Um torcedor que assina “o torcedor do espelho” pergunta-me, por carta, com ar quase de zanga, porque eu, quando citei o caso do torcedor do bodoque, atrás do gol da piscina, lá em Campos Salles, não citei o caso dele: o caso do “torcedor do espelho”. Ele tinha tanto direito quanto o outro. E talvez mais. A pedrinha atirada pelo bodoque poderia “até” machucar. O espelho, não. E, além disso, o espelho era uma arma muito mais perfeita do que o bodoque. O bodoque acertaria ou não acertaria. Em São Januário, por exemplo, o bodoque não adiantaria de nada. E o espelho foi aplicado, com absoluto êxito, de “qualquer ponto” de São Januário. Amado ia defender uma bola e o reflexo do sol batendo sobre o espelho — um espelho de bolso, pequeno, leve, cômodo — cegou Amado. Gol do Vasco. “O senhor não se lembra? Pois o torcedor do espelho era eu.”
Naturalmente que eu me lembro do torcedor do espelho. Durante um certo tempo os torcedores do espelho se multiplicavam como vaga-lumes. A gente olhava para as arquibancadas e via tudo faiscando. De repente, o goleiro passava a mão pelos olhos. Qualquer pessoa, porém, podia levar um espelho para o campo. E a arma passou a não valer de nada. Se um torcedor do Vasco botava o reflexo do espelho em cima da cara do goleiro do Flamengo, o torcedor do Flamengo esperava o primeiro ataque contra o gol do Vasco e toca a cegar o goleiro do Vasco, o beque do Vasco, qualquer coisa do Vasco. E um dia um chofer, em São Januário, arrumou os faróis de um carro em direção ao arco do Flamengo. A polícia prendeu o chofer. O carro. Os faróis.
O que me impressionou mais na carta do torcedor do espelho foi o anonimato. Ele protestou porque eu não tinha citado o nome dele. Qual é o nome dele? Torcedor do espelho não se parece com nome de ninguém. E, no entanto, eu sei que basta. O “torcedor do espelho” agora mesmo está sorrindo. Encantado. Como se bastasse isso — a citação de um torcedor, que aliás não era um, era uma multidão — para identificá-lo. Ele pode pegar o pedaço de jornal e mostrá-lo a todo mundo. Hoje é dia de festa na casa do “torcedor do espelho”. “Você já leu a Primeira Fila?” — ele indagará de companheiros de repartição, de amigos, de vizinhos. — “Pois não perca a de hoje. Está boa. Cita-me”.
Eu um dia estava sentado diante de uma mesa redonda, escrevendo, escrevendo. Aí, apareceu um homenzinho, com um embrulho debaixo do braço. Dentro do embrulho estava um pacote de cinco contos de réis. O homenzinho encontrara o embrulho não sei onde e se apressara em vir entregá-lo. “Eu sou pobre, mas honesto” — declarou ele, com convicção. Com uma satisfação íntima, profunda, tomaram nota. Nome. Endereço. Tudo. Levaram o pacote para dentro. E o homenzinho começou a ficar nervoso. Ele vestira o terno dos domingos e feriados, mandara engraxar os sapatos, cortar os cabelos e nenhuma fotografia? Eu o vi querer dizer uma coisa. Não disse. Ou, por outra, só disse quando abriu a porta para sair: “Assim, sem fotografia nem nada, nem vale a pena ser honesto. Até desanima a gente”. E bateu a porta com violência. Em sinal de protesto.
O nome em jornal há de ter o seu encanto. Há de ter. Mesmo quando é uma indicação: “Leônidas fazia-se acompanhar por um amigo”. Quantos apontam a linha em corpo sete para dizer: “o amigo era eu”? Assim, não é difícil compreender o caso do “torcedor do espelho”. Eu, inclusive, devia a ele uma crônica. Quem me forneceu o motivo foi ele. Realmente, há uma porção de torcedores que intervêm em uma jogada, em um match, que decidem uma partida. Uns violentos. Os que levam tijolos para o campo. Os que bebem soda só para ficar com a garrafa na mão para o que “der e vier”. E outros maliciosos. Levando um espelho. Um bodoque. Um apito.
Antigamente, no mais aceso de um ataque, se ouvia o trilar de um apito, estridente. E uma parte da torcida gritava: “offside! pênalti!” O jogo parava. E o juiz tinha de dar bola ao alto. Com o tempo o apito — o “cesar” tudo, de um trocadilhista que queria ser agradável ao César Ladeira — perdeu o prestígio. E, às vezes, o juiz apitava, apitava, e não adiantava. Os jogadores continuavam jogando até que a bola entrasse, que a bola saísse. Ninguém “caía” mais no conto do apito. A não ser um de fora.
