Vestindo um sobretudo preto, uma pessoa caminha, absorta e cabisbaixa, entre as cores outonais do Parc de Saint-Cloud, em Paris, ao som de uma melancólica seção de cordas de violinos produzidas por um sintetizador. “Já se passaram sete horas e 15 dias desde que você levou seu amor embora”, contabiliza o início da música que fala sobre a solidão de quem foi abandonado por um grande amor.
No mesmo 1990 em que Madonna lançou o exuberante Vogue, foi a novata irlandesa Sinèad O’Connor, com Nothing compares 2U, a primeira mulher a conquistar a categoria Vídeo do Ano no Video Music Awards da MTV. O mérito não era somente do diretor John Maybury, mas principalmente da cantora de cabelos curtíssimos, que soube interpretar a vulnerabilidade e o sofrimento presentes na composição de Prince. Na última estrofe, quando termina de cantar “Eu sei que viver com você às vezes era difícil”, derrama duas lágrimas. Aquela foi a primeira – e talvez única – vez que a geração MTV viu um artista chorar de verdade em um videoclipe. O lançamento desse vídeo transformou Sinèad O’Connor, aos 23 anos, numa estrela internacional.
Passados 27 anos daquele momento, a cantora reapareceu, em 2017, num vídeo que também teve repercussão mundial. E, nele, novamente ela chorou. Dessa vez, não na MTV, mas nos computadores pessoais de milhões de pessoas, seus fãs ou não. Era um doloroso desabafo. “Por que estamos sozinhos? Estou completamente sozinha, não há ninguém em minha vida, a não ser o meu médico, meu psicólogo, que diz que eu sou sua heroína. E esta é a única maldita coisa a me manter viva no momento. Isso é meio patético. Estou lutando, lutando e lutando, como milhões e milhões”, lamentou. Diante da câmera do celular, sentada numa cama de um quarto de hotel, Sinèad, agora aos 50 anos, divorciada e com quatro filhos, revela que não têm contato com os familiares. Reclama que as pessoas se afastaram devido ao estigma dos transtornos psicológicos.
Com a repercussão do desabafo, a artista concedeu uma entrevista ao programa de TV do médico Dr. Phil. Nele, revelou que, na sua infância, sua mãe tinha problemas mentais e era bastante abusiva, constantemente xingava e agredia a filha com chutes. Em 1990, quando Sinèad lançou sua versão de Nothing compares 2U, quase ninguém percebeu que ela fez uma pequena mudança na letra de Prince. Na frase “All the flowers that you planted”, colocou no final um “mama” no lugar de “baby”. Era uma referência à sua mãe, que havia falecido num acidente de carro em 1986. Daí, aquelas lágrimas.
O vídeo de Sinèad O’Connor, o do ano passado, tornou-se mais um alerta à sociedade sobre questões urgentes, como a depressão e o suicídio, e o que já vem sendo chamado de “O mal deste século”: a solidão.
Segundo estudos apresentados durante a 125ª reunião anual da American Psychological Association (APA), a solidão é hoje um fator que afeta a saúde. Pesquisadores da Universidade Brigham Young, nos Estados Unidos, analisaram 218 pesquisas - que envolveram, no total, cerca de 4 milhões de pessoas de vários países - sobre os efeitos do isolamento no corpo humano. Sentir-se solitário, isolar-se socialmente ou viver sozinho aumenta o risco de morte prematura em 26%, aproximadamente o mesmo que a obesidade. Pessoas isoladas socialmente são mais suscetíveis a doenças como infecções virais, males associados a processos inflamatórios e têm elevados níveis de cortisol, o hormônio do estresse. Há impactos também no cérebro, com desequilíbrio no processamento das emoções, o que acaba afetando as relações sociais. Ou seja, a tendência da solidão é se tornar crônica.
Qualquer um pode sofrer com esse sentimento: um pré-adolescente negligenciado pelos pais, um milionário idoso e moribundo, um artista andarilho, um velho viúvo, um profissional aposentado, um taxista, uma estrela hollywoodiana esquecida pelos estúdios, uma prostituta que sonha em encontrar um homem que a ame, uma mulher que perde sua família, um homem que não esquece a amada já falecida, uma executiva solteira atarefada com sua carreira e que vive distante da família, um homem que desenvolve uma relação afetiva com seu celular.
Esses são, respectivamente, personagens dos filmes Os incompreendidos, Cidadão Kane, A estrada da vida, Up, Morangos silvestres, Táxi driver, Crepúsculo dos deuses, Noites de Cabíria, A liberdade é azul, Morro dos ventos uivantes, Toni Erdmann e Ela. E eles nem sempre encontraram finais felizes na ficção.
