Bom é que Mateus, exibido em novembro de 2019 na programação itinerante da Mostra Sesc de Cinema, em Paraty e com duas sessões em Pernambuco, pode ser isso e muito mais. Afinal, descortina-se uma ampla vereda de possibilidades quando dois palhaços, Jurema e Bandeira, ganham as estradas rumo à zona da mata pernambucana em um Fusca 1978, com o objetivo de rastrear os brincantes que encarnam Mateus, antológico personagem dos grupos de cavalo-marinho. Eles são Jurema e Bandeira, mas também são Claudio Ferrário e Odília Nunes, e em suas conversas partilham muito do que já viveram, dos Mateus e Catirinas que fizeram e/ou querem fazer, porém, principalmente, repartem a abertura para os encontros.
“O documentário lança esses dois palhaços na estrada, nessa viagem, sem produzir nada. Além disso, Claudio e Odília estão no filme assumindo várias camadas deles mesmo: são dois atores conversando entre si em um carro, exercendo o lugar do encontro com o outro, como em uma entrevista, sabe? Como entrevistadores que buscam o outro enquanto vão, os dois juntos, buscando esses mestres. Acho que o filme nasce de um desejo meu, por ser casada com Claudio e ouvir muitas histórias dele, de saber mais sobre o Mateus que ele foi, sobretudo de entender o encontro com esse personagem. Por isso também chegamos a Odília, que pesquisa o Mateus do cavalo-marinho e quer ser a Catirina para poder estar numa brincadeira popular que é sempre muito masculina. A sensação que tenho é que Claudio faz uma viagem ao passado, para lembrar o Mateus que foi, e Odília faz uma viagem para o futuro, para ser a Catirina e ser aceita e respeitada dentro da tradição popular, sendo coroada por Martelo, o grande mestre dela”, condensa Dea, em entrevista à Continente.
Nessa travessia, Martelo, Zé de Bibi, Mocó e seu Luís entram em cena sem que nenhum contato prévio com eles tivesse sido feito. “Nada era programado. Esse é o filme sobre o qual tenho menor controle. Chegava e filmava tudo que estava acontecendo. Isso se sente: esse mergulho na chance dos encontros”, pontua Dea Ferraz. Acompanhada dos dois diretores de fotografia, seus parceiros habituais Leo Crivellare e Marcelo Lacerda, e da montadora Bia Baggio, ela também se jogou: percebe-se que Mateus é uma obra erigida sob o signo da liberdade e a partir de uma generosa escuta. Tudo, afinal, passa pelo afeto, pelo modo como afetamos as pessoas com quem nos relacionamos e somos afetadas por aquelas que atravessam nossos caminhos.
E se constata que o filme procura olhar para os indivíduos, as almas, por trás da brincadeira, universalizando não apenas o cavalo-marinho, ou mesmo o Carnaval, essa entidade tão mítica para nós, pernambucanos, mas a própria noção da cultura. “Indo além da brincadeira, encontramos aquelas pessoas e, no final das contas, encontramos a nós mesmos. Ou seja, falamos de quem somos aqui no Nordeste”, pontua Dea, “e nas exibições que fizemos aqui, percebemos como crescemos e vivemos com essas imagens dentro da gente. Mas acho que esse imaginário também pode ser acessado por quem não é daqui”.
Para a realizadora, isso se deve, acima de tudo, ao genuíno interesse que move seus personagens principais: “A busca de Claudio e Odília era legítima, passava por dentro deles, eles eram muito interessados por essa figura do Mateus. Queriam encontrar e escutar os mestres. Em Paraty, algumas pessoas perguntaram se esses mestres, nem sempre tão abertos, sabiam que estavam sendo filmados e o que significava estar ali, de uma certa forma também como espectadores. É que quando Claudio e Odília chegam com tanto afeto, os mestres se abrem não só para a conversa, mas para brincar no picadeiro. A potência da verdade dos dois que procuram e daqueles que são encontrados. E acho que vale ressaltar a segunda camada do filme: para além da estrada, da liberdade e do encontro, tem o ato de se lançar no vazio. Não só o próprio filme, que se joga, mas esses personagens, os dois atores e seus Mateus, que se lançavam no vazio que é o picadeiro, sem saber o que ia acontecer, sem medo do erro, do que podia ficar registrado disso. É muito bonito ver essa liberdade, esse descontrole, que, para mim, é a própria vida”.
Com produção da Parêa Filmes e da Janela Projetos, em coprodução com Alumia Filmes, Mateus ainda não tem previsão de lançamento comercial. “Acho muito difícil que um filme como esse entre em circuito comercial. Não chegamos a colocar em editais de distribuição e, do jeito que tudo está agora no horizonte da cultura no Brasil, não temos muito essa perspectiva. Quero pegar o filme e fazer uma viagem pelas cidades por onde passamos. Quero mostrar para os nossos Mateus em praça pública, cruzando o estado todo…”, vislumbra Dea Ferraz. Ela e seu documentário nos miram e não nos fazem esquecer: a vida é o que escapa.
LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica de cinema da Continente.