Entrevista

"A mulher negra não é vista como digna de ser amada"

Estudante de Arquitetura da PUC Campinas, ativista negra e colunista da revista Marie Claire, Stephanie Ribeiro fala sobre a relação entre solidão, gênero e raça

TEXTO Débora Nascimento

05 de Março de 2018

Stephanie Ribeiro

Stephanie Ribeiro

Foto Divulgação

Entrevista concedida como parte da reportagem especial de capa de março de 2018 da revista Continente.

CONTINENTE
A solidão é apontada em estudos recentes como uma epidemia mundial. De que maneira a solidão da mulher negra se difere nesse contexto generalizado?
STEPHANIE RIBEIRO Acho que existe um processo da sociedade contemporânea que torna as pessoas mais socialmente isoladas. Entretanto, não estamos ao falar de solidão da mulher negra questionando apenas um fator contemporâneo e, sim, um processo racial e de gênero. Veja que segundo o IBGE, existe um único grupo que se encontra em celibato definitivo, e esse grupo é o das mulheres pretas acima de 50 anos. Mas, além disso, o que se diz sobre solidão da mulher negra é um processo em que ela não é vista como ser humano digno de afeto e respeito. Portanto, mulheres negras se sentem, ao longo da sua vida afetiva, sendo tratadas como sujeitos de menor valor e também sentem que, mesmo dentro de relacionamentos, não se veem sendo tratadas com valor, mesmo quando seus companheiros são homens negros. O que estamos discutindo é um processo social, racial e da própria construção afetiva. As pessoas adoram dizer que “amor não tem cor”, mas o próprio IBGE mostra que sim, quando a maioria dos casamentos acontecem entre pessoas da mesma cor, principalmente entre brancos, em que esse número atinge mais de 70%. Sendo assim, amor é uma construção social. Debater afetividade e escolhas afetivas sem nos prender a falácias é importante. Além disso, recorrentemente nós vemos como mulheres negras são negligenciadas e isso nos é ensinado. Definitivamente, não vemos mulheres como homens, nem sequer vemos negros como brancos. É falacioso dizer que vemos mulheres negras como homens brancos, os únicos que são tratados como indivíduos. Nós, mulheres negras, nem sequer somos vistas da mesma forma que mulheres brancas.

CONTINENTE A solidão da mulher negra tem a ver com quais fatores?
STEPHANIE RIBEIRO Estamos falando de raça e gênero. Sendo assim, uma inter-relação de fatores. No fundo, vivemos numa sociedade machista e racista em que pessoas são racializadas e socialmente tratadas conforme seu gênero. Não podemos e nem devemos fingir que isso não é realidade. A maneira como vemos uma mulher negra nessa sociedade é socialmente construída para ser de um modo racista e machista, em que a mulher negra, numa escala de objetificação patriarcal, é tida como um objeto de menor valor que uma mulher branca. Além disso, para ela são atribuídos outros símbolos e características por conta da sua negritude. Mulheres negras são colocadas como barraqueiras, agressivas, fortes, sexualmente fogosas. Todo esse imaginário hiperssexualizador e desumanizador, baseado em construções racistas, impacta na forma como as relações afetivas são construídas. Eu sempre dou como dois exemplos, pensando também em como o colorismo impacta isso, a figura da Rita Baiana e da Bertoleza em O cortiço. É nítido como a figura dessas mulheres negras é desumanizada, entretanto uma era tida como mão de obra boa para o trabalho, que não tinha sentimentos, na visão de um homem branco, e a outra, de pele mais clara, também era desumanizada por esse homem, mas de outra forma, era tida como fogosa, como um objeto do seu desejo sexual. Veja que nenhuma dessas duas visões envolve construção afetiva, o que vemos são mulheres negras sendo objetificadas, usadas e, claro, desumanizadas.

CONTINENTE De que modo a estrutura e o funcionamento da sociedade contribuem para essa solidão?
STEPHANIE RIBEIRO Infelizmente nossa sociedade não quer debater nem racismo e nem machismo seriamente. Temos todo um projeto para acabar com a discussão de gênero em escolas. Nós, enquanto sociedade, adoramos fingir que está tudo bem, que, por exemplo, “amor não tem cor”. Esquecemos, inclusive, de como existiu todo um projeto racista de branqueamento da sociedade a partir do incentivo da mestiçagem. Hoje, se você assistir a uma novela na maior emissora do país, vai ver mais casais inter-raciais com negros do que pessoas negras se relacionando com pessoas negras, mesmo que o IBGE aponte que isso é o que mais acontece. Nós associamos, inclusive, o sucesso ao branqueamento. Então, mesmo um homem negro entende que ter uma pessoa branca do seu lado é estar socialmente ascendendo. Historicamente construímos a figura da mulher negra como o resto do resto e a forma como isso impacta nossas relações afetivas é notável. Acho que a pesquisa da Claudete Alves, que depois se tornou o livro Virou regra?, mostra o quanto, mesmo vivendo relacionamentos, a tal Solidão da Mulher Negra está presente. A questão não é ter ou não um homem do lado, mas a forma como a gente vive numa sociedade em que a mulher negra não é vista como digna de viver a felicidade e ser amada. E aí, acho que podemos falar de várias formas de afeto e amor. Acredito que, ao longo da vida, pessoas negras vão experimentando a solidão afetiva, em especial, as mulheres negras, porque estamos aqui falando de um fato que envolve as opressões de gênero e raça. Quando a professora da escolinha deixa nítido que abraça todas as crianças, menos as negras, já desde pequeno vamos assimilando que o afeto não é para nós, que não somos dignos disso, e isso tudo vai criando um ciclo de abusos.

CONTINENTE Essa questão é específica do Brasil ou há algum paralelo com países que têm histórico de escravidão e racismo, como os EUA?
STEPHANIE RIBEIRO Temos esses assuntos sendo debatidos em outros contextos, nos EUA se debate mestiçagem, o que significa relacionamentos inter-raciais e, claro, o lugar da mulher negra nos relacionamentos afetivos e a forma como somos tratadas até mesmo por outras pessoas negras. Para mim, um claro exemplo disso é o filme Waiting to exhale ou Vivendo de amor, em que quatro amigas negras vão vivendo relacionamentos e compartilhando suas realidades e que, mesmo diante das suas diferenças de idade e classe, percebemos como o lugar da mulher negra – e aí, até mesmo para homens negros – é ainda um lugar de subalternidade na afetividade. Acho que é importante destacar que a questão da solidão da mulher negra sempre se deu no debate do por quê mesmo os nossos semelhantes – no caso, homens negros – não conseguem nos ver como dignas de afeto. Hoje tem uma extensa discussão sobre isso, vejo mulheres negras falando mais sobre esse assunto publicamente. Para mim, é fato que esse debate não é sobre estar sozinha fisicamente, pois a solidão pode ser vivenciada a dois, como bem diz a Claudete Alves. A questão aqui não é ter um namorado, mas é a forma como a sociedade acha que deve ser o afeto ou, no caso, o não afeto, para mulheres negras.

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