Crônica

O Cícero do quartier lisboeta

TEXTO Álvaro Filho

09 de Outubro de 2023

O Cícero Bistrot é referência da gastronomia francesa em Lisboa

O Cícero Bistrot é referência da gastronomia francesa em Lisboa

Foto Líbia Florentino/BOOKER

Acho que é o Silvério Pessoa que conta essa história, de sempre quando saía em turnê pelo mundo, ouvir o conselho materno de não espalhar aos quatro ventos que era de Pernambuco. E o bom filho Silvério, sem entender, retrucava, “mas por quê?, mas por quê?” e ouvia como resposta a síntese da alma pernambucana: “Para não humilhar, meu filho, para não humilhar...”

Vai ver que não deram o mesmo conselho ao Paulo Dalla Nora ou ele, bom negociante que é, fez questão de fazer ouvido de mercador. Aportou em Lisboa há dois anos munido da desfaçatez pernambucana com a pretensão de abrir o melhor restaurante francês do bairro mais francês da capital portuguesa. E o cabra tem conseguido bater a meta.

Em pouco mais de um ano, o Cícero Bistrot virou referência da gastronomia francesa em Lisboa. Ou melhor dizendo, da gastronomia franco-pernambucana, tendo em conta que Pernambuco, e 1817 está sempre aí para provar, é um país. Basta folhear o cardápio, com seus méis de engenho, doce de leite, moquecas e lascas de coco, para sentir o gostinho. Não bastasse a arte na mesa, o restaurante é uma espécie de galeria pernambucana em Lisboa. A começar por quem batiza o bistrô, Cícero Dias, o pernambucano que viveu em Paris, colaborou com a resistência francesa durante a Segunda Guerra e foi condecorado por De Gaulle com a Ordem Nacional do Mérito, a mais alta honraria francesa.


O pernambucano Paulo Dalla Nora comanda o Cícero. Foto: Líbia Florentino/BOOKER

Pernambucano é assim, mesmo, bota nazista e fascista no lugar dele, ganha medalha de herói no peito e placa nas ruas de Paris. Não bastasse, Cícero Dias foi o best de, nada mais, nada menos, Pablo Picasso. Padrinho da filha do espanhol, tratava o outro de “compadre Pablo” e, durante anos, quem precisasse falar com Picasso obrigatoriamente tinha que falar com Cícero, pois era do pernambucano o telefone de Picasso em Paris.

No Recife, é de Cícero Dias a estrela dos ventos que adorna o pavimento do Marco Zero e leva o nome de sua obra mais famosa, com o imodesto pernambucano título de Eu vi o mundo... ele começava no Recife, uma pintura-alegoria da vida e seus demônios, como a Guernica do compadre Picasso, só que pintada antes da outra e com o dobro do tamanho.

Cícero Dias foi outro que não ouviu o conselho para não humilhar as pessoas. Nas paredes do restaurante, além de originais de Cícero Dias, estão Félix Farfan, Lula Cardoso Ayres, Samico, João Câmara e Paulo Bruscky, entre outros artistas locais. Há ainda um impecável oratório, pois a fé não costuma falhar, e um imenso painel de madeira talhada, todas as peças do acervo particular que Dalla Nora trouxe de navio do Recife para Lisboa.

Uma viagem que o pernambucano fez em 2021, quando decidiu migrar, desgostoso com o astral do Brasil de então, imerso nas brumas do obscurantismo. Dalla Nora é daqueles que prezam falar de política e, portanto, já viu, com o país fraturado corria o risco de fraturar algum osso se continuasse a tentar apelar para o bom-senso, mesmo nas rodas entre amigos.

Na ainda tranquila Lisboa, Dalla Nora conseguiu retomar os debates políticos e, pelo menos uma vez por mês, a reflexão sobre as questões sociais do Brasil são servidas à mesa, nos encontros promovidos pelo Cícero Bistrot. As questões do Brasil e também de Portugal, pois pernambucano não se avexa em meter a colher no pirão dos outros.

A prova disso foi quando os ministros portugueses Ana Mendes e Luís Carneiro estiveram no Cícero para debater o racismo em Portugal. Na ocasião, o atacante brasileiro do Real Madrid, Vinícius Júnior, havia sido hostilizado com insultos racistas nas arquibancadas de um estádio em Valência e uma vingança ainda quente foi servida aos presentes. Um prato-provocação aos vizinhos ibéricos, a Paella Viniciana, uma adaptação com toques brasileiros de um dos ex-líbris da gastronomia espanhola, a paella valenciana.

Nessa pisadinha gastropolítica, já passaram pelas mesas do Cícero, convidado a provar do menu assinado pelo chef português Hugo Cortez e também a debater a conjuntura social com anfitrião, os pernambucanos José Múcio, Fernando Bezerra Coelho e o filho, Miguel Coelho, Armando Monteiro Neto e João Carlos Paes Mendonça.

Sem falar no presidente Lula, que lá esteve logo após vencer as eleições, ainda antes de tomar posse. Do lado português, também já trocaram ideias e argumentos, entre garfadas e taças de um bom tinto, o presidente da Câmara de Lisboa (o equivalente ao prefeito da cidade no Brasil), Carlos Moedas, e o primeiro-ministro de Portugal, Antônio Costa. A próxima visitante ilustre será Sylvia Dias, a filha única de Cícero Dias, que vai celebrar o aniversário no restaurante que carrega o nome do pai.


Nas paredes do restaurante estão obras de diversos artistas pernambucanos. Foto: Líbia Florentino/BOOKER

O Cícero fica em Campo de Ourique, um bairro isolado no topo de uma colina, a salvo do frenesi turístico, eleito pelos franceses como um porto seguro em Lisboa, carinhosamente apelidado de Champs d’Ourique. A alta frequência francesa atraiu bistrôs, pâtisseries, liceus e até um açougue especializado no corte das carnes ao estilo francês. Très chiq, portanto.

O que dá a dimensão da ousadia deste pernambucano em rivalizar com a vizinhança gaulesa ao pretender ser o melhor francês entre os franceses deste quartier lisboeta. E assim, quando os portugueses me perguntam se conheço o Cícero, respondo sempre que sim, mas valendo-me dos valiosos conselhos dos outros, prudentemente omito a procedência pernambucana, pois o restaurante já vale pelo toque artístico do que oferece nas mesas e nas paredes. E mais importante ainda, porque não há necessidade nenhuma de humilhar os outros.

ÁLVARO FILHO, jornalista.

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