Na vida real, as mais diversas solidões costumam afetar mesmo as pessoas, com desfechos muitas vezes trágicos, se agravadas por outros quadros, como depressão, vícios, doenças, tendência suicida. Os exemplos são muitos: Van Gogh, Marilyn Monroe, Michael Jackson, Sylvia Plath, Fausto Fanti, Philip Seymour Hoffman e, mais recentemente, Dolores O’Riordan.
Em 2017, documentários revelaram a solidão na vida de mais artistas, Whitney Houston, George Michael e Lady Gaga, que expôs sua fragilidade com comovente franqueza. “Estou sozinha, toda noite. E todas essas pessoas (músicos, funcionários, colaboradores) irão embora, certo? Eles partirão e então ficarei sozinha. Eu vou de um momento no qual todos me tocam e falam comigo o dia todo para um silêncio total”, lamenta a cantora, entre lágrimas, contrastando com a imagem poderosa que ela exibe nos videoclipes e shows.
MARCADA A FERRO “Eu diria que a solidão é uma marca que fere a ferro e fogo a alma humana. Hoje, a solidão é agravada pelas circunstâncias da era contemporânea. Ela aparece em suas mais variadas facetas. Claro, apesar de ser um sentimento necessário ao crescimento, estamos assistindo a um tipo de dor de solidão que beira a um vazio existencial”, avalia a psicanalista Carolina Henriques.
“Calcados num modelo em que o individualismo é prevalente, numa sociedade que isola e apaga o sujeito, em que o narcisismo se sobrepõe às construções de vínculos, em que a pressa, a velocidade e o instantâneo da vida são imperativos categóricos nestes dias, o que poderemos esperar desse sujeito da atualidade, diante da difícil luta de fazer vínculos, de enlaçar-se, logo, de emprestar-se?”, questiona. “A solidão, portanto, surge ocupando um espaço no vazio da vida de cada um. A solidão, quando associada ao desespero, à doença, ao sentimento de fracasso, à dor de uma perda significativa, ao isolamento físico, ao apagamento do sujeito nos tempos em que é preciso ser feliz a qualquer custo, poderá levar a graves consequências físicas e psíquicas.”
“Acredito que a minha solidão tenha origem na depressão, uma vez que reconheço estar cercada dos meus familiares e das pessoas que me amam e, ainda assim, esse sentimento se manifesta, me sinto sozinha, desprovida de tudo”, relata a estudante mineira Thais Santos, 32 anos, que vem enfrentando essa situação desde 2009.
“Na maioria das vezes, o sentimento de solidão precede uma crise de depressão, que começou com o fim do meu casamento. Isso impactou profundamente o meu relacionamento com as pessoas. A confiança e o trato não são mais os mesmos. É um trauma com sequelas terríveis. Eu havia me consultado com um médico e iniciado um tratamento, mas parei com os remédios porque eu sentia que não estava reagindo às coisas ao meu redor, fiquei anestesiada. Então, suspendi os medicamentos em 2010 e, desde então, enfrento um dia de cada vez. Pra mim tem sido extremamente difícil. Mas, de alguma forma, lá no fundo, acredito que valha a pena. Escrever e acompanhar relatos de pessoas que também são depressivas, acredite ou não, me ajudam muito”, conta Thais.
No livro Solidão – A natureza humana e a necessidade de vínculo social (Record, 2010), os autores, o neurocientista social John Cacioppo e o editor William Patrick, fazem um apanhado do impacto desse sentimento no corpo e nas relações sociais, comprovando teorias através de estudos. Eles escrevem:
Dada a especial importância de outros seres humanos como uma categoria refletida em nosso aparato neural, faz sentido que os rituais mais básicos das sociedades humanas em toda parte reflitam a importância do contexto social. Desde que a nossa espécie começou a deixar traços de existência, as evidências sugerem que as experiências mais evocativas emocionalmente na vida têm sido casamentos, nascimentos e mortes – acontecimentos associados com os inícios e términos de laços sociais. Esses laços são a força centrípeta que sustenta a vida. O bálsamo especial de aceitação que esses laços proveem, e a dor desigualmente perturbadora da rejeição quando eles são negados, é o que faz dos humanos seres tão atentos à avaliação social. Preocupamo-nos profundamente com o que os outros pensam de nós e é por isso que, entre as dez fobias mais comuns que fazem as pessoas procurarem tratamento, três têm a ver com ansiedade social: medo de falar em público, medo de multidões, medo de conhecer pessoas novas.
