O filme protagonizado pelo próprio diretor retoma a história do personagem Francisco, que ele apresentou pela primeira vez em Reforma, curta de 2018. Isolado em seu apartamento por conta da pandemia da Covid-19, ele se depara com os meandros da vida afetiva em meio à crise sanitária, o confronto diário com a ideia de morte, da solidão, com o desejo e as questões macro e micro de uma sociedade em erosão.
Inicialmente, Seguindo todos os protocolos seria um curta-metragem, mas acabou ganhando outra dimensão, mesmo diante do baixo orçamento. Feito na cara e na coragem, com o empenho de uma equipe apaixonada pelo projeto e com ânsia de voltar a trabalhar após um ano de paralisação das atividades, a produção do filme revela também o desmonte que o cinema nacional vem sofrendo nos últimos anos, com a redução de verbas e a falta de políticas públicas.
Interessado nas minúcias das relações humanas, especialmente a partir da sua perspectiva enquanto homem gay, ele constrói no filme uma narrativa que não se propõe como documento histórico, mas que acaba revelando muito sobre alguns impactos emocionais da pandemia. Francisco quer transar, quer ser tocado, sentir a pele e o suor de outro homem, mas ao mesmo tempo é assombrado pelas incertezas de uma ameaça invisível que circula (sim, no presente) a população, em um momento no qual as vacinas ainda não estavam sendo aplicadas para toda a população. Afinal, como conciliar medo e desejo e deixar o Eros aflorar em um momento dominado pelo Thanatos?
No filme, Fábio não trabalha essas ideias como conceitos sobre o qual pretende desenvolver uma tese ou mesmo chegar a um veredito. Francisco é um personagem complexo, contraditório, e suas reações diante dos acontecimentos são cinzentas, dispensando idealizações. Essa perspectiva, inclusive, guiou o diretor na elaboração do roteiro, que foi sendo construído à medida que as filmagens aconteciam. Ele queria falar sobre como, por trás das telas de smartphones, nossa conduta é tortuosa e não pode ser maquiada com filtros e textões o tempo todo. Assim, ao filmar praticamente tudo em um apartamento, o realizador recifense faz um uso engenhoso do espaço para trabalhar como o isolamento gera implicações no emocional, mas não se restringe à questão afetiva.
Temas como consentimento, questões raciais, políticas, dinâmicas de interação online, entre outras, atravessam o trabalho de formas sutis, mais incisivas. Fábio Leal brilha como roteirista, ator e diretor e cria uma obra sensível, com um humor cortante, autêntica.
Nessa entrevista à Continente Online, ele fala sobre seus filmes mais recentes (além de Seguindo todos os protocolos, em 2021, ele estreou em festivais o longa documental Deus tem Aids, em parceria com Gustavo Vinagre), seus novos projetos e a importância de se comprometer em suas obras.
CONTINENTE Você dirigiu dois filmes que abordam doenças que criaram um pânico social – a Aids, a partir dos anos 1980 – e a Covid-19, mais recentemente. A Aids tem sido amplamente abordada no audiovisual, enquanto, com exceção dos momentos mais críticos da pandemia, a Covid parece sofrer uma espécie de apagamento por parte da ficção. Como você observa esse retrato da crise sanitária no audiovisual?
FÁBIO LEAL Do ponto de vista da ficção, demorou até mais na pandemia de Aids para que ela fosse colocada na ficção, seja em literatura ou no audiovisual. A primeira notícia da Aids foi em 1981, enquanto os primeiros filmes de ficção só vieram em 1985. Até entendo a demora, principalmente naquela época, quando a televisão estava muito forte. No Brasil, acabando a ditadura, era um período de vale-tudo midiático e a Aids entrou como uma luva nessa perspectiva, quase como se fosse algo de terror, inclusive com a mídia se utilizando de aspectos técnicos de filmes de terror: trilha sonora, uso de lentes que desfocam. Muito do que a gente tem de imaginário sobre a Aids é muito culpa da ficção e do jornalismo, que usou recursos da ficção para informar ou desinformar o que acontecia naquela época. Isso mudou bastante, na minha opinião, em relação à pandemia da Covid-19, que contou com um jornalismo mais responsável, talvez. É preciso fazer uma distinção das duas pandemias: uma, no início, foi muito setorizada, em homens gays, pessoas que usavam drogas injetáveis e moradores do Haiti. Mas, com a Covid-19, houve uma explosão para todos. No começo, até tentou se colocar que os grupos de risco eram os mais velhos, mas a doença logo se mostrou muito democrática nesse sentido. O mercado cinematográfico, por ter sido impactado negativamente pela pandemia, pelo cinema ser um lugar propício para contaminação, acabou se tornando, na minha opinião, um dos principais responsáveis por esse apagamento da Covid e a tentativa de colocar na nossa cabeça que está tudo bem. Recentemente, [o realizador] Eduardo Valente fez uma postagem dizendo que só viu três filmes em Cannes que tocavam na pandemia. Então, acho que tem uma questão econômica forçando uma questão comportamental. É claro que a gente quer encontrar as pessoas e quer respaldo para isso – e estamos recebendo, principalmente do cinema. Eu sinto falta de olhar para produtos audiovisuais, tanto séries quanto filmes, e entender essa realidade. Porque esses produtos que a gente viu em 2020 e 2021, falando do Brasil, como os episódios da série Sob pressão, eram sobre algo grande, o macro. Eu tenho vontade de ver um filme de suspense em que pessoas usem máscara ou que alguém pegue Covid e precise ficar dez dias isolado. Existe um lugar meio inexplorado, até dramaticamente, em relação a essas questões micro que a Covid pode trazer.
