Curtas

Biografia de Ney Matogrosso

Livro traz um retrato sobre a ascensão e resistência de um dos mais importantes artistas brasileiros

TEXTO Débora Nascimento

01 de Outubro de 2021

Lançamento da biografia marca as comemorações dos 80 anos do artista

Lançamento da biografia marca as comemorações dos 80 anos do artista

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed.250 | outubro de 2021]

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Há 50 anos, em outubro de 1971, João Ricardo e Gerson Conrad, dois músicos iniciantes, fizeram uma viagem de trem de São Paulo ao Rio de Janeiro com o objetivo de encontrar, no Bairro de Santa Teresa, o candidato a preencher a vaga de vocalista na banda que formavam. Às 7 da manhã, bateram à porta da casa da compositora Luhli, que havia sugerido como cantor o amigo hippie acolhido por ela em sua residência. O encontro prosaico deu origem à formação definitiva dos Secos & Molhados, que seria um fenômeno musical no Brasil, dois anos depois, lançando a carreira de um cantor espetacular e singular: Ney de Souza Pereira.

Antes de se tornar o intérprete revolucionário, o protagonista da banda que teve vendagens recordes de seu primeiro LP e lotava shows em ginásios, Ney, ainda sem ter o Matogrosso como sobrenome artístico, levava uma vida marcada por momentos desafiadores. Este é o fio a destrinchar o mais recente e – até agora – completo livro sobre sua história, Ney Matogrosso, a biografia (Cia das Letras), lançado poucos dias antes do aniversário de 80 anos do artista cujo corpo e voz parecem desafiar o tempo.

O livro foi escrito pelo jornalista e crítico musical paulistano Julio Maria, também responsável por narrar a vida de outra gigantesca voz da música brasileira, na belíssima biografia Elis Regina – Nada será como antes, vencedor, em 2015, em sua categoria, na premiação da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

Se o furacão Elis teve apenas 36 prolíficos anos para serem narrados, Ney Matogrosso exibe seus 80 repletos de episódios contados em 512 páginas. Na publicação, eles começam a ser descritos a partir do dia em que deu um basta no autoritarismo do pai, o sargento Antonio Matto Grosso Pereira, saindo de casa para nunca mais voltar, em 1958, aos 17 anos. Ney levou às últimas consequências sua determinação, orgulho e desejo de libertar-se da opressão paterna, mesmo que tivesse que experimentar dormir na rua e literalmente enfrentar a fome. Começava a sua trajetória nômade e libertária.

O livro inicia com o episódio do “basta” de Ney, depois volta no tempo, contando brevemente a história do Estado do Mato Grosso, antes de sua divisão, e da cidade de Bela Vista, terra natal do biografado. Essas informações, que trazem casos de violência e intolerância do lugar, são uma forma não de justificar, mas de explicar a origem do comportamento grosseiro, machista e homofóbico do pai, que, devido ao ofício, mudava muito de endereço com a família, chegando a morar em São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife.


Ney Matogrosso, a biografia é um livro sobre a ascensão de um artista brilhante. Foto: Divulgação

Na apresentação da biografia, Caetano Veloso ressalta um ponto: “Gostei quando soube que ele era filho de militar – e mais ainda agora, lendo o livro, quando é narrada sua decisão de, ao afastar-se mais da família, servir na Aeronáutica”. A ida à Aeronáutica foi uma forma de sobrevivência para o rapaz. Ironicamente, em meio às Forças Armadas, ele fez descobertas que seriam determinantes na sua vida profissional e pessoal, a homossexualidade, a maconha e, ao tomar banho coletivamente, perder o medo de ficar nu diante das pessoas. Um dia, o pai foi ao quartel para saber como o filho se comportava e ficou surpreso ao saber que o soldado Pereira tinha uma disciplina exemplar.

Ney saiu da Aeronáutica em 1961, quando rumou para a recém-inaugurada Brasília, ainda um canteiro de obras e um ambiente com poucos atrativos, que costumava despertar nos seus habitantes o sentimento de solidão. Mas nada diminuía sua intenção de sobreviver sem a ajuda da família – a única vez que ele usou o nome do pai ocorreu no Rio, quando foi preso, apenas por sua aparência hippie. Na delegacia, sob ameaças dos policiais de que seria oferecido como “carne nova” aos detentos, deu uma carteirada de “filho de militar” e passou a receber tratamento mais decente.

O livro traz passagens curiosas, como a vez em que a amiga Luhli (autora das letras de O vira e Fala) convenceu Ney, antes de integrar os Secos & Molhados, a levar os artesanatos ripongas que ambos faziam para serem vendidos a Nice, esposa de Roberto Carlos. O plano de Luhli era o seguinte: vender todas as bijuterias para a mulher do Rei da Jovem Guarda e Ney cantaria para a própria majestade, com o objetivo de conseguir, quem sabe, a indicação de contrato com uma gravadora.

Luhli alcançou a primeira parte do plano, mas a extrema timidez de Ney atrapalhou a segunda. O novato cantou sem exibir todo o seu potencial, talvez acuado por estar diante de um astro do porte de Roberto em pleno reinado, que, coincidentemente, dois anos depois, seria pela primeira vez abalado, ao perder o primeiro lugar de vendagens para o disco de estreia dos Secos & Molhados.

Mas Ney, embora quisesse ser – antes de tudo – um ator, chegaria à música por vias intrincadas, que são destrinchadas por Julio Maria, com maestria. O biógrafo relata, nesse enredo, descobertas pessoais, conquistas profissionais, surgimento de amizades, paixões e amores, como Cazuza. E vamos compreendendo e admirando ainda mais a personalidade de Ney: seu desapego ao dinheiro, amor pela natureza, humor, sua seriedade, obstinação, sinceridade, indignação perante injustiças e a firmeza de caráter em meio às intempéries.

Ney Matogrosso, a biografia é um livro sobre a ascensão de um artista brilhante, mas também um documento que registra a resistência e a resiliência de alguém que quis vencer através do trabalho e talento, sem nunca abrir mão de sua dignidade e essência. 

DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente e colunista da Continente Online.

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