“A ideia de isolamento e desamparo são inexoráveis ao ser humano”, defende a psicanalista Carolina Henriques, que organizou, em setembro de 2017, a 12a Jornada de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica do Recife, que teve como tema a solidão. “O homem nasce desamparado, dependendo do cuidado do outro para sobreviver. Freud, ao longo do seu desenvolvimento teórico, aponta a dependência que o ser humano possui de outro. Só é possível a sua humanização no encontro com o outro, que propicia trocas, cuidados, atenção, mediante um processo que é denominado alteridade. Portanto, somos vulneráveis ao desejo do outro, desejo esse que nos proporciona o crescimento. Ocorre que, em determinadas situações, essa dependência torna-se tão intensa, ao ponto de anularmos o nosso próprio desejo.”
MINISTÉRIO DA SOLIDÃO Em janeiro deste ano, o Reino Unido fez história ao criar, de forma pioneira, o Ministério da Solidão. De problema individual, a solidão passou a ser encarada como uma questão grave de saúde pública. Com 65 milhões de habitantes e 9 milhões de solitários, é o país mais solitário da Europa. A deputada Tracey Crouch, de 42 anos, foi empossada como Ministra da Solidão e ficará encarregada de realizar medidas para combater o mal, que pode provocar doenças cardiovasculares, demência, depressão e ansiedade, e ser tão prejudicial quanto fumar 15 cigarros por dia.
De acordo com a comissão que vem analisando o tema, cerca de 200 mil pessoas idosas no Reino Unido não tiveram uma conversa sequer em mais de um mês. Para tentar amenizar a situação, a ideia é que deve haver uma ação integrada com empresas, patrões, organizações da sociedade civil e comunidades. Segundo o relatório do governo britânico, a “epidemia” tem a ver com o enfraquecimento de instituições que estabelecem conexões entre as pessoas, como família, igreja, clubes, sindicatos, pubs e centros de trabalho.
Em 2016, um documentário da BBC, A solidão de uma era, exibido no Brasil no ano seguinte, fez a radiografia do cotidiano dos britânicos, apresentando a história de homens e mulheres de diferentes idades que enfrentam o isolamento, como uma garota que saiu da casa dos pais para a universidade, uma profissional que se mudou da Nova Zelândia para Londres, viúvas e viúvos idosos com ou sem filhos. Alguns depoimentos são pungentes: “Parece que estou numa prisão”, “Doei meu corpo para a ciência. Porque no meu velório não haveria ninguém além dos meus filhos”, “Só me sinto necessária para os meus cachorros”, “Acordo às 16h, jogo video games e vejo TV. Depois, às 3h ou 4h da manhã, volto para a cama”, “Faço pequenas compras para ter a desculpa de voltar ao supermercado e conversar com as caixas. Não vou ao caixa automático”.
No artigo The age of loneliness is killing us, publicado no Guardian, o jornalista, escritor e acadêmico George Monbiot fez uma análise de sua sociedade: “As crianças britânicas já não aspiram a ser motoristas ou enfermeiras – mais de um quinto diz que ‘querem apenas ser ricas’: a riqueza e a fama são as únicas ambições de 40% dos entrevistados. Somos menos propensos do que outros europeus a ter amigos próximos ou a conhecer nossos vizinhos. Nosso insulto mais radical é loser (perdedor). Já não falamos sobre pessoas. Agora, nós os chamamos de indivíduos. (…) Enquanto o rendimento dos diretores das empresas aumentou em mais de um quinto, os salários para a força de trabalho caíram em termos reais no ano passado. Os chefes ganham – desculpe, quero dizer, abocanham – 120 vezes mais do que o trabalhador médio o tempo inteiro. E mesmo que a concorrência nos tornasse mais ricos, isso não nos tornaria mais felizes, uma vez que a satisfação decorrente de um aumento na renda seria prejudicada pelos impactos da competição. Aqueles que pertencem ao 1% que possui 48% da riqueza global também não estão felizes. Uma pesquisa do Boston College sobre pessoas com patrimônio superior a 78 milhões de libras descobriu que elas também foram assaltadas pela ansiedade, insatisfação e solidão”.
Com o aumento da longevidade, uma nova geração de filhos únicos, a violência nas ruas, a perda dos espaços públicos, o confinamento das pessoas nos apartamentos, homeworking, individualismo, longas jornadas de trabalho, cobrança por produtividade e competitividade incentivados pelo sistema capitalista, a solidão tende a crescer e, por sua vez, a insatisfação e infelicidade também.