Carreiro costumava fazer isso. Ele, de boca fechada, dando um jeito qualquer na língua, produzia um som absolutamente igual ao de um apito. Uma vez ele marcou um gol porque, na hora que o beque ia rebater, ele “apitou”. O beque desistiu da rebatida. Carreiro invadiu a área, pegou a bola e colocou-a no cantinho. Por isso, se fala tanto hoje em gol anulado, apesar de o juiz ter apitado antes. Ninguém obedece, que não é besta. Quem sabe se o apito não foi o apito de torcedor?
Há torcedores, aliás, com força moral sobre o juiz. Com uma voz poderosa de comando. Uma voz assim de Victor McLaglen. Grossa. Estentórea. Hipnótica. O juiz não quer apitar e apita a ordem de offside! Hands! Foul! corner! Contra isso o juiz não pode lutar. Trata-se de alguma coisa mais forte do que ele. Felizmente, são raros os torcedores privilegiados com uma voz de comando. E, além disso, os que tem a voz de comando, não a gastam assim, sem mais nem menos. Guardando-a para ocasiões solenes. Quase cívicas.
Os torcedores do bodoque, do espelho, do farol de carro, do tijolo, do desaforo, da garrafa de soda ou de cerveja, do apito, são os torcedores por conta própria, que não se integram na multidão, que não se perdem no meio da multidão, que se destacam, conservando a personalidade. A maioria é parte de um todo, sentindo emoções em conjunto, não se dando ao luxo de vibrar só, como indivíduo. Depois da exibição de um escrete austríaco em Londres, cinco mil torcedores ingleses, sem aviso prévio, um não conhecendo o outro, não se cumprimentando sequer, atravessaram a Mancha para ir ver o Wonderful Team jogar em Bruxelas. Eu não conheço exemplo mais maravilhoso do homem-massa, do homem multidão.
Pode-se dizer que há uma enorme diferença entre o torcedor inglês e o torcedor brasileiro. Um, torcedor de futebol, apenas. E o outro, torcedor de clube. De camisa. O torcedor inglês não intervém no match. Manifesta agrado ou desagrado com sobriedade. Valorizando a palma. Em um match Itália x Tchecoslováquia, porém, quando Plánička ia fazer uma defesa no canto, recebeu uma pedra atirada por um bodoque de torcedor, bem na nuca. Ele, no ar, em pleno salto, teve que coçar o pescoço. A bola entrou. Os tchecos, porém, se recusaram a continuar o jogo. A polícia andou prendendo tudo o que era torcedor mal-encarado. Com jeito de fazer uma coisa daquelas.
Em alguns momentos, quando as coisas estão pretas, a torcida resolve dar uma mão ao time.
Quando os brasileiros foram disputar com os argentinos, no campo do Barracas, em Buenos Aires, o último jogo do Sul-Americano de 25, Friedenreich marcou um, dois gols, e, quase na hora de marcar o terceiro, recebeu um pontapé pelas costas. Era o sinal. Senão combinado, pelo menos entendido. O torcedor entrou em campo e tocou o braço nos brasileiros. Amansando-os. Deixando bem claro que não se podia fazer, impunemente, uma porção de gols em cima dos argentinos. Os brasileiros não caíram na tolice de marcar mais gols. E os argentinos empataram o jogo. Que diabo: eles eram os donos da casa, não eram?
Eu ia me esquecendo do torcedor fotógrafo que leva magnésio para o campo e resolve bater uma chapa de uma defesa sensacional do goleiro “contrário”. Do “outro” não interessa. Uma vez o Vasco jogava não sei com quem. Talvez com o Flamengo, porque quase todos os fotógrafos torcem pelo Flamengo. O caso é que Rey ia segurar a bola quando se ouviu uma explosão medonha. Parecia de bomba. Rey tremeu, largou a bola, julgou que tinha sido alvejado por um bacamarte. E eu só vi vascaíno pulando para a pista e o fotógrafo correndo, gritando que tinha sido sem querer. Hoje, é proibido levar magnésio para o campo. Quem quiser bater fotografia de jogo noturno, têm de comprar lâmpada. Por quatro ou cinco mil réis. Mais barato do que um tiro de magnésio.
MARIO FILHO (1908-1966) foi importante jornalista e cronista de futebol. Esta crônica foi publicada originalmente em O Globo Sportivo, em 13 de agosto de 1948.