Crônica

No coração da selva, com Sebastião Salgado

Exposição Amazônia mostra um Brasil deslumbrante e desconhecido, com uma expressão de grande plasticidade da identidade e da geografia humana e natural de seu povo

TEXTO Marcelo Pereira

24 de Maio de 2025

Foto Sebastião Salgado/Pool Comunicação/Divulgação

A exuberância de uma Amazônia desconhecida e surpreendente, misteriosa e bela, com sua força selvagem e seus silêncios profundos, ganham uma potência impressionante, em imagens preto e branco, pelas lentes do fotógrafo Sebastião Salgado, me levou a uma exposição com acesso gratuito no Sesc Pompeia, em São Paulo, no primeiro semestre de 2022. A mostra resultou num livro de arte de 528 páginas, lançado na época pela Taschen, à venda por R$ 900 na internet. Vale cada centavo essa ode à vida e à natureza, de um homem que foi um crítico e visionário do seu tempo, nas questões humanas e ambientais. Infelizmente, Sebastião Salgado nos deixou, aos 81 anos. Ele morreu em Paris, nesta sexta-feira (24/5).

A curadoria e cenografia de Amazônia, assinada pela esposa Lélia Wanick Salgado, provocava uma imersão sensível, embalada por uma trilha minimalista de sons da floresta de Jean-Michel Jarre, que arrebata o expectador, num a ambiente escuro, com uma iluminação afinadíssima que ressalta a luz, o brilho e o contraste das imagens.

Estamos no coração da selva.

A luz é filtrada pelos galhos e folhas das águas e refletida nos igarapés. Dois garotos nus, de costas, brincam numa cachoeira. Há alegria e inocência entre eles. Em outra cena, uma menina retoca no espelho com cores negras a sua maquiagem. De cocar e uma pintura que lembra o conjunto Secos e Molhados ou a banda gringa Kiss (referências urbanas da cultura pop/rock), uma mulher com os seios à mostra, deixa-se fotografar, sem temer perder a alma (superação de superstição/crença antiga?) ou o assédio do homem branco.

Na rede e em palhas espalhadas pelo chão, uma família descansa após um dia de caça, enquanto em outra foto, um caçador traz nas costas um macaco, iguaria apreciada por toda a tribo. Uma família Asháninka, do Acre, posa diante de uma árvore colossal.

Os índios Korubo estão armados para enfrentar os invasores, com bordunas, lanças e zarabatanas, o corpo coberto de barro, do qual origina o nome na língua Pano (a mesma dos vizinhos Morubo, Matsés e Matis). Algumas fotos são posadas, feitas num estúdio móvel forrado de lona, que o fotógrafo deixava montado à espera da presença espontânea de seus personagens.

Sebastião Salgado registra os hábitos e costumes de povos da Amazônia, com foco especial nos Korubo, Marubo, Yanomami, Yanawá, Suruwhá, Zo’é, Awa-Guajá, Macuxi e Asháninka. Se em 1500 eram cerca de cinco milhões indivíduos, hoje não passam de 370 mil, divididos em 188 grupos indígenas – 114 identificados, mas nunca contatados.

São cerca de 200 fotos selecionadas, resultante de sete anos de expedições – por terra, água e ar - e experiências com os povos da floresta. A paisagem humana divide a atenção e se confunde com a paisagem natural amazônica, revelam como nós somos ínfimos diante do esplendor de uma sumaúma secular, de copa invisível.

A plasticidade que Sebastião Salgado imprime em suas imagens é comovente, desnorteadora.

A primeira imagem, logo à entrada, causa impacto, remete a uma pintura gestual abstrata, com o serpenteio das curvas do rio.

 A geografia das águas cria imagens de balé, os sobrevoos revelam composições cheias de harmonia da copa das árvores, das lagoas, cachoeiras e relevos. Brincamos nos campos do senhor, parafraseando o cineasta Hector Babenco.

A chuva torrencial nos leva ao coração das trevas.

É inevitável a foto-cartão-postal do Monte Roraima, em ângulo e enquadramentoraros. O infinito diante dos nossos pés, dos nossos olhos.

 

Se em alguns momentos, poucos, Sebastião Salgado registra o detal he, em outros, quando fotografa a chuva, por exemplo, cria imagens impressionistas, de um pontilhismo belo.

Entre os momentos mais impressionantes estão “rios aéreos”, “mais volumosos que o rio Amazonas”, formados pelo sistema de umidade das árvores de uma floresta encoberta de nuvens, que filtram os raios do sol com poesia.

A Amazônia clama por socorro urgente. Sebastião Salgado sabe disso. Você sabe disso. Ou já ouviu alguém falar. Mas o “Brasil não conhece o Brasil”, diz a canção de Aldir Blanc e Maurício Tapajós.

Para a maioria da população a maior floresta tropical do mundo é tão impenetrável quanto misteriosa e exótica. O que não impede que a cada ano seja mais e mais destruída, degradada pelas suas bordas pela ação devastadora e irracional de gananciosos grileiros e garimpeiros que a devastam para expropriar suas riquezas.

É a violência de suas ações que ameaça de extermínio o seu bioma e os povos originários, que por séculos vivem seguindo os costumes de suas tradições.

Não se vê motosserras que ceifam árvores centenárias e abrem crateras que se tornaram desertos, após esgotadas pela pecuária e o plantio de soja e milho, crateras feitas por garimpeiros que poluem os rios com mercúrio.

As imagens-denúncias estão saturadas nos noticiários de TV e na internet. Sebastião e Lélia têm profundo conhecimento dessas ameaças. E dão o lugar de fala aos caciques e lideranças dos povos da Amazôni: fazem denúncias e reivindicações contra as agressões do homem (branco) civilizado, nos vídeos, exibidos nas ocas.

Duas salas projetam as imagens – uma com a paisagem humana, os portraits eckhoutianos ao som de uma composição de Rodolfo Stroeter, e a outra com as “paisagens florestais”, musicadas pelo poema sinfônico Erosão – Origem do Rio Amaronas, do maior compositor brasileiro, Heitor Villa-Lobos.

São impressões que ficam introjetadas na nossa memória e devem perdurar para sempre, com as retinas impregnadas do preto-e-branco de Sebastião Salgado, o homem-floresta de Aimorés, Minas Gerais e do mundo.

Nota do autor: O texto é uma adaptação/atualização de original publicado pela revista Unicaphoto, em agosto de 2022, editada pelo escritor e designer Sidney Rocha e dirigida pela professora Renata Victor

veja também

O Cícero do quartier lisboeta

Caldo de felicidade

Aquela noite no cemitério