“A felicidade, como dizia Saint-Just, era ‘uma ideia nova na Europa’, mas nada era mais fácil de observar que a maior felicidade do maior número de pessoas, que claramente não estava sendo atingida, era a felicidade do trabalhador pobre. (…) ‘O objetivo primordial e necessário de toda a existência deve ser a felicidade’, escreveu (Robert) Owen (reformista social galês, um dos fundadores do socialismo e do cooperativismo), ‘mas, a felicidade não pode ser obtida individualmente; é inútil esperar-se pela felicidade isolada; todos devem compartilhar dela ou então a minoria nunca será capaz de gozá-la’”, escreveu Eric Hobsbawn, sobre o impacto do capitalismo nas sociedades, em A era das revoluções (1962).
REDES SOCIAIS A epidemia da solidão contrasta com o mundo hiperconectado que vivemos, gerando um paradoxo. Como pessoas que possuem milhares de amigos no Facebook e seguidores em redes sociais (Facebook, Instagram, YouTube e Twitter), além de acesso ao WhatsApp, podem se sentir solitárias?
“A solidão está muito mais voltada para a dificuldade das pessoas se fazerem conhecer e de se dispor a conhecer o outro. Então, nesse sentido, os tempos modernos ampliam intensamente um sentimento de solidão. E nem as novas tecnologias vêm para as pessoas estabelecerem uma comunicação. Elas estão levando ao isolamento, dificultando o contato humano. Mas há outra perspectiva, até que ponto o ser humano já não era solitário e a tecnologia vem como facilitadora? Será que a tecnologia, a internet, as redes sociais, realmente satisfazem aquele sentimento de solidão ou o contato que se estabelece nelas é menos profundo? Elas estabelecem um certo nível de comunicação, mas não resolvem o sentimento de solidão. A tecnologia avança porque já há uma solidão anterior”, afirma a psicanalista Ivanise Ribeiro.
Um exemplo sintomático dos tempos que vivemos foi a própria criação do Facebook. O filme A rede social (2010) retrata Mark Zuckerberg como um nerd antissocial que basicamente apropriou-se de uma ideia, cuja programação lhe foi encomendada por dois alunos de Harvard. Quando o projeto, que era para conectar os alunos da universidade, ganha uma dimensão maior, ele passou a faturar alto, atraindo investidores, porém sendo processado pelos autores originais do projeto e pelo brasileiro Eduardo Saverin, responsável pelo capital inicial da empresa.
No Facebook, Zuckerberg é o usuário com mais amigos virtuais, 102 milhões, ultrapassando em 100 vezes a meta máxima de Roberto Carlos, Eu quero ter um milhão de amigos. Mas, paradoxalmente, o longa termina com o programador-empresário sozinho, como uma espécie de castigo para o seu comportamento antiético. Em resposta ao roteiro, Zuckerberg afirmou que o único aspecto fidedigno no filme era o seu modo de se vestir.
O Facebook e as demais redes sociais que, teoricamente, foram criadas para conectar as pessoas, tornaram-se um motivo de infelicidade para os usuários e, para piorar, atuam no cérebro como uma droga. Segundo uma pesquisa realizada pela instituição de saúde pública do Reino Unido Royal Society for Public Heath , são, pelo menos, mais viciantes que álcool e cigarro. Jovens entre 14 e 24 anos formam a principal faixa etária das redes sociais e foram avaliados como ansiosos, deprimidos, sem sono e com a autoestima baixa.
Sete em cada 10 dos voluntários da pesquisa disseram que o Instagram (avaliado como o serviço mais tóxico) faz com que se sintam mal com a própria imagem. Nove em cada 10 meninas passaram a se sentir insatisfeitas com seus corpos e pensam até em se submeter a cirurgias. Segundo a pesquisa, o menos nocivo é o YouTube, seguido do Twitter. O Facebook e Snapchat ficaram em terceira e quarta posição, respectivamente.
“Estou evitando entrar no Instagram, porque, sempre que entro, vejo as pessoas muito felizes, e isso me faz ficar mais triste ainda”, afirma a advogada Lia Souza, que está se recuperando do término de um relacionamento e, por ora, não suporta ver a “vida perfeita” dos outros. “As plataformas que supostamente ajudam os jovens a se conectarem podem estar alimentando uma crise de saúde mental”, suspeita a Royal Society for Public Heath. O estudo mostrou que, além de impactar o sono, a autoimagem e aumentar o fomo (fear of missing out), ansiedade causada pelo medo de ficar de fora do que está rolando nas redes sociais, ainda há o bullying – nesse quesito, o Facebook foi apontado como o ambiente mais perigoso.
