanatos e minha avó foi encontrada por um primo que a criou. Nasci em Kessab, uma aldeia de armênios que fica na Síria, e cheguei ao Brasil em 1962. Cresci com a memória do genocídio, mas, quando era criança, achava os relatos tão perversos que considerava que havia muito surrealismo naquelas histórias dolorosas. À medida que fui crescendo, minha compreensão do mundo mostrou o quanto as pessoas e os Estados são capazes de cometer barbáries. Talvez fosse mais fácil enfrentar a violência, pra mim, duvidando da sua existência. Já em relação à violência sexual contra as mulheres armênias, compreendi que essa espécie de violência é comum em todos os crimes contra a humanidade, como reafirmação de poder sobre os corpos femininos. Isso sempre aconteceu. Por isso, foi importante colocar a questão de gênero nas normas do Tribunal Penal Internacional”, testemunha.
Para ela, o negacionismo não apenas “impacta o grupo diretamente atingido, mas também toda a humanidade”. “A história do genocídio e sua negação perpassam até hoje a minha vida e a geração dos meus filhos. Só uma memória coletiva global pode bloquear novos crimes. Nesse sentido, o recente reconhecimento no Congresso dos Estados Unidos, pelo impacto mundial, tem que ser comemorado. Na passagem dos 100 anos do marco do genocídio, Papa Francisco também fez o reconhecimento pelo Vaticano. A negação é sempre a última etapa de um genocídio, por isso é imprescindível que se reconheça. Para que não feche o círculo, para não deixar perpetuar o próprio genocídio. Mas o governo turco continua a negar e, neste ano, no Twitter da presidência, no dia 24 de abril, usou a estratégia de colocar a culpa nas vítimas, justificando as caravanas forçadas da população armênia pelo deserto da Síria como uma ‘realocação das gangues armênias e seus partidários, que massacraram o povo muçulmano, inclusive mulheres e crianças, no leste da Anatólia’. Uma inversão completa de fatos e papéis”, lamenta.
De que ferramentas dispomos, então, para evitar inversões, engodos e deturpações? Imaginemos o que seria dos armênios se não houvesse os relatos de quem, como a avó de Kenarik Boujikian, sobreviveu ao genocídio. A palavra é instrumento político. Em Sobre lutas e lágrimas – Uma biografia de 2018 (Record, 2019), o jornalista e escritor Mário Magalhães recorre a elas para analisar a história recente do Brasil com a urgência do presente e cotejos com o passado. “Diante da ascensão do obscurantismo, muito se discute sobre formas de resistir a ele. Eu sou um contador de histórias e da História. Para mim, contar também é resistir”, sintetiza à Continente.
“Numerosos leitores têm observado que Sobre lutas e lágrimas parece um túnel do tempo, com idas e vindas. Eles têm razão. Mas isso não decorre de idiossincrasias do autor, pelo fato evidente de eu ser um apaixonado por história, sobretudo por história de gente. É que 2018 concentrou muitas épocas históricas, num liquidificador que deu no ano que flertou com o apocalipse. Regressaram, com grande audiência, ideias aparentadas com as do nazifascismo dos anos 1930. É a mesma quadra dos integralistas que ressurgiram atacando universidade para afanar e queimar bandeiras antifascistas. Nunca mentiras influenciaram tanto uma eleição, porém elas não são novidade, como eu conto no livro, falando de pleitos das décadas de 1920, 1940 e 1980. Venceram nas urnas nostálgicos da ditadura parida em 1964 e entusiastas da tortura como método de combate a antagonista político. Elegeu-se vice-presidente quem considera o 13º salário uma aberração – o mesmo 13º salário pelo qual Carlos Marighella e os comunistas se bateram sem sucesso na Constituinte de 1946 e que virou direito social em 1962”, condensa Magalhães.
Tendo o ex-presidente Lula, Marielle Franco, morta em março de 2018 em crime ainda não elucidado, e o atual presidente Jair Bolsonaro (cuja família tem vínculos comprovados com os acusados de assassinar a vereadora carioca) como eixos condutores, a narrativa alinhava passado e presente, em uma aula de História aguda e profunda.
