Na apresentação da biografia, Caetano Veloso ressalta um ponto: “Gostei quando soube que ele era filho de militar – e mais ainda agora, lendo o livro, quando é narrada sua decisão de, ao afastar-se mais da família, servir na Aeronáutica”. A ida à Aeronáutica foi uma forma de sobrevivência para o rapaz. Ironicamente, em meio às Forças Armadas, ele fez descobertas que seriam determinantes na sua vida profissional e pessoal, a homossexualidade, a maconha e, ao tomar banho coletivamente, perder o medo de ficar nu diante das pessoas. Um dia, o pai foi ao quartel para saber como o filho se comportava e ficou surpreso ao saber que o soldado Pereira tinha uma disciplina exemplar.
Ney saiu da Aeronáutica em 1961, quando rumou para a recém-inaugurada Brasília, ainda um canteiro de obras e um ambiente com poucos atrativos, que costumava despertar nos seus habitantes o sentimento de solidão. Mas nada diminuía sua intenção de sobreviver sem a ajuda da família – a única vez que ele usou o nome do pai ocorreu no Rio, quando foi preso, apenas por sua aparência hippie. Na delegacia, sob ameaças dos policiais de que seria oferecido como “carne nova” aos detentos, deu uma carteirada de “filho de militar” e passou a receber tratamento mais decente.
O livro traz passagens curiosas, como a vez em que a amiga Luhli (autora das letras de O vira e Fala) convenceu Ney, antes de integrar os Secos & Molhados, a levar os artesanatos ripongas que ambos faziam para serem vendidos a Nice, esposa de Roberto Carlos. O plano de Luhli era o seguinte: vender todas as bijuterias para a mulher do Rei da Jovem Guarda e Ney cantaria para a própria majestade, com o objetivo de conseguir, quem sabe, a indicação de contrato com uma gravadora.
Luhli alcançou a primeira parte do plano, mas a extrema timidez de Ney atrapalhou a segunda. O novato cantou sem exibir todo o seu potencial, talvez acuado por estar diante de um astro do porte de Roberto em pleno reinado, que, coincidentemente, dois anos depois, seria pela primeira vez abalado, ao perder o primeiro lugar de vendagens para o disco de estreia dos Secos & Molhados.
Mas Ney, embora quisesse ser – antes de tudo – um ator, chegaria à música por vias intrincadas, que são destrinchadas por Julio Maria, com maestria. O biógrafo relata, nesse enredo, descobertas pessoais, conquistas profissionais, surgimento de amizades, paixões e amores, como Cazuza. E vamos compreendendo e admirando ainda mais a personalidade de Ney: seu desapego ao dinheiro, amor pela natureza, humor, sua seriedade, obstinação, sinceridade, indignação perante injustiças e a firmeza de caráter em meio às intempéries.
Ney Matogrosso, a biografia é um livro sobre a ascensão de um artista brilhante, mas também um documento que registra a resistência e a resiliência de alguém que quis vencer através do trabalho e talento, sem nunca abrir mão de sua dignidade e essência.
DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente e colunista da Continente Online.