Passados alguns instantes da típica euforia do réveillon, não demora muito até que as expectativas relacionadas ao Carnaval comecem a emergir, especialmente dentro do universo da indústria fonográfica, que se apressa em emplacar o próximo hit da temporada. Nesse contexto, produtores e produtoras de música independente, espalhados por todo o Brasil, precisam lançar mão de pequenas estratégias para tentar se destacar no meio cultural. Apostando nisso – e mais ainda no carinho pelas festividades carnavalescas, tão presentes em seu DNA –, a banda olindense Eddie decidiu estrear o EP Atiça nos primeiros minutos de 2020 e planeja, ainda este ano, o lançamento da segunda parte do trabalho.
“Por ser um disco inspirado no frevo, queríamos que ele estivesse circulando o quanto antes. Seria nosso prazer poder tocar as músicas novas no Carnaval, com as pessoas realmente conhecendo, sabendo as letras. Também porque queremos lançar o lado B, o que se torna interessante quando você pensa em uma certa cronologia que se dá no mercado e nos espaços para comentar música. Se fosse um disco de 2019, teríamos ficado, fatalmente, na gaveta de 2019 e com menos atenção nesse sentido”, comentou o guitarrista, vocalista e fundador da banda, Fábio Trummer, que, em paralelo ao processo de composição do álbum, voltou a morar no Recife, após 15 anos em São Paulo.
Com cinco faixas autorais e inéditas, exceto por Na veia, uma adaptação retirada do álbum O palhaço do circo sem futuro (2002), da também pernambucana Cordel do Fogo Encantado, o lado A de Atiça, ou seja, a primeira parte do disco, combina a grandeza rítmica do frevo à linguagem ácida e política do punk, veia artística da banda. Cabendo ao trabalho, também, o mérito de reinventar e reconhecer a história e força de um ritmo respeitado na música brasileira, com mais de 100 anos de existência, além da festa popular, um lugar de encontros e irreverência, onde a política é feita através da diversidade de corpos e visões de mundo. “O frevo tem a química de toda uma mistura étnica e é muito singular, sendo uma força e um instrumento político para a mudança de sociedades”, afirmou.
Iniciadas em agosto do ano passado, as gravações de Atiça configuraram-se num desafio para o grupo (composto por Trummer, Alexandre Urêa, Andret Oliveira, Rob Meira e Kiko Meira), que completou três décadas de uma carreira sólida. Perpassada por álbuns como Carnaval no inferno (2008) e Original Olinda Style (2003), responsável, na época, por nomear um estilo de vida da juventude olindense. “Temos sete álbuns lançados com a mesma formação e, a partir do quarto e quinto álbum, conseguimos identificar muito claramente qual era nossa música autoral. A partir daí, tentamos não nos repetir, porque, como é uma formação em que tocamos juntos há 20 anos, a gente tende a repetir nossas soluções musicais”.
Apesar de ser considerada uma banda “que faz novo frevo”, a Eddie nunca havia dedicado uma obra inteira ao estilo musical – que, mesmo carregando um apelo carnavalesco, é atemporal. Assim, em Atiça, a inspiração vem, sobretudo, “de observações e memórias antigas, como, por exemplo, o frevo de sanfona, muito visto nas quartas-feiras de cinzas”, como afirmou Trummer. Também, no tradicional Encontro de Boizinhos, nos blocos da Macuca, ou em outros blocos, “que trazem o som mais rural para o frevo”. Características muito bem exploradas na segunda faixa Apocalítico.
Outro estímulo importante dentro desse processo criativo da banda foi o movimento de retorno para o uso de uma roupagem mais crítica nas canções que, nos discos mais recentes, havia sido evitada. “Vivemos numa crise que estão fechando as portas institucionais para a cultura. Para Pernambuco é terrível, porque a cultura popular carece de apoio privado, produtores e produtoras; e, normalmente, chegamos até elas através de iniciativas públicas. A gente retrata um pouco disso nas letras do disco, ao contrário dos dois outros álbuns que evitamos, pois já se falava muito. Agora conseguimos digerir e ter algo além do que é dito nas redes sociais”, afirmou Trummer, expondo algumas das dificuldades vividas por artistas independentes no país.
Para completar, Atiça, anteriormente nomeado de “Essa dor que a gente sente” pela banda, contou com a participação especial de músicos como André Julião, sanfoneiro experiente que já acompanhou de perto a carreira de Silvério Pessoa e Alceu Valença e João do Cello, parceiro antigo da Eddie, incumbido pela criação de arranjos musicais. Destaque também para a presença de Sofia Freire, representante de uma nova geração da música pernambucana, com dois álbuns de estúdio já lançados – Romã (2017) e Garimpo (2015) – e responsável por espalhar a suavidade de sua voz por entre os versos de Na Veia, ode à saudade coletiva que se sente quando as ladeiras do carnaval começam a esvaziar.
O contato com artistas de diferentes gerações é salutar, especialmente para uma banda que busca não repetir fórmulas de sucesso, mas experimentar formas de expressão artística. “Um dos motivos que me incentivaram a voltar para o Recife foi a existência de uma geração nova, e a gente queria, nesse trabalho, ter contato para ser vitrine e entrar na vitrine, trocar ideias musicais, conceituais, estéticas. Reconhecer um trabalho bem-feito somou muito ao nosso trabalho. É importante esse diálogo das gerações, porque a história é contada pela caneta de cada geração e uma não termina onde outra começa”.
THAIS SCHIO é jornalista em formação pela Universidade Católica de Pernambuco.