CONTINENTE Desde o começo você pretendia fazer de Seguindo todos os protocolos um longa? Como o projeto foi desenvolvido e quais as particularidades de gravar em meio às particularidades do cenário pandêmico?
FÁBIO LEAL A princípio, não era um longa. A Lei Aldir Blanc, em Pernambuco, o máximo que dava era R$ 30 mil para fazer um curta. O edital dela era muito simples: você só precisava escrever uma sinopse de dois parágrafos e todo o projeto precisava estar em uma página. Escrevi algo breve, que seria a continuação do meu curta Reforma, de 2018, trazendo dois personagens de lá, e como eles se reencontrariam, além de adicionar essa coisa de fazer sexo seguindo todos os protocolos sanitários, que de fato eu tinha visto em um guia da Prefeitura de Nova York e achei interessante. Quando a gente foi aprovado, foi que, de fato, comecei a escrever o roteiro e foram aparecendo várias situações. Fizemos o estudo de orçamento e parecia grande demais, então tirei algumas cenas. Quando fomos filmar, veio a segunda onda, que foi a pior de todas, quando estavam morrendo três, quatro mil pessoas por dia, e então adiamos o filme. A gente foi filmando de uma forma muito não usual, com uma diária a cada mês, montando essas imagens logo em seguida. Então, fui escrevendo o filme ao longo do processo. Quando a gente viu, já estava com bons 50 minutos e o montador Matheus Farias disse que estava quase um longa. Falei com a produtora, a gente conversou com a equipe e vimos que trazendo uma das cenas que cortamos no início – a do médico – virava um longa. Filmamos durante muito tempo. A primeira gravação foi em fevereiro de 2021 e a última, em setembro daquele ano. E, durante esse período, sempre a escrita ia acontecendo nos intervalos. Geralmente, você já tem o roteiro muito estruturado, ganha o edital e depois filma. Acho que essa outra forma de filmar também foi condizente com o período que a gente estava vivendo.
CONTINENTE Você enxerga um filme como um documento histórico desse primeiro ano e meio de pandemia?
FÁBIO LEAL Não vejo e procuro não ver o filme como documento histórico. Acho que a força dele está justamente em não ter essa pretensão de cristalizar algo, de ser para a posteridade ou dar algo que a gente ainda não sabe. Acho que ele dá conta de algo menor, que são os impactos psicológicos em um determinado personagem, em um determinado contexto. Acho que, para entender o que isso significa do ponto de vista histórico, vai demorar algum tempo, até para a gente perceber os traumas causados por esse momento. A nossa sociedade não é treinada ou ensinada a pensar na morte – a gente sempre evita esse assunto. Mas durante, no mínimo, um ano e meio, a gente pensou na morte, na nossa, dos nossos familiares, amigos, amores, todos os dias. E isso tem impactos psicológicos muito fortes. Então, podem vir gatilhos nos próximos meses ou anos que a gente nem atente agora. A gente foi instado a ter medo durante muito tempo, de forma muito intensa. Então, minha vontade era muito de falar sobre isso e sobre nossos relacionamentos "telados", de tudo ser mediado pelo computador, pelo celular. A gente ainda está discutindo coisas muito profundas de como nós somos. A questão identitária diz respeito a quem a gente é e quem são os outros, onde nos inserimos. E a gente não estava inserido em canto nenhum, estávamos nos nossos apartamentos, mediados pela tela e pela forma como a gente quer se projetar. Foi um período muito confuso de diversas formas.
CONTINENTE O filme tem um aspecto interessante que é, além de focar nessas dinâmicas próprias da pandemia, de abordar o desejo em meio ao caos, o medo do contato com o outro e da intimidade física, abordar questões igualmente complexas e também difíceis, como as identitárias. São temas que atravessam seu cinema de uma forma geral. Gostaria que você comentasse um pouco sobre isso.