“Meu livro trata da escravidão, e não apenas das sequelas daquele regime que provocam desigualdades e barbaridades até hoje. Mas porque, se o programa do Movimento Escola Sem Partido avançar, uma professora ou um professor poderá ser criminalizado se disser em aula que a escravatura foi e é uma infâmia. Para isso, basta que em casa o responsável seja um saudosista da escravidão. Paralisação de caminhoneiros foi instrumento golpista também no Chile governado por Salvador Allende. Recorro muito aos episódios de 1968, meio século antes. O estudante Edson Luís e Marielle foram mortos em março – ele em 1968, ela em 2018. Em 5 de abril de 1968, a ditadura decretou a ilegalidade do Frente Ampla, oposicionista. Em 5 de abril de 2018, o STF encerrou a sessão que deu sinal verde para a prisão de Lula. Em 2018, a censura se expandiu, e eu fui obrigado a contar como ela funcionava no passado. Sobre lutas e lágrimas vai e volta no tempo”, define o autor.
Quando participou do 30º Simpósio Nacional de História, a juíza Renata Nóbrega, doutoranda em História pela UFPE, ficou espantada ao descobrir, acompanhando em um seminário a apresentação da pesquisa Do porão às ruas: protagonismo militar e a reabilitação das memórias favoráveis à ditadura em tempos de avanço conservador, de Clarissa Grahl (Colégio de Aplicação da UFSC), que o sexto livro de não-ficção mais vendido no ano passado era A verdade sufocada, escrito por Carlos Alberto Brilhante Ustra. O subtítulo é curioso: “A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça”. Ustra foi citado por Jair Bolsonaro na fatídica noite de abril de 2016, em que a Câmara dos Deputados avalizou o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Coronel do Exército, foi o primeiro militar condenado pela prática de tortura. Faleceu há quatro anos, mas, ainda assim, virou mito do #mito, como Bolsonaro é saudado por eleitores e correligionários. “Sabemos que o movimento da história é elíptico, nunca redondo, e que outros interesses, como o capital, flertam com a memória como espaço narrativo e de disputa de poder. Esse processo está sendo reconfigurado no Brasil e no mundo. O problema é que, no Brasil, a vendagem expressiva de um livro de um torturador diz muito. Nem todo mundo era Marighella, nem todo mundo era Carlos Lamarca. Quem lê Ustra tende a acreditar que o que aconteceu em 1964 foi para livrar o Brasil do perigo de uma ditadura comunista”, opina Renata.
Ela vai além na sua argumentação: “O discurso do capital classificou a esquerda e a resistência em moderados e não moderados. Para tentar associar a imagem deles, os financiadores da ditadura, ao campo de uma esquerda dita moderada ou intelectual. Já que estava ficando bem feia a fotografia ao lado de torturadores, passaram a tentar categorizar a resistência, chamando a alguns de terroristas e tentando trazê-los ao campo dos radicais e mantendo outros numa construção higiênica de estudiosos e moderados. Com isso, suavizaram a imagem de agentes de Estado como torturadores e criminalizaram um movimento de resistência legítimo naquele estado de coisas, ou seja, criminalizaram um grupo que reagia, com violência, à violência. Em suma: a criação de factoides como verdades apenas no discurso é um recurso recorrente na disputa de poder nas narrativas da História”.
Disputa, poder, narrativa: a construção da História é conjuminada a essas variáveis. Para Michel de Certeau, a História é o que é vivido; a historiografia é o que o que se escreve. Assim, é sujeita a lacunas, a ideologias e à política. E, para um outro historiador francês, o estruturalista François Dosse, Certeau pensa a operação historiográfica como resultado de “um lugar, de uma prática social, de uma escrita pessoal do historiador”. “Não há uma História que seria uma espécie de julgamento divino. O historiador está implicado nas questões sociais, sendo ele mesmo marcado pelo seu próprio público, por seu próprio repertório. É preciso recolocar em situação que a produção histórica escrita nunca é o reflexo direto da História realmente acontecida; ela é sempre mediada pelo historiador”, sustenta.
Pernambucano formado pela UFPE, atualmente mestrando em História pela USP, com uma investigação sobre a independência do Brasil e as insurreições pernambucanas de 1817 e 1824, o historiador Pedro Sette chama atenção para essa prerrogativa de quem escreve. “Se você decide ler os historiadores ocidentais do século XIX, percebe que a maneira como eles trabalham a ideia de uma nação sugere a compreensão da nacionalidade como objetivamente existente. Ou seja, uma nação existia porque deveria existir, porque era o real destino de todo povo construir uma nação. Nessa lógica, quando o Brasil se fez independente, é quase como se ocorresse por acidente, um destino traçado pela providência no momento em que o português encontra o primeiro índio. À medida que fomos nos afastando dessa ideia de momento fundacional, começamos a entender que aquilo se deu porque houve interesses, não exatamente por um desígnio superior”, situa.
