Curtas

Comigo ninguém pode

Em mostra individual, Jeff Alan ocupa os salões da Casa Estação da Luz, em Olinda, e nos presenteia com pinturas e sonhos vivos

TEXTO Taynã Olimpia

08 de Setembro de 2022

'Posso mudar o meu destino' (2021), técnica mista sobre tela, 30 x 29 cm

'Posso mudar o meu destino' (2021), técnica mista sobre tela, 30 x 29 cm

Imagem Arnaldo Sete/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Foi numa ladeira de Olinda que fiz as pazes com as comigo-ninguém-pode. Há quase duas décadas não me aproximava delas, admirando-as só de longe, por causa de uma trela na infância, quando decidi pôr à prova a alcunha da planta e arranquei suas folhas para brincar. Minhas mãos nunca coçaram tanto quanto naquele dia. Só recentemente, na galeria da Casa Estação da Luz, que a arte me fez ressignificar aquela memória. É lá onde está em cartaz a exposição individual Comigo ninguém pode, do pintor Jeff Alan.

O título foi escolhido em referência à planta de folhas vistosas e venenosas que, além de ornamental, tem valor espiritual atrelado – uma planta de proteção. “O título Comigo ninguém pode é também uma forma de homenagear o meu tio Beco, que faleceu em janeiro. Ele tem um bar bem antigo no meu bairro, o Caldinho do Beco, que é um grande ponto de encontro de várias gerações – eu tenho muitas memórias desse bar. E essa planta tem no bar do meu tio”, conta o artista, em entrevista à Continente.


O artista Jeff Alan na mostra. Foto: Mauricio Ferry/Divulgação

O bairro que Jeff menciona é o Barro, localizado na periferia da zona oeste do Recife. São nas cenas e pessoas daquelas ruas que ele se inspira para criar grande parte das suas obras. “É um compromisso social muito forte de representar essas pessoas, de mostrar o quanto é rica a nossa ancestralidade, os fazeres do povo preto. Essa exposição é uma reunião de memórias do meu cotidiano. É uma extensão do meu corpo, é algo muito vivo em mim, nas pessoas do meu bairro e nas pessoas pretas que se viram e se identificaram com as obras. É uma parada muito sagrada.”

Chegando à Casa Estação da Luz, um casarão de herança colonial, já nos degraus em direção ao jardim, vemos as comigo-ninguém-pode plantadas não em jarros, mas em latões vazios de tinta, do mesmo jeito que vemos nas comunidades. Uma maneira de trazer os costumes da periferia para um centro de artes cujo acesso é ainda desigual. O primeiro contato com a obra de Jeff já começa na área externa, através de um mural, rodeado de espada-de-são-jorge, que retrata um rosto altivo de uma pessoa preta. O olhar da figura está voltado à casa grande, nos direcionando o caminho.


Noite estrelada (2021), técnica mista sobre tela, 70 x 100 cm.
Foto: Maurício Ferry/Divulgação


“Jeff começou como um muralista, um grafiteiro, então foi uma forma de mostrar um pouco o universo dele”, explica Bruno Albertim, curador da Comigo ninguém pode, sobre a escolha de trazer murais para a exposição. “Jeff é um exemplo de grande talento de capacidade de comunicação. A obra dele pode suscitar várias questões históricas e sociológicas, mas não é uma obra hermética, é uma obra com uma capacidade muito horizontal de comunicação. E se comunicar é fundamental.”

Na primeira sala da galeria, encontramos Noite estrelada (2021), tela de fundo azul escuro que retrata um menino negro com cabelo loiro pivete, posicionado de costas para nós e, ao seu lado, está uma versão em pintura da planta que dá título à mostra. A espécie botânica se repete outras vezes ao longo da exposição, mas em composições diferentes. Uma, no quadro Posso mudar meu destino (2021); outra, em uma projeção feita no quintal da casa, que exibiu, na Estação da Luz, o mural pintado por Jeff, na Rua dos Amores, no Bairro do Recife.


Uma projeção exibe um mural pintado por Jeff no Bairro do Recife. Foto: Mauricio Ferry/Divulgação

É gratificante ver as paredes brancas dos brancos serem cobertas por retratos negros, colocando-os no centro da narrativa. Vários personagens retratados nas telas em cores saturadas, com contraste e jogo de sombras – um estilo característico do artista –, são reais. Foram pessoas fotografadas pelas ruas quando estavam a caminho dos seus compromissos, da escola ou em momentos de lazer. Da fotografia se gera a pintura na tela com tinta, uma metodologia semelhante a de outros artistas, como o pintor carioca Arjan Martins. A obra de Jeff dialoga também com a de outros artistas contemporâneos, cuja arte contracolonial traz para a tela, através de cenas cotidianas ou retratos, o protagonismo preto – como é o caso de Dalton Paula, No Martins e Manuela Navas.

O segundo salão da galeria dá dimensão àquilo que se é proposto pelo artista recifense. Se o visitante se puser no centro do cômodo, ficará rodeado de figuras de olhares altivos e atentos. É como inverter a narrativa: o observador passa a ser observado. Uma sensação de desconforto, mas num bom sentido, pois nos faz perceber que, mesmo sem parecer, às vezes, há supervisão. Há sonhos e demandas naqueles olhares. Para reforçar a mensagem, em um quadro de mais de dois metros de altura, no qual está retratado um jovem de olhar irredutível, podemos ler SONHOS VIVOS, em letras vermelhas e garrafais – como um alerta.



Ao centro, a obra Sonhos vivos (2022), tinta acrílica sobre compensado naval, 110 x 220 cm. Foto: Maurício Ferry/Divulgação

Na parede em frente à tela grande, vemos uma composição formada por 13 obras de dimensões pequenas a médias. Dentre elas, uma me chamou atenção: um desenho, em papel de borda rasgada, de um rapaz sentado, tranquilamente, no icônico guarda-corpo da Rua da Aurora. O contraste se dá através do objeto que ele segura na mão: uma garrafa de cola de sapateiro. Nessa obra de 19,5 x 19 cm, Jeff Alan é capaz de capturar as contradições da cidade, mostrando como os esforços governamentais, que tentam tornar a rua “Instagramável”, falham em acolher sua população.

Sobre essa obra Aurora (2020), o artista comenta: “Isso não é para ser visto como algo bonito. Não é o valor estético, e, sim, a mensagem. Isso é um protesto. O protesto é antes da obra. Aquela Aurora, ali, é a de quem vai a pé, quem passa de carro ou olha da janela dos prédios de luxo não conhece aquela Aurora crua. Aquela obra é uma denúncia”.


O garoto Ednaldo se vê em obra que leva o seu nome.
Foto: Mauricio Ferry/Divulgação

Além da Comigo ninguém pode, Jeff Alan está com outra exposição em cartaz, a Pra deixar de ser "Pra inglês ver", no Engenho Massangana, no Cabo de Santo Agostinho, onde estão reunidas obras que retratam importantes ícones da cultura afro-brasileira. Na nossa conversa sobre as exposições, o artista relembrou o potencial que suas telas têm de gerar identificação e pertencimento em pretos e pretas que vão prestigiá-las. “Tenho o compromisso de despertar o pertencimento. O mundo é nosso, temos direito a tudo.”

A exposição Comigo ninguém pode é gratuita, funcionando de terça a domingo, das 12h às 17h, até o dia 30 de setembro.

TAYNÃ OLIMPIA, jornalista em formação pela UFPE.

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