Poetas negras brasileiras
Antologia organizada pela escritora Jarid Arraes celebra subjetividades de 70 autoras de regiões distintas do Brasil
TEXTO Raíza Hanna
02 de Março de 2022
Cris Sobral é uma das escritoras que participam da coletânea
FOTO Thaís Mallon/Divulgação
[conteúdo na íntegra | ed. 255 | março de 2022]
Chega às minhas mãos uma obra de título e organização potentes, com uma listagem de nomes femininos em seu sumário que enche os olhos e inebria o coração. Falo a respeito de Poetas negras brasileiras: uma antologia (2021), organizada por Jarid Arraes, escritora, cordelista e poeta originária de Juazeiro do Norte (CE) e publicada pela Editora de Cultura, em associação com o selo Ferina, recém-criado por ela. O livro reúne cerca de 70 poetas de regiões distintas do Brasil, sendo grande número delas provenientes do Sudeste e do Centro do país, embora haja um número expressivo de autoras nordestinas.
As autoras presentes na antologia possuem idades que vão dos 18 aos 70 anos, como nos informa a organizadora na apresentação do livro, na qual aproveita para contar um pouco sobre a seleção para a obra, realizada através de chamada pública em 2019. A ideia inicial era que escritoras negras de todo o Brasil enviassem poemas e contos de suas autorias. No entanto, foram enviados apenas dois contos contra uma centena de poemas, fazendo com que a iniciativa mudasse de abordagem, partindo para uma antologia de poesia.
Como prometido, a antologia nos traz um grande número de temas e experimentações estéticas. Não estando reféns apenas das pautas sociais reclamadas pela militância negra, a política ainda assim percorre cada viela dos poemas, mesmo que estejam falando de amor ou de desejos, mostrando que a poesia de autoria negra não necessita falar só de negritude ou das mazelas sociais causadas pelo racismo, e nesse caso também pelo machismo, uma vez que estamos tratando também de autoria feminina. Poetas negras brasileiras chega com essa multiplicidade temática como para reafirmar a liberdade da mulher negra brasileira no universo das letras.
Os poemas presentes na antologia trazem temas como amor, sexo, negritude, ancestralidade e afrofuturismo; memória; genealogia feminina, exercício de escrita e fazer poético, religiosidades; violência doméstica e machismo, dentre outros. Além de Conceição Evaristo, nomes como os de Cristiane Sobral, Debora Gil Pantaleão, Lubi Prates, Mel Duarte, Tatiana Nascimento e a própria Jarid Arraes engrandecem a obra.
A poeta Lubi Prates. Imagem: Douglas Santiago/Divulgação
Mesmo com a diversidade temática, notamos alguns motes mais frequentes nos poemas que, de certa forma, congregam as autoras num grupo de vivências e experiências que se tocam e se multiplicam à margem de um rio de nascente africana a desaguar em mar brasileiro. Há entre as poetas uma busca por essa nascente, por esse lugar de partida, esse território geográfico continental separado por um oceano, ou, ainda mais, uma busca incessante pelo traçar de uma cartografia afetiva, emocional, cultural e transnacional. Pois, como nos aponta a crítica literária feminista Sandra Goulart (2015), “As cartografias da contemporaneidade mapeiam uma gama variada de conceitos que perpassam a literatura contemporânea, tais como diáspora, cosmopolitismo, globalização, mundialização, multiculturalismo (…) entre outros”, lembrando-nos de que não há mais como “pensar a categoria espacial desvinculada da temporal”.
Assim, temas como diáspora africana, ancestralidade, descendência afro, especialmente as referentes a uma genealogia feminina e militância antirracista aparecem como nós onde se emaranham as histórias e preocupações das poetas. Uma África – o que veio dela e ainda pulsa – presente a todo momento, para além dos corpos gendrados e racializados das escritoras participantes da antologia.
A poeta Mel Duarte. Imagem: Lucca Miranda/Divulgação
Ana Fátima, poeta de Salvador (BA), por exemplo, mostra sua ancestralidade afro como marca no poema Nas tramas da carapinha: “Adentro na floresta de pensamentos/ que elevam minha trajetória/ a partir do respeito à vivência coletiva/ de um povo em constante elevação:/ A negritude está inscrita em mim. (…)// Nas noites cor de azeviche/ cintila a coroa de minha ancestralidade/ que ostento com graça sob o ori/ trançado em búzios/ e outros legados”.
As religiões de matrizes africanas com seus orixás, seu léxico, gastronomia e rituais dão forma à linguagem de alguns dos poemas presentes, como em trecho de é no teu terreiro que eu danço, de Isabela Alves, poeta de São Paulo: “é no terreiro que peço agô pra transformar. para / girar a chave. e o meu corpo, sagrado templo, que/ você se lambuza e se embrenha em teia de serpente./ aranha e tesoura”.
Ou em Axé, de Magna Oliveira, poeta de Belo Horizonte, que escreve: “Axé para quem tá na lida/ Axé para quem deixou a lida/ Axé para quem a terra respeita/ Axé para quem os bichos encanta/ Axé para quem é da terra/ Axé para quem é do mar (…)// Axé para o povo preto/ Axé para o povo nagô/ Axé para o quilombo/ Axé para a cidade/ Axé para o campo/ Axé para saudar a todos”.
São ainda pontos de afluência, a violência doméstica, com Fernanda Rodrigues (SP); o corpo feminino negro, com Maira Luciana (DF); o fazer poético, com Mari Vieira (MG) e a militância política, especialmente nos poemas de Natalia Amoreira (SP) e Laura Oliveira (MG), que trazem suas experiências militantes para a textura do papel. O gozo do corpo feminino, a lesbianidade e a transgeneridade são também elementos que perpassam as páginas da obra.
A genealogia feminina se inscreve de forma pulsante em vários dos poemas da antologia e parece claro estabelecer uma ligação não só com o feminismo, tal qual o concebemos na parte ocidental do globo, como, ou ainda mais, com o mulherismo. Este, um conceito do pensamento matriarcal afrocêntrico criado por Cleonara Hudson, e especialmente desenvolvido por Nah Dove, a partir do qual as opressões são estudadas sob a ótica específica da mulher negra africana.
A mesma especificidade se mostra ao cruzarmos com poemas provindos do slam, fáceis de identificar e que carregam a marca de uma trajetória negra que tem se solidificado em gênero literário, bem como apontado como sendo um dos principais canais da poesia negra brasileira contemporânea, e feminina, a partir do combate feminino no beat e na rima realizado pelos diversos Slam das Minas espalhados por todo o Brasil.
Um ponto crítico do livro recai em alguns aspectos da edição, especialmente no texto da quarta capa que no intuito, talvez, de possuir um tom mais comercial, traz uma sinopse que se inicia com a pergunta “Quem disse que não tem poeta negra?”. A meu ver, essa pergunta desrespeita a longa jornada de poetas e escritoras negras existentes na história brasileira. O que foi silenciado não deixou de existir. E é exatamente por isso que a escrita de autoria feminina e negra precisa continuar insistindo e resistindo.
RAÍZA HANNA, escritora, revisora de textos, editora de livros e mestranda em Literatura, Teoria e Crítica pela UFPB.