OBSERVADOR SOLITÁRIO Além de promover problemas de autoestima, o bullying é um dos motivadores do isolamento. O roteirista Fabrício (pseudônimo) foi vítima desse assédio em dois colégios onde estudou, tanto por parte dos professores quanto dos alunos. “Com o tempo, acabei me tornando invisível. Às vezes, me sentia como um móvel fora do lugar, porque as pessoas passavam e, se eu estivesse no meio do caminho, elas só me empurravam e seguiam reto. A grande questão é que eu era uma criança e depois um adolescente que já vinha de um ambiente meio solitário dentro de casa. Sou filho único de pais divorciados e minha mãe sempre trabalhou muito duro o dia todo para manter a casa. Então, passar o tempo só nunca foi um território desconhecido pra mim. Preferia livros e filmes a pessoas. Ainda prefiro, na verdade, mas na época da escola tem aquele momento de ebulição hormonal e de início da vida social mais ativa. Acho que tive muita dificuldade de me inserir socialmente porque, além da timidez, eu era o que se chamaria de ‘um menino meio esquisito’. Um dia desses, estava zapeando pelo Netflix e acabei naquela série do final dos anos 1990 chamada Freaks and geeks. Desconheço alguma outra obra que consiga transmitir tão bem as sensações e os sentimentos do que é ser uma pessoa estranha inserida num contexto escolar de gente, digamos, normal.”
A solidão alimentou a personalidade observadora de Fabrício. “Não vejo a minha solidão como uma coisa completamente ruim, inclusive porque, inserido no contexto em que eu estive durante meus anos de escola, ficar só era muito mais vantajoso. Mas claro que existia um sofrimento grande no início e uma posterior adaptação a ele. Isso fez com que tudo se tornasse muito melancólico durante a adolescência. E a adolescência é um período muito rico de sensações. Acredito que essa experiência de não ter muito com quem jogar conversa fora ou alguém pra dar uns amassos, dependendo da personalidade e da vida pregressa do sujeito, podem ser até encaradas como uma fase de autoconhecimento. Acho que muito da forma como eu estetizo as situações por que passo vem desse período.”
Observar a solidão na cidade, quase como um flanêur, foi a forma encontrada pela jornalista Olivia Laing, 35 anos, para superar o próprio isolamento, desencadeado após o fim de uma relação afetiva que a levou da Grã-Bretanha para Nova York. “Comecei a perceber que a solidão era um lugar povoado: uma cidade em si mesma. E quando se habita uma cidade, mesmo uma cidade construída com tanto rigor e lógica como Manhattan, é comum se perder, no início. Com o tempo, você começa a desenvolver um mapa mental, uma coleção de rotas e destinos preferidos: um labirinto que nenhuma outra pessoa jamais poderia duplicar ou reproduzir precisamente. O que eu estava construindo naqueles anos, e que agora se segue, era um mapa da solidão, feito tanto da necessidade quanto do interesse, composto a partir de minhas próprias experiências e as dos outros. Eu queria entender o que significa ser solitário e como isso funcionou na vida das pessoas, para tentar mapear a complexa relação entre solidão e arte.”
Olivia também buscou os rastros de solidão na obra de diversos artistas que viveram em Nova York, como Edward Hopper, David Wojnarowicz, Henry Darger e Andy Warhol. Sobre o artista da pop art, escreve: “Como muitas pessoas solitárias, ele era um acumulador inveterado, produzindo e se cercando de objetos, barreiras contra as demandas de intimidade humana. Contato físico causava-lhe pavor, e ele raramente saía de casa sem um arsenal de câmeras e gravadores, usando-os para intermediar e amortecer interações: comportamento que tem luz para lançar sobre o modo como empregamos a tecnologia no século da chamada conectividade”.
Em A filosofia de Andy Warhol, ele próprio se descreveu como alguém que “não era incrivelmente popular”: “embora tivesse, sim, alguns bons amigos, eu não era especialmente próximo de ninguém. Acho que eu queria ser, porque quando eu via as crianças contando umas às outras os seus problemas, eu me sentia excluído. Ninguém confiava em mim – eu não era o tipo com o qual queriam confidenciar-se, acho”. Em outro trecho, revela: “No momento em que decidi que preferia estar sozinho e não ter ninguém me contando seus problemas, todo mundo que eu nunca havia visto antes em minha vida começou a correr atrás de mim. Assim que me tornei um solitário em minha própria mente, foi quando tive o que você poderia chamar de um ‘séquito’”. Refere-se à famosa “claque”, formada por modelos, artistas, músicos, poetas e aspirantes de toda sorte, que orbitava à sua volta, o que não significava que, mesmo assim, ele não se sentisse só.