FÁBIO LEAL A sensação era de que o mundo tinha parado, mas ele não parou. Todas as questões continuaram acontecendo, evoluindo e seguindo seu curso, enquanto a gente tinha uma pandemia que estava matando muita gente e deixando todos com muito medo. A vida encontrava um meio de continuar e tínhamos que lidar com essas questões para além das da morte que estávamos sendo obrigados a enfrentar. Então, isso me interessava também: como esse personagem lida com essas questões imerso nesse contexto que parece ser tão mais imediato e urgente, ao mesmo tempo em que tudo isso continua pulsando? Como é que se equilibra essas diversas formas de vida? Acho que a Covid entrou no nosso contexto de um julgamento meio sumário e muito imediato. A nossa forma de lidar com a doença também foi impactada pelas nossas formas de encarar essas outras questões urgentes, como as identitárias. É como se a gente tivesse pegado um manual de militâncias para lidar com a Covid – ou como os outros lidam com ela. Isso sempre me interessou. Sinto que, há alguns anos, a nossa forma de lidar com as coisas é apontar o erro alheio e, dessa forma, esquecer um pouco dos nossos erros, preconceitos e opressões. E, com a Covid, acho que isso aconteceu um pouco, essa coisa de se sentir moralmente superior. Eu queria fazer um filme no qual eu me implicasse. Eu sinto falta disso. Me parece sempre que os filmes são sobre os outros, os malvados. Essa ideia de apresentar a melhor versão de nós me irrita. Quando eu estava falando dessas questões "teladas", o Instagram, Facebook e Twitter, é isso: a gente está sempre indignado com a ação do outro. E olha como a gente é legal por estar se indignando com o que outra pessoa fez. Falando de mim, me preocupa me perder nesse personagem e não olhar para as coisas que continuo fazendo e não deveria. Essa "melhor versão de nós" era tudo que a gente tinha das outras pessoas. Virou, também, um período de muita falsidade, de pouco real. A gente só se relacionava pelo Instagram, olhando as postagens de outras pessoas, e todo mundo era muito maravilhoso. Hoje, continua, mas a gente pode encontrar as pessoas e ver que elas não são tão maravilhosas [risos].
CONTINENTE Com a retomada da indústria de uma forma mais regular, quais os seus próximos projetos?
FÁBIO LEAL Fui um dos roteiristas da segunda temporada de Cidades invisíveis, da Netflix, e fiz outra série que ainda não pode ser falada. De projetos meus, aprovei no Funcultura o roteiro de um filme chamado O vale dos homossexuais, mas é um filme grande, um longa, que precisa de dinheiro, então vai demorar. E tenho outros projetos embrionários que eu, por superstição, prefiro não falar sobre. Em relação aos temas, continuo me interessando nas questões de como a gente se relaciona com os outros, sobre viadagem, de me entender viado. Talvez comece a entrar uma coisa de envelhecimento... Acho que quando a gente entra nos 35, indo em direção aos 40, se percebe que já tem uma nova geração que vê você como velho. Percebo que dentro dos homossexuais a questão da idade é muito grande, das “cacuras”. Tenho muita vontade de me debruçar sobre isso.
CONTINENTE E quais as suas perspectivas enquanto realizador, no contexto em que vivemos? Sobre o filme, há algum aspecto que você gostaria de ressaltar?
FÁBIO LEAL Uma coisa que eu quero ressaltar é sobre o fato de ter feito um filme com R$ 30 mil. Nesse contexto específico da gente estar parado há um ano, desempregado, sem filmar, sem fazer nada, a Lei Aldir Blanc foi um respiro de cultura dentro de um governo que não só não liga, mas que é inimigo dela; só que eu não gostaria de continuar filmando com esse valor. Não quero romantizar a precarização. Seria muito importante a gente conseguir resgatar nossas políticas públicas de cultura, com valores que sejam possíveis. Porque além dos R$ 30 mil, teve a força de trabalho de muita gente que trabalhou por muito menos do que merece. Foi um valor simbólico que não daria para fazer um filme se não fosse o tesão e a vontade dessas pessoas. E é muito triste o lugar em que estamos. A Lei Aldir Blanc e a Lei Paulo Gustavo foram vetadas e é louco como, quando eu comecei a fazer cinema, o futuro era possível, podíamos pagar nossos boletos, fazendo um cinema autoral – o que não significa que se não possa ser comercial, como provam os filmes de Kleber Mendonça Filho – e, de repente, isso foi tirado da gente. Espero que a gente consiga retomar.
MÁRCIO BASTOS, jornalista cultural e mestrando em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.