Dessa forma, ele crê que “o passado é algo que estamos constantemente relendo, a partir de novos elementos”. “Novas leituras sobre a ditadura militar ou a escravidão fazem parte. O afastamento do tempo permite novas observações. Agora, quando esse revisionismo não vem em trabalhos sérios, ou que servem a outros propósitos nessa virada de giro conservador, como desmontar ganhos que minorias obtiveram com governos de esquerda, não tem sustentação. As pessoas gostariam de acreditar que a ciência é um processo terminado, estático, e que as verdades estão todas descobertas, que já sabemos de tudo sobre o mundo, mas não é assim. A própria existência do YouTube me parece estruturante: lá você tem o terraplanismo, o negacionismo histórico, o obscurantismo… O que veem nessas mídias, a ciência ainda não encontrou uma maneira de combater em larga escala”, comenta Sette.
Foi justamente pensando em difundir o debate sobre revisionismo histórico ideológico na mais escancarada das plataformas – a internet – que o trio de fundadores do podcast Viracasacas (https://soundcloud.com/viracasacas/113-negacao-da-historia) levou ao ar, em maio deste ano, um programa inteiro dedicado à negação da História. Os apresentadores Gabriel Divan, Felipe Abal e Carapanã falaram com o historiador Patrick de Oliveira, professor da Princeton University radicado há 15 anos nos EUA, sobre tentativas de propor “uma História que não existe”. No episódio, por exemplo, foram citados os livros Guia politicamente incorreto da História do Brasil (2009), Guia politicamente incorreto da América Latina (2011) e Guia politicamente incorreto da História do mundo (2013), de autoria do jornalista Leandro Narloch, como peças de manobra para uma revisão que se diz “polêmica”, mas é, no mínimo, equivocada.
“Quando eu vejo um livro desses nas livrarias, seja algum Guia politicamente incorreto, no Brasil, ou a série Killing Lincoln ou Killing JFK, de autoria de Bill O’Reilly, um ex-comentarista da Fox News, a minha primeira reação como historiador é um certo desânimo. Até porque são best-sellers, ou seja, quando o pessoal está lendo, está lendo esse tipo de livros. Mas acho que também é um chamado para o historiador para o dever de encontrar um público mais amplo. E não acho que se trate de revisionismo. A historiografia se desenvolve por revisionismo, cada geração desenvolve novas interpretações dos processos históricos com a descoberta de documentos, novas metodologias ou novos recortes. Não sei se revisionismo seria a palavra certa… Talvez negacionismo ou mesmo mitologia. Em um livro de Roland Barthes, chamado Mitologias, ele discute o processo da criação de mitos. O mito é uma espécie de discurso despolitizado, sem história, e é isso que está acontecendo com essas narrativas de certas figuras de direita. Estão construindo uma série de mitos, seja o mito da civilização ocidental, seja o mito do que foi a escravidão no Brasil”, afirmou Patrick.
Bacharel em Direito, mestre e doutor em História, Felipe Abal alerta para o que está em jogo. “A negação da História ou seu revisionismo ideológico são táticas bastante utilizadas pela extrema direita em todo o mundo. Conservadores e reacionários costumam se utilizar de ‘pequenas verdades’, fatos consolidados, e construir uma narrativa deturpada ao redor deles, utilizando essa narrativa para justificar suas crenças e atitudes. Trata-se de um tema extremamente relevante no debate político da atualidade. A História passa constantemente por revisionismos diante de novas fontes e interpretações, e isso é positivo. Por outro lado, uma revisão simplesmente política, que exclui as fontes que não interessam para seus objetivos e foca apenas naquilo que é de seu interesse vai de encontro a tudo que a História como ciência representa. Costumamos debater muito a respeito do que deve ser feito, não só em relação à História, como também ao Direito, à Antropologia e outros campos”, sentencia.
Em entrevista à Continente, Abal conclama “que a academia saia das universidades e vá para a rua”. “De pouco adianta publicar artigos em revistas de altos-estratos e que não chegam à população. Como estudiosos, temos o dever de levar à população os resultados de nossos estudos e pesquisas, de todas as formas possíveis. É aí que pensamos ser importante o que fazemos no podcast. O primeiro passo é exatamente provocar o debate. Às vezes podemos pensar que um tema é ‘árido’, mas na realidade é do interesse de muitas pessoas. Não se pode, em situação alguma, subestimar a vontade de buscar conhecimento. Temos que lidar diretamente com nosso passado, sem romantizações. Não se trata de atribuir à História, por exemplo, um papel de redentora, mas de reconhecer a sua importância para compreensão do passado e também do presente”, coloca.
Atenção: leia a segunda parte